As duas culturas: o cruzamento dos saberes (in)sustentáveis
                                                      José Augusto Mourão (UNL-DCC)

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Influências

O magistério e a influência de Isidoro de Sevilha é enorme na alta Idade Média e chega até ao Renascimento (1). Este "último Padre da Igreja", como lhe chamou P. Séjourné (2), integra no seu labor simultaneamente a Revelação, o magisterio da Igreja e as artes liberais, e é essa síntese que lhe augura a influência que se lhe reconhece. Isidoro é desses autores nem sempre nomeados para que remete Mestre António. Mas é por demais notória a influência de Isidoro nas partes em que o nosso cirurgião fala das virtudes das Fontes (3). Bastará ler o Tratado da natureza ou as Etimologías para reencontrarmos os mesmos objectos, as mesmas virtudes ligadas aos objectos - das ervas às pedras: do basilisco às fontes que dao alívio aos doentes e cegueira aos ladrões. Que dispositivo veridictório rege este discurso? Como distinguir "autores de verdade" da superstição? Como distinguir a crença que colocam os gentios em algumas pedras preciosas - a celonite, por exemplo - da crença que os autores citados colocam nas pedras e as ervas? Tanto Mestre António recorre a autores reconhecidos - Plínio, Isidoro, Beda (que no primeiro quartel do século VIII faz a recomposição completa da obra do Sevilhano),- tanto remete para "autores de verdade" ou "segundo dizem alguns", ou ainda "segundo se escreve". Como se vê, o dispositivo da veridicção é bastante frágil. Por mais de uma vez Isidoro tem por supersticiosas algumas referências que cita. Mestre António só por uma vez discorda dos autores, como já notei acima. No resto, o reconhecimento das "auctoritates" faz-se sem qualquer crítica. A questão da referência é fundamental em qualquer discurso científico.

A Geografia de Ptolomeu, ou a Geografia de Estrabão, traduzida em latim em 1470, a História Natural de Plínio o Velho com 38 edições entre 1469 e 1532, gozam de uma difusão por toda a Europa de então. Mas o espírito medieval persiste. G. Gusdorf escreve que "Cristóvão Colombo descobriu o Novo Mundo sem sair do Antigo" (4). Sabe-se que um ano depois da primeira edição de Ptolomeu se imprime em Strasburg (1476) a mais célebre enciclopédia da Idade Média, o Speculum de Vincent de Beauvais que data do meio do século XIII. No Speculum naturale confluem os mais diversos autores: de Aristóteles a Plínio, a Séneca, Ptolomeu e ainda os enciclopedistas medievais: Isidoro de Sevilha ou Paulo Orósio. O século XV é o século das enciclopédias e das compilações. A geografia fantástica abunda como em demanda da localização do Paraíso terrestre e dos quatro rios que de lá correm. Um dos mitos mais persistentes é o do Preste João que a si próprio se chama monarca das Três índias". Os conceitos viajam, mas os mitos também: o mito do Preste João desloca-se das profundezas da Ásia para os confins da África. Pierre d'Ailly compõe o seu Imago Mundi, (1440), o Atlas Catalao de 1375 contribuíram muito para a difusão desta geografia fantástica. O nosso autor, quando passa aos Tratados sobre as coisas raras deste mundo, estriba-se fundamentalmente em autores antigos: aí constam Orósio, Isidoro, Plínio (5). Não falta a este relato a cor política que raro se dissimula. No mapamundi de Hamy de 1502 vemos no trono Preste João em África, o samorai nas índias, o Grand Khan na China. P. Gossin lembra algo que todos sabemos. Os homens e mulheres de letras e das ciências da Renascença não fazem distinção entre elementos fictícios e elementos factuais (6). Podemos falar de duas culturas: a cultura tradicional, simbólica, sem provas, e a cultura científica, com provas. É a maneira de distinguir a natureza da cultura. Por trás daquilo que os olhos vêem estará sempre o véu das Escrituras como se a palavra divina supostamente se imprimisse no mundo e o imprimisse com soberana, ordenadora, infalível força (7). Pesa mais a "auctoritas" dos antigos do que a geografia positiva. A verdade é mais de ordem filológica do que geográfica. Afinal, a geografia da Renascença não passa de uma ciência conjectural, que, "como as outras disciplinas da época mergulha num mundo de "fantasia, de imprecisão, de incerteza" (8). Neste ambiente ainda tão pouco definido, como não haveria de medrar o espaço do maravilhoso e do imaginário? Não admira, pois que gente tão bem armada para descrever o que realmente existe se perca logo em elocubrações sobre objectos e terras que não existem. Numa Broc cita Lévy­ Strauss que, algo exageradamente nota: "Os Espanhóis não foram tanto conquistar nações novas como verificar antigas lendas: as profecias do Antigo Testamento, os mitos greco-latinos como a Atlântida e as Amazonas; a esta herança judeo-cristã acrescentavam-se as lendas medievais como o Império do Preste João e a contribuição indiana: o Eldorado, a Fonte de Juvencio" (9). É evidente que os Tratados que descrevem a geografia de entre Douro e Minho têm a sua coerência interna, a sua objectividade e uma operacionalidade incontestável. A questão começa quando Mestre António passa a descrever a História Geográfica de várias partes do mundo, e agudiza-se mais ainda quando nos dá notícia de algumas cousas raras dele. A penetração dos portugueses na Etiópia é contemporânea da do Congo e querida pelo rei D. João II. Em 1487, Pêro da Covilhã é encarregado de estudar os caminhos de acesso ao Oceano Índico através do Mar Vermelho. Covilhã chega à corte do Preste João em 1493 e por aí ficará até à sua morte (1520). Este misterioso reino dará origem a uma literatura abundante. A obra principal é O Preste João das Índias, de Francisco Álvares (1540), companheiro do embaixador Rodrigo de Lima.

