C+A+D+Á+V+E+R D+E+L+I+C+A+D+O V+I+R+T+U+A+L
O emite o, o retorna a O

DE VICENTE FRANZ CECIM
PARA VÍCTOR SOSA

Caro Víctor Sosa,
Hacemos el juego?

Te escrevo da Amazônia brasileira sem saber com quem falo e onde, em que sítio da bela Terra estás, para te dizer que também eu pressinto que as coisas são mesmo como insinuas na carta que enviaste a Floriano Martins e Claudio Willer na revista Agulha: Con esto me aventuro a una posible hipótesis, no del todo delirante: los fenómenos histórico-artístico-culturales responden a leyes de intermitencia universal que escapan a esos mismos agentes del cambio, es decir: Marinetti - como agente - tenía que haber existido para que algo (lo que por los hechos sabemos) se cumpliera en el mundo fenoménico, lo mismo con la generación beat con el surrealismo o con Novalis. É uma visão das manifestações visíveis no mundo, se incluindo ao lado de Novalis e dos poemas e das palavras e de cada letra dos poemas de Novalis e de cada fenda e pausa de espaço vazio entre elas, árvores, peixes, insetos, pedras, o monte Fuji, Quasímodo e a Catedral de Notre Dame de Paris, e os maus pensamentos do Tirano e os sonhos santos do Santo, como emersões de latências invisíveis, que estariam querendo, não se sabe suas ocultas razões, se fazerem tangíveis, afagáveis, torturáveis, sangrar ou beber la leche de Felipa que jorra em Juan Rulfo no seu conto Macário. Platão chamou de Idéias, e o belo ocidental Plotino concordou situando sua Fonte jorrante no Uno e o atroz oriental Chuang Tzu já havia se antecipado a eles situando essa Fonte no que chamou de Motor Sutil, porém, com sua percepção do Tao, enunciou não somente uma emissão do visível a partir do invisível mas também uma emissão reversa pelo visível de toda a sua visibilidade, toda sua materialidade, toda a sua manifestação perecível, efêmera, de volta ao invisível, numa operação que já seria para nós transparente como a fé de São Paulo quando dizia: Agora vejo através de um cristal escuro, mas amanhã verei como sou visto, mas só se já fôssemos o Homo Ludens que queria Johann Huizinga, sem deixarmos de ser o Homo Metafisicus que necessariamente somos, quer dizer: sendo transcendentais mas já capazes de nos jogarmos como bolas que também são pés que chutam e parceiros do jogo cósmico que nos joga, como entendia Angelus Silesius quando dizia À divindade agrada o jogo de criar, a criatura é o seu gosto de brincar, ficando desta frase ainda uma inquietante ambigüidade: não sabemos com exatidão a quem agrada o jogo de brincar, se à divindade, às criaturas ou, o que parece mais lógico, a ambos, criador e criaturas ao mesmo tempo. O que aponta, por conexões umbilicais, para a hipótese de um universo todo ele infante, e não sisudo, arfante e rígido como o mal-visto pela Razão. A frase de Chuang Tzu é exatamente esta: Tudo vem do Motor Sutil e a ele retorna. O emite o, o retorna a O. A questão mais evidente e eterna pergunta das coisas invisíveis quando se vêem, isto é: se tornam visíveis, e que sempre se fazem, desorientadas, desgrenhadas e deseixadas, girando em círculos freqüentemente vazios como as presenças quânticas de que falas talvez citando o ocidental Heisenberg ou até mesmo o oriental Gautama Buda quando eles, este com a voz da Religião, aquele com a voz da Ciência, afirmam em coro transtemporal que o Real é vazio, a eterna pergunta, então, que se fazem as gotas pingadas da Fonte, ou as atrevidas gotas de sêmen de que fala Rumi advertindo: - Não te atrevas, ó gota de sêmen, pois não sabes de onde vieste ao nascer, a te declarares contra a tua morte que te fará nascer Lá como antes nascente no Aqui - a eterna pergunta, então, que nos fazemos, nós-gotas salpicadas aqui e ali, semeadas em funções que nem sempre sabem quais e, por isso, acabam se atribuindo outras, deformadas, deformantes, falsos eixos que se-criam para si uma vez perdido o Eixo Original, a Pergunta de todos os tempos e, se não de todos os seres, pelo menos de todos os homens, e que tem sido sempre a mesma: Quem sou, de onde vim, para onde vou, essa pergunta poderia ser respondida