O JARDIM GNÓSTICO DO ÉDEN
Francisco Teixeira

INDEX

O JARDIM GNÓSTICO DO ÉDEN

Ponto 1
Ponto 2
Ponto 3
Ponto 4
Bibliografia
Notas

Ponto 2.

Vale a pena, entretanto, tentar descortinar as origens ou a vinculação antropológica desta ideia de transcendência ontológica do divino (que não histórica, como o mostra o caso do Cristianismo), vendo, por exemplo, como ela invoca um tipo de categorização profundamente vinculada à natureza corpórea do homem, que exige o estabelecimento de uma fronteira entre o eu e o outro para que o si mesmo pessoal se reconheça.

Só estabelecendo limites, fronteiras e domínios exclusivos, capazes de discernir com clareza o dentro e o fora, o que me ultrapassa e o que eu capturo, é que me posso pensar e pensar o mundo. Só na medida em que me sinto separado é que me posso sentir eu mesmo. Eu só sou eu na medida em que não sou o outro. Supor que eu estou presente a todas as coisas e, desde logo, a coisas que não vejo e não sinto directamente pelas forças do corpo, constitui em si mesmo um corte com as minhas possibilidades epistémico/ontológicas.

Em certo sentido, então, a noção de transcendência é co-natural à própria noção de homem corporal e psíquico. Só permitindo e pensando algo que me ultrapassa e que não sou eu é que me posso sentir e perceber eu mesmo. Daí até à ideia de absoluta transcendência, ou de transcendência divina, vai apenas um passo, já que, na verdade, a transcendência é a condição de possibilidade de existência de mim mesmo e dos outros. Os outros só existem na medida em que me são transcendentes. Se assim não fosse, se os outros não estivessem, de modo radical, para além de mim, eu não seria o que sou e eles outra coisa diferente de mim mesmo. Ora, a extensão desta pulsão da transcendência em mim (de que eu sou na medida em que não sou os outros e que os outros existem porque me são transcendentes) até à ideia de uma transcendência absoluta, à ideia da existência real de um ser que está para lá de todos os meus limites ontológicos, mas que, apesar disso, me segura e me funda, é não só psicologicamente natural como integralmente racional.

A explicação canónica do Genésis que parte da ideia de absoluta transcendência de Deus face ao homem e do pecado como desejo de ultrapassar esta transcendência (de querer ser como Deus) é, então, não só natural e racional como necessária em certo nível de compreensão do si mesmo humano e da natureza do religioso. A única limitação desta interpretação é que ela considera a ideia de transcendência como exclusiva da relação homem-Deus, não a aplicando, supostamente, à relação homem-homem e, claro, não a aplicando, por ontonomásia, à relação Deus-homem. Mais uma vez, não que o Cristianismo não pretenda (o que, pelo contrário, faz mesmo parte da sua natureza) dar um rosto, uma proximidade carnal a Deus, através da figura do Filho. Mas o Filho é tanto sinal de presença do divino na história como sinal da irredutibilidade do divino ao humano. E essa é a sua principal característica, no que, aliás, se aproxima excepcionalmente da imagem de um virtual mestre gnóstico, pneumático por excelência e, por isso, mesmo, irredutível às leis deste mundo, com a diferença, no que concerne ao cristianismo ortodoxo, de Jesus não poder ser encarado como um mestre gnóstico, mas como o verdadeiro Pai feito Filho, que morre realmente e realmente ressuscita.

Por outro lado, uma interpretação mais sofisticada do episódio do Génesis diz que o pecado original não é mais que o pecado do egotismo monadológico, incapaz de uma autocompreensão do si mesmo e da relação com o divino e com o outro em termos de relação e abertura e que a sujeição do si mesmo não seria aqui tanto política como ontológica, no sentido em que só a entrega, a “abertura” integral ao outro, e primordialmente a Deus, nos pode realizar como humanos. O que aqui está em causa é a ideia segundo a qual a natureza humana é humana na medida em que “se abre”, se relaciona integralmente com o outro e mistura com ele, o que implica, então, uma disposição para a abertura e para a relação, com todos os homens mas maximamente com Deus.