 
(1) Antonio Antelo Iglesias, Sobre el magisterio isidoriano en Ia Alta Edad Media: notas de historia literaria y cultural, Madrid, Instituto "Jerónimo Zurita", C.S.I.C., 1978. José Maria Fernando Catón, Las etimologías en Ia tradición manuscrita medieval estudiada por el Prof. Dr. Anspach, prólogo. Manuela C. Díaz y Diaz, Leon, Centro de Estudios e Investigación "San Isidoro". C.S.I.C., 1966. Carlos Canal, San Isidoro: Exposición de sus obras e indicaciones acerca de Ia influencia que han ejercido en Ia civilización espanola, Sevilla (s.n), 1897, Imp. De Ia Andalucia Moderna.

(2) P. Séjourné, Le dernier Père de I'Église : Saint Isidore de Séville et son rôle dans I'histoire du Droit canonique, Paris, 1929.

(3) Irene Augusta Arias, António Tovar y Aníbal Ruiz Moreno, La medicina en Ia Obra de San Isidoro, Vol. XIV, tomo II, Buenos Aires, Publicaciones del Instituto de Historia de la Medicina, 1950.

(4) G. Gusdorf, La révolution galiléenne, I, Paris, Payot, 1969,  p. 85.

(5) Armando Cortesão, Paulo Orósio, Presbítero Bracarence, Criador do Estudo da Geografia e da História na Idade Média, Separata de Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Ciências, tomo X, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar, 1966, pp. 1-15, (IV Livro). Paulo Orósio é o primeiro historiador e geógrafo do Occidente cristão que, a pedido de S. Agostinho, escreveu uma história universal e geografia do mundo então conhecido. A "História contra os pagãos" é a sua obra mais importante. Luis Molina, "Orosio y los Geógrafos Hispanomusulmanes", Separata de La Revista AI-Qantara, Vol. V - Fasc. 1 y 2 Madrid 1984. Mário Martins, Correntes da Filosofia Religiosa em Braga dos séculos IV a VII, Porto, 1950. Isidoro de Sevilla, Etimologías, Madrid, Talleres Gráficos Montana, BAC, 1951.       

(6) Pamela Gossin, “Literature and the Modern Physical Sciences”, in The Cambridge History of Science, vol. 5, (ed.) Mary Jo Nye, Cambridge University Press, 2003, p. 93.

(7) António Vieira, Improvisações sobre a ideia de Deus, &etc, 2005, p. 32.

(8) L. Febvre, Le problème de l'incroyance au XVI e siècle, Paris, Albin Michel, 2003, p. 367.

(9) Numa Broc, La Géographie de Ia Renaissance (1420-1620), Paris, Bibliothèque Nationale, 1980, p. 166.

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Última Actualização:
18-Sep-2006