pelo koan Zen que diz, citado por D. T. Suzuki: Quando vamos nos iniciar no Zen, uma montanha é uma montanha e um homem é um homem. Quando nos iniciamos no Zen, uma montanha e um homem são a mesma coisa. Quando já estamos iniciados no Zen, uma montanha novamente é uma montanha e um homem é novamente um homem. Algo mudou? O que mudou? Algo mudou sem mudar mudando. O Zen nos propõe um enigma ou uma solução para o enigma? O Ocidente costuma nos dar enigmas fáceis, e muitos deles falsos, matreiros, que ocultam em si uma garra de domínio erguida sobre nós, para resolvermos. O mais famoso deles que sempre vale a pena repetir na íntegra para que as sempre nascentes, em ondas, novas gerações humanas exercitem não sua credibilidade mas sua revolta, é aquele que pergunta Qual o animal que de manhã anda com quatro pernas, à tarde anda com duas e à noite com três? Os outros homens a que esse Enigma foi primeiro proposto não souberam responder porque a resposta estava neles próprios, em cada um em si, no seu próprio corpo, no seu próprio ser, no seu próprio rosto, e sobretudo na própria Sombra que cada um de si projeta em torno de si: citado do Zen em um dos livros visíveis do livro invisível de Andara: O homem vive imerso em sombras e se queixa de que tudo ao seu redor esteja escuro: pois nós acidentais não sabemos ver-nos, porque, homens fora de si, vivemos fora de nós e não sabemos quem fomos antes, lá nas estrelas, condição indispensável para sabermos o que somos agora sob as estrelas, para nós continuamos invisíveis ainda que visíveis e não vemos os outros também, nem muito claramente os caminhos sombrios por onde vamos: o espantoso quadro de Brueghel Cego guiando cegos mostra isso aos cegos que de fora da moldura quiserem ver. E mesmo o ocidental Édipo de Sófocles teve que responder ao Enigma da Esfinge como condição inegociável para não ser devorado por ela. Mas onde o Édipo de Sófocles em Colona já permaneceria mudo, o Édipo de Pasolini, mais homem revoltado de Camus e já mais Homo Ludens de Huizinga, se recusou a responder e com um murro no peito derrubou a Esfinge no abismo conquistando a sua liberdade: mesmo que depois tivesse que arrancar os olhos por isso, o que é uma outra forma de intimidação querendo nos dizer Insubmissos, submetei-vos para não vos dar mal como o Édipo pasoliniano: e no entanto é só assim que se conquista a liberdade: reanexando às nossas débeis omoplatas numa operação primária, primitiva as Asas que se desprenderam de nós sob a atração da Lei da Gravidade e caíram pelo chão atraídas pelo mal exemplo científico da Maçã de Newton, que ainda via com os olhos enquanto Blake já gritava: - Mas eu vejo através dos meus olhos - e voaram para longe de nós, e foram se esquecendo de nós, pois esquecemos delas, e hoje jazem nos pântanos arquetípicos, onde Jung desafia o Monstro do Lago Ness dentro de nós, e onde nos cabe buscá-las, lavá-las com a água amarga dos olhos: diz-se disso: lágrimas: e implorar perdão e reiniciar o vôo original, mesmo correndo o risco desejável de colidir no ar com a Ave do Divino Espírito Santo: e no entanto é só assim que realiza a recusa do Édipo pasoliniano em se submeter a qualquer jogo instituído por tradições tiranas e que não fosse instituído por ele mesmo, um direito a conquistar das novas vítimas em estado ainda adiado de desejável, inadiável insurreição nestes nossos tempos que insistem em se afundar cobrindo o rosto em velhos lençóis esgotados de promessas de amor da vida jamais cumpridas, abelhas aprisionadas em seu mel, como as chamava Éluard. Mas um direito a ser conquistado por novos Narcisos que, ao contrário do antigo, preservando porém a intensidade do seu ensimesmamento arcaico, como o fascinado Parcifal em transe paralisado diante das três gotas de sangue rubro na alva neve que lhe evocavam o rubor e a alvura da face de sua amada, e que só será conquistado se esse novo Narciso for capaz de ver não apenas o seu rosto de terra idealizado, e, sim, desvelando esse rosto, a máscara de vazio do Invisível que o recobre a máscara de homem visível que usa. Não