As duas culturas: o cruzamento dos saberes (in)sustentáveis
                                                      José Augusto Mourão (UNL-DCC)

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Mestre António
Do Unicórnio
Influências
Ciência e ficção
O que é um objecto?
Coda

Mestre António

Homem do Renascimento, corógrafo, mais do que geógrafo, homem entre duas culturas, Mestre António de Guimarães termina no ano de 1512 a primeira descrição geográfica da região de Entre o Douro e Minho. O manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional e que aqui translado (1) levanta a hipótese que o manuscrito a partir do qual me debruço aqui poder ter sido impresso na época em que foi produzido. A única edição conhecida, no entanto, da Geografia de Entre Douro e Minho é a do ano de 1959 feita por Luciano Ribeiro (2). Porque esqueceu quem a publicou esta parte do manuscrito? Terá sido por acaso que, até hoje, esta parte do manuscrito nunca tivesse sido tratada, ou mesmo publicada? Quando chegou até nós este texto manuscrito? Falta de apoio institucional para conseguir a publicação? Em que meios se movia mestre António? Não poderá a censura inquisitorial preventiva ter invalidado a a sua posterior edição, dada a natureza híbrida da obra? Deixemos estas questões aos historiadores, não é esse o meu ofício.

No todo, esta obra compõe-se de quatro tratados. Se o mais conhecido é o primeiro "Tratado de Entre Douro e Minho", aquele que mais interessa à Geografia e História, uma série de outros pequenos "tratados", mais próximos das temáticas dos herbários, fabulários e bestiários permite adivinhar uma cosmovisão já em perda no confronto com os conhecimentos que as navegações portuguesas e espanholas inauguravam (3). A hibridação dos géneros não é um fenómeno recente, não resulta apenas da lógica cultural da globalização. A hibridação é fundamentalmente um fenómeno de imaginação dialógica (4). Os tratados visam a informação, o "sumário" das matérias e factos, numa visão que relaciona tradições com dados de vária ordem, mais fantasiosos do que, diríamos hoje, científicos. A epistemologia das ciências que durante séculos nos martelou a cabeça com enunciados do tipo: "só a ciência diz a verdade e a sua verdade impõe-se" tornaria este texto irrecebível, de tal modo aqui está patente a indistinção entre Literatura e Geografia, a glosa ininterrupta dos mesmos autores e passagens, a difícil transição da auctoritas ao auctor (5). É da contaminação figurativa que atravessa estes pequenos tratados que me vou ocupar (6), questionando-me acerca do cruzamento de saberes, sustentável num dado momento das crenças, insustentável quando, grosso modo, a modernidade entra em cena com o seu desígnio de purificação dos objectos e das crenças.

Não interessa aqui a história da recepção deste Tratado, mas as fontes de que parte. Quais teriam sido as suas fontes? O facto de ser Mordomo na Confraria do Serviço Santa Maria e a sua condição de cristão-novo pesam com certeza para aquilatar da qualidade do seu trabalho (7). Que o seu trabalho tenha aproveitado ao poder e aos poderes também não parece questionável. Mais do que a suposição das fontes, prefiro a leitura imanente do texto, o seu hibridismo, atendo-me aos autores que Mestre António nomeia no seu trabalho. Comecemos pelo / fl. 35. /

Tratado 2°
Noticia da Província
 de Armenia pello mesmo
Mestre Antonio Colorgião (sic)
Fisyquo
do Minho

O maravilhoso e o monstruoso estendem-se tanto à descrição da Arménia como à descrição do paraíso ou de animais (o Elefante) ou quimeras (o Unicórnio). Descreve-se  como a Arménia tomou este nome de Arménio, filho de Jasão, Conde de Tessália com a qual depois do dilúvio ficou a Arca que Noé levou cem anos a acabar. Nessas duas Arménias, uma alta e outra baixa, encontram-se coisas maravilhosas e para nós monstruosas. No fl. 36 o nosso autor convoca Santo Isidoro que no Livro 15 das Etimologias (8) diz estar a máquina do mundo partida em três partes - Ásia, África e Europa. De facto, no De Natura Rerum lê-se: "Regio autem terrea dividitur trifarie, e quipus una pars Europa, altera Asia, tertia Africa vocatur, Europam igitur ab Africa dividit mare ab extremis oceani finibus et Herculis columnis" (9). No verso do fl. 36 Mestre António volta ao dilúvio para justificar a divisão do mundo em três partes segundo os três filhos de Noé: ao primeiro filho coube a Ásia, a Jafet coube a Europa. África tomou este nome de Afer, filho de Abraão. Donde a denominação de Africos ou Africanos. No fl. 37 diz-se que a Europa se chama assim por causa de uma filha d'EI Rei Agonor da Líbia que levou roubada Rei Júpiter de Creta, e por seu amor chamou a esta terceira parte do mundo Europa por ser este nome daquela senhora. Outra fonte cita o nosso autor, desta feita, Orósio, que escreve no seu quarto Livro que ainda que a Europa seja muito menor em quantidade do que a Ásia, - nem África que é igual delas, ainda mais excelente em nobreza de povo, e generosidade de pessoas. Cita-se igualmente Plínio que diz no seu terceiro Livro que a Europa cria gentes de maiores forças, e de mais esforçados corações, e de forma, e rostos muito mais formosos do que a Ásia, e a África.