No entanto, de um ponto de vista que poderíamos chamar convencional, ou natural, o homem é dotado, enquanto sistema autopoiético, de determinismo estrutural e clausura operacional, o que o obriga, necessariamente, a “relacionar-se”, sempre, nos seus próprios termos, i.e., nos termos daquilo que lhe determina as suas estruturas de sentido, quer biológicas, quer psíquicas (3). Neste sentido, perfeitamente naturalista, aquilo que se chama “abertura relacional” não pode ser entendido como “troca ou abertura” ontológica ou semântica (que, no entanto, no caso em presença, serão sempre assimétricas) mas antes como perturbação ontológica ou semântica. “Relacionar-se”, do ponto de vista que aqui se defende, quer dizer dirigir-se ao outro e interpretar o outro de um ponto de vista sistémico, do seu próprio ponto de vista sistémico. A “abertura relacional”, então, é não só virtualmente e ontologicamente impossível como, na verdade, nem se vê como (de um ponto de vista convencional) pode ser desejável, uma vez que toda a abertura leva em si, sempre e por definição, uma componente de alienação, de afastamento de si mesmo, podendo conduzir e frequentemente conduzindo a uma reelaboração de si nos termos de outros, de um ponto de vista externo, provocando, é certo, uma desreificação de si, mas uma desreificação que não vem de dentro mas antes de fora, resultando numa reificação nos termos de outros.

Recapitulando este ponto, o problema que aqui se põe é que, do mesmo modo que Deus é transcendente relativamente ao homem, também, num nível convencional e exotérico, puramente naturalista, cada homem é transcendente ao outro, já que cada homem é cada homem só na medida em que se afasta (ontologicamente falando, que não politica ou eticamente) do outro homem. A teoria segundo a qual o homem é sobretudo “relação”, dinâmica de troca de consciências, obscurece que, do ponto de vista de uma relação convencional, simplesmente material, essa troca é impossível e essa condição de impossibilidade é, mesmo, a condição de possibilidade da existência dos homens como seres individuais. Na verdade, a teoria da “relação” abre espaço à alienação, ao esvaziamento dos mais fracos face aos mais fortes. O que isto quer dizer é que, do ponto de vista convencional, o afastamento dos outros é condição de possibilidade de humanização e do si mesmo, já que não há verdadeira humanização senão num horizonte de individuação.

Isto não quer dizer, naturalmente, que cada um não possa tentar colocar-se “no ponto de vista dos outros”, imaginando como poderia ser e como poderia experimentar-se outra configuração psíquica/sistémica/ontológica/semântica. Mas esse exercício não passa nunca de um “como se”, de uma experiência mental/experiêncial que visa, exactamente, superar o incontornável fechamento operacional e determinismo estrutural dos sistemas psíquicos autopoiéticos (Teixeira, 2000) que determinam a nossa identidade e a nossa ontologia individuais.

De qualquer modo, a ideia de que o homem depende de Deus (ou de outros homens) não é, bem entendido, uma ideia religiosa. O conceito de dependência põe em jogo uma categoria, a de poder, onde não se vislumbra dimensão religiosa e onde, pelo contrário, é o político que emerge, em toda a sua força, na verdade, “instaura uma ordem em relação à qual ninguém se pode distanciar [onde] nada, pois, é exterior … destruindo a identidade do mesmo (Levinas, 1988: 10). Outros conceitos, como os de “limite intransponível”, “ordem da Criação” ou de “regulação” são, também, eles mesmos semanticamente afins de uma categorização política (cujo operador fundamental é o poder), o que, para quem tenha olhos para ver, não deve surpreender, já que aquilo que está presente em Génesis, 3 é, em grande parte, uma luta agónica pelo poder cosmológico, com personagens bem definidos – Adão, Eva, Iavé, a Serpente –, em que se instancia, ou põe em jogo não só, nem sobretudo, o destino dos contendores mas antes o destino da humanidade no seu conjunto. Compreende-se, assim, que a exegese cristã ortodoxa contemporânea dê a este episódio tão grande marca política e faça do político e do poder as principais categoria de leitura e interpretação do episódio.

De qualquer modo, estas duas vias possíveis da interpretação ortodoxa católica do mito do Génesis (o pecado como desejo de pôr em causa a transcendência divina e como egotismo, como fechamento) são, bem entendido, contraditórias. Mas elas articulam-se. A ideia é a de que o homem deve abrir-se a Deus, relacionar-se com Deus, pondo nas Suas mãos o seu modo ontológico de ser, sem que, porém, isso implique pôr em causa a Sua transcendência, sem que isso implique querer ser da mesma natureza que Ele.

A relação adequada, por definição Católica, entre Deus e o homem é, então, como já vimos, uma relação assimétrica. Deus é-me transcendente mas eu não sou transcendente a Deus; Deus está absolutamente para além da natureza humana mas a natureza humana é criação de Deus e, nesse sentido, é-lhe devedora dessa natureza que Ele conhece e domina como ninguém, quer dizer, que Ele penetra como ninguém na sua natureza e contingências. Deste modo, eu devo abrir-me a Deus mas, simultaneamente, não aspirar à “percepção” ou ao toque da Sua natureza transcendente. Abertura relacional, bem entendido, inclusive com Deus, sobretudo com Deus, mas numa relação assimétrica com Ele, sem superação possível da Sua transcendência.