Passemos ao / fl. 38 / Tratado 3°.e,
Noticia Breve ~ Do Paraizo Terreal ~
 Segundo Valera.

Mestre António segue de perto várias fontes neste passo em que fala do Paraíso Terreal. Começa por citar Mosén Diego de Valera (10). O Paraíso está para o autor das Epistolas y Otros Varios Tratados no começo do Oriente. O nome é Grego, e interpreta-se como Orto de deleites no livro 16 das Etimologías de Isidoro. “Estão ali todos os géneros de árvores que há no mundo as quais não envelhecem, nem jamais perdem a folha; ali há toda a fruta dulcissima para comer, e mui deleitosa de ver como parece no segundo capítulo do Génesis; ali está a Árvore da vida; ali não há frio nem quentura, mas perpétua temperança de ares; no meio dele está uma fonte donde procedem quatro Rios, a saber Plisom, que também se chama Ganges, Giõ, que por outro nome se diz Nilo, Tigre, e Eufrates, onde depois do primeiro Padre Adão nenhum homem pode chegar, porque está junto do vivo fogo, que sobe tão alto que parece chegar junto do Céu, segundo diz Isidoro no lugar acima alegado, onde trata das Regiões; ali estão Elias e Enoel, incorruptos, e vivos”. O Mestre das histórias – Valera - diz que ali nenhuma cousa que viva seja pode morrer, nem diz ele, haja nenhum por maravilha, como em Ibérnia saibamos haver uma Ilha, na qual os homens não podem morrer, mas é necessário quando vem em tanta velhice, que se não podem mandar sejam tirados daquela Ilha para outra onde morrem. É tão alto este lugar onde o Paraiso está, segundo dizem alguns que casi (sic) parece igualar com o Céu Lunar. Outros dizem que naquela Fonte que o Paraíso está desce grande multidão de água com tão grande e impetuoso rugido que todos os que moram na Ilha que está junto daí nascem surdos, e daquela água se faz um grande Lago, e vai pelo centro da terra, e dele saem quatro fontes de que nascem os Rios acima ditos.

Passemos agora ao / fl. 40. / deparamos com o Tratado de algumas couzas e feras notaveis do Mun­do

Não se vê, do ponto de vista discursivo, que relação existe entre o que vem no fólio anterior e este. Na tradição saussurreana, a identidade duma palavra é o seu valor, num feixe rizomático de reenvios. A etimologia é uma figura retórica. Fiar-se na etimologia é fiar-se numa “proposição de valor”. Este tipo de textos corresponde bem àquilo que se chama a derivação narrativa, que é a possibilidade de parafrasear um lexema, segundo o princípio (paranomástico) que “a palavra é parábola” e que cada palavra é um feixe de histórias em potência (11). As “histórias” do Elefante, do Unicórnio, do Preste João são, afinal, derivações narrativas de palavras parabólicas. Deparamo-nos com nada menos que com o Elefante, que é para Mestre António o maior animal do mundo, e o que é mais “(...) destinto do homem e o que mais reconhe (sic) o benefício recebido”. É o animal mais belicoso e mais ousado, para as batalhas. Narra ele que “sobre cada Elefante armavam um castelo de madeira em que vão correndo com quarenta homens armados, os quais levam tão espantosa vista, e tão grande estrondo no correr, que não há cavalo, nem homem que contra eles ouse de pelejar, e quando o grande Alexandre entrou nas índias para as conquistar, e soube que os moradores delas traziam uma grande multidão de Elefantes para a batalha teve uma subtil (sic) astúcia (12) com que os venceu que fez fazer grandes Estátuas de arame, que eram cheias por dentro com fogo, levavam-nas diante de suas batalhas artificiosamente, e como os Elefantes com grão ímpeto chegassem a elas para as derrubar de tal maneira se queimaram que logo fugiram, e assim teve Alexandre victória dos Índios e Sotino diz que os Elefantes têm pouco menos siso; memória, e entendimento como pessoas humanas (sic), e por isso tudo o que lhe ensinam aprendem, e fazem, e entendem a língua dos que os ensinam, e amansam dos que o escreve Beda que se tomam em duas maneiras a primeira que levam duas moças virgens nuas à montanha onde eles moram as quais cantam o mais alto, e o melhor que podem e logo o maior Elefante, que no monte está se vem para elas, e deleita-se com as ver, e lambe-lhe os peitos, e assim adormece, e estando assim dormindo uma delas com um cutelo o fere na barriga, onde tem o couro mui delgado, e a outra põe debaixo dele um bacio, com que recebe o sangue e o Elefante está assim atónito que não se move, nem sabe de si, e então chegamos que o hão-de tomar, e atam-no com grande astúcia, e assim o levam: a segunda que conheci da sua guarida serão (sìc) as árvores onde se acostam, e com o grande peso deles caem as árvores sobre eles, e então chegam os que os hão-de tomar e dão-lhe muitas pancadas, e açoutes, é logo vem outros comer mas e fazem fugir os primeiros e levantam o Elefante caído o qual reconhecendo o benefício recebido se vai com eles assim do mestiço como se sempre o criaram o Elefante até os dez anos pode dobrar as mãos, e pés, e diante (13) todos as juntas se soldam de tal maneira que nem pode encurvar e nem deitar-se, e vive trezentos anos até que aí toda cresce, e nenhuma cousa faz dano sem mandado de seu senhor, ou fazendo-lhe mal, e quando se tem de ajuntar com a fêmea esconde-se no (14) mais espesso do monte, e se algum houve mata-o se o pode haver segundo diz Beda no Livro acima alegado”.