No entanto, a interpretação ortodoxa do Genésis tem outros problemas igualmente complexos, com particular destaque para a própria ideia de criação, nomeadamente a criação do homem. A criação, por parte Daquele que É absolutamente transcendente, ontologicamente assimétrico relativamente à ordem humana, é uma impossibilidade lógica e, mais do que isso, ontológica. Sendo absolutamente transcendente, o Criador enclausura-se em Si Mesmo e não é capaz da criatura, já que qualquer criatura sempre leva algo do criador. A ideia de Criatura é, assim, incompatível com a ideia de transcendência. Para existir criação e criatura o Criador tem de abdicar da transcendência. Por isso, aliás, é que os termos criador e criatura têm a mesma raiz. Em rigor ontológico, a criatura sempre há-de ser da mesma natureza que o criador, transportando, como o filho transporta, o código genético do pai. Algo desta exegese se refere no Livro do Génesis quando se diz que o “Homem é feito à imagem e semelhança de Deus”. Na verdade, as coisas não podiam, ou podem, ser de outro modo. A criatura leva sempre consigo a imagem do criador. Mas, nesse caso, o Criador deixa de ser transcendente à criatura. Os cabalistas medievais, deparando-se perante este problema com especial ansiedade e perspicácia (o problema da estranha assimetria entre Criador e criatura), disseram-nos, de forma exemplar, que se Deus criou o cosmos é porque, no acto de criar, produziu um movimento no tempo: um antes e um depois da criação (diferença que, porém, na eternidade, e por definição, não existe). No entanto, o tempo, o momento da criação, é ele mesmo efeito da criação e não podia existir antes daquilo que lhe deu início. A ideia, e o acto, da criação, cria ela mesma, então, um paradoxo irresolúvel, já que teria de existir tempo antes de existir temporalidade.

A criação divina enquanto criação a partir de algo que não é Deus, a partir de um não existente, não tem então, sustentação. Os cabalistas medievais, e não só, cientes destas dificuldades, reconfiguram, então, a ideia do nada a partir do qual ocorre a criação. E este nada não seria o vazio, ou o nulo dos seres de onde tudo viria a ser, um nada absoluto, mas, antes pelo contrário, o nada não seria menos que o Ser mais robusto de todos os seres, a Existência mais densa de todas as existências, para lá do nível humano de compreensão e percepção de todo o ser. O Ser para lá do nível convencional de ser (Scholem, 1996). O Nada não seria nada mais que o Próprio Deus.

Põe-se, então, a hipótese de que a criação não seja um algo mais relativamente à natureza do Criador mas antes uma emanação ou um processo de desdobramento do divino, a partir, naturalmente, de um nível de extraordinária generalidade (para utilizar um termo vulgar), até ao nosso nível ordinário. A criação ex-nhiilo, a partir do nada, não seria assim uma criação, em sentido comum, mas antes uma emanação de Deus, já que, como escreve Mestre Eckart, “Deus não é um ser nem é inteligível, não conhece isto nem aquilo. Por isso Deus está vazio de todas as coisas e por isso é todas as coisas” (1998: 78), já que “Deus nasceu no nada” (Ibid.: 91), deu-se a si mesmo num acto de distinção relativamente ao qual Nada existia previamente, i.e., existia o Nada como indeterminado ou Uno pré-existente, pré-conceptual, pré-Ser, pré-Pai.

Deste ponto de vista, esta lógica da “criação” resolveria o problema da criação ex-nhiilo, impossível por definição. A “criação” não seria verdadeiramente ex nhiilo nem verdadeiramente criação, mas resultaria antes do Um, do Nada de distinção, já existente que, aliás, continuaria por aí. Neste caso não haveria, verdadeiramente, do ponto de vista ontológico, transcendência. Deus e os homens não seriam, assim, dois, mas Um, embora em níveis de descrição, densidade e auto-compreensão diversos.

Assim sendo, a ideia, a sensação, a necessidade, de transcendência resultaria da natureza onto-biológica do humano, é certo, seria e é racional e natural, mas como um defeito, como uma espécie de obscuridade ou falta da condição humana, o mesmo é dizer, da circunstância em que a condição divina se fez, se faz, humana. A transcendência entre o humano e o divino faria, assim, sentido de um ponto de vista relativo, isto é, do ponto de vista de uma compreensão do mundo, do religioso e do divino confinados à nossa situação actual, às nossas limitadas perspectivas de conhecimento. Mas essa seria uma compreensão meramente relativa e, portanto, limitada, da natureza do humano e do divino que, do ponto de vista de uma compreensão mais profunda, absoluta, esotérica, sabe, sente, experimenta, que o humano e o divino não são de duas naturezas mas de uma só.

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