 
(1) “Mestre Antonio Natural de Guimarãens Medico e Surgião (sic) Na mesma Villa Compos. Hum Tractado das excellencias deste Douro e Minho que anda Manuscrito e tambem se dis fora impresso, mas eu o não vy. Floreçeo anno de 1533, citaçe no Martiriologio Portuguez e nas aduertençias fallando de S. Suzanna. Este Mestre Antonio, he differente do de sima, cita-ho Cardozo como Manuscrito Ao primeiro de Janeiro no Coment. Let. C.”
Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção de Reservados (Usuais), João Franco Barreto, Bibliotheca Luzitana. Autores Portuguezes,1ª Parte offerecida por João Franco Barreto seu Autor natural da cidade de Lxª., Vol. I, fl. 202 v (transcrição de Ana Cristina da Costa Gomes).

(2) Edição feita por Luciano Ribeiro, "Uma Descrição de Entre Douro e Minho por Mestre António", Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, Volume XXII, 1959, pp. 440 – 460.

(3) Ainda não tínhamos chegado à separação entre uma forma de vida prática, que não dsitingue o saber da ilusão, e uma forma de vida teórica. Luís Filipe Barreto, "A Ordem do Saber na Antropologia dos Descobrimentos", p. 35. Descobrimentos e Renascimento. Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI, 2ª ed., INCM, 1983.

(4) M. Bakhtin, The Dialogic Imagination. Four Essays, Austin, TX, University of Texas Press, 1981.

(5) E. Garin, L’Humanisme Italien, Paris, Albin Michel, 2006.

(6) Devo uma palavra de agradecimento e apreço à investigadora Ana Cristina da Costa Gomes que transcreveu a parte de que me vou ocupar da História Geográfica de várias partes do mundo e uma breve notícia de algumas cousas raras deles.

(7) Carlos Manuel Valentim, no seu trabalho "Uma corografia renacentista útil ao poder e aos poderes" refere as quatro cópias do manuscrito, três delas ainda inéditas.

(8) Etimologías, versión castellana total, por vez primera e introducciones particulares de Don Luis Cortes y Góngora; introducción general e índices científicos do Prof. Santiago Montero Diaz, Madrid (s.n.) 1951, Talleres Gráficos Montana. Jacques Fontaine estudou profusamente a difusão do De natura rerum na Europa de Sisebut a Carlos Magno in Isidoro de Seville Traité de Ia nature, Bordeaux, Féret et Fils, 1960.

(9) Isidoro de Seville, Traité de la nature, XLVIII, 2.

(10) Moisés Diego de Valera (1412-1488), Epístolas de Mosén Diego de Valera (recurso electrónico) reprodução de Ia ed. de Madrid, Miguel Ginesta, 1878. Cf. Clásicos Tavera, dir. José Andrès-Gallego. Textos Clásicos Sobre Los Reyes Católicos, Introducción y selección de Miguel Ángel Ladero Quesada.

(11) Paolo Fabbri, Segni del tempo. Un lessico politicamente scorretto, Roma, Meltemi, 2004, p. 136.

(12) Ms: "astucias".

(13) No manuscrito, o autor engana-se e escreve, por duas vezes, "dyam".

(14) Ms: "mo".

 

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Última Actualização:
18-Sep-2006