que devamos desprezar os subúrbios do ser: a carne, ali onde ele, o Ser, é mais ossos, mais tutanos e mais tristes são as vértebras que já foram Asas, e hoje se vêem famintas de ar livre, lá no fundo, não é disso que se trata: porque a carne é ainda uma manifestação da metafísica do Invisível e até mesmo por isso que aqui se afirma: por ela ser, do Invisível, sua extremidade mais carente e despojada de eternidade. Foi o que aprendi com Plotino. E nesse sentido Cristo deu um passo à frente alucinado de esperanças sem pudor do absurdo, para tudo o que é efêmero e se desgasta sob a luz ardente dos sóis e as luzes pálidas das luas frias, quando pronunciou Ordet, a Palavra e anunciou a Ressurreição da Carne junto com a elevação do espírito em sua peregrinação de retorno ao Motor Sutil. Então, voltando ao homem e à montanha do Zen, ao Koan oriental que talvez contenha a resposta ansiosamente desejada pelo Ocidente, esta: Quem somos, de onde viemos e para onde vamos? TALVEZ ETERNAMENTE UMA PERGUNTA FEITA POR UM MUDO A UM SURDO, e assim nos damos contra um muro, como, ele novamente, escreveu Paul Éluard em seu poema assim chamado, pois nesta Terra dividida em hemisférios, com os nossos cérebros também em si mesmos reafirmando essa divisão e com a nossa viciada, mas não como o comodius vicus de Vico de que falava Joyce sobre o Eterno Retorno, que é outra coisa e introduz uma perplexidade e uma nuance ainda mais complicadora em nossa percepção das coisas visíveis como manifestações a priori determinadas de latências invisíveis, o que encontramos também em l.200, contemporaneamente a Plotino, mas no outro hemisfério cerebral da Terra, no belo budista mahayana Nagarjuna e em sua doutrina da Originação Dependente, então, se dizia, em nós, com nossa mente dual, erguemos muitos muros com nossas toscas pragmáticas dialéticas. Mas existe mesmo um muro metafísico, ou ele é uma Muralha da China Ilusória que nossos maus construtores de homens, de vida, de liberdades ergueram atrás & diante de nós, nos encurralando fora da hipótese de um Paraíso Recuperado? Como quando Kafka nos adverte: - Por impaciência perdemos o Paraíso, por impaciência não voltamos a ele. São muitas as perguntas, um labirinto de veredas que nem a técnica do Giro de São Francisco de Assis nos poderiam recomendar, em seu Lance de Dados Ocasional, como Aquela-que-leva-à-salvação-da- Obscuridade à nossa volta, dentro de nós também. Até que o Oriente vem novamente em nosso socorro quando nos recomenda: Seja água, que não tem forma fixa e que diante do obstáculo da pedra não perde a sua natureza de água, por mimética com a pedra, nem desiste de seu curso, mas paciente e humildemente: falsa humildade, pois na verdade parece mais a astúcia do matreiro Ulisses de Homero: adapta-se à circunstância e se desvia por um dos lados ou, pacientemente, se deixa acumular, crescer, e passa por cima da pedra, ou, ainda, se aproveitando do fato de ser água, moldável, se embebe na terra e passa por baixo da pedra, e de todos os modos sempre ultrapassa o obstáculo rígido graças à sua moleza estratégica. Esta é uma recomendação sensata, possível, que nos vem desde os Vedas, os hinos Upanishads, mas quantos de nós ocidentais soubemos entender e praticar essa simples lição para crianças? Mais velhos, mais adultos, e cada vez mais distantes da questão que vai ficando lá em cima deste texto à medida que tateamos uma resposta para ela e vamos caindo mais baixo, aparentemente renovando a nossa Queda Mítica do Paraíso Original, enquanto vamos tombando texto abaixo, rolando para baixo como a Esfinge derrubada no Abismo por Pasolini, em que podemos nos agarrar ocidentalmente, acidentalmente? Como ele, Pasolini não conseguiu se agarrar à Vida no massacre de Ostia. No Dadá, talvez, no ludens dadá de Tristan Tzara, que, já Homo Ludens, dizia: Os elefantes são contagiosos. O emite o, o retorna a O. Foi dito lá encima. O emite o, o retorna a O aparentemente nem está tão distante assim da metafísica divisora dos Escolásticos como Guilherme de Ockham, que dizia: Entendo por natureza uma coisa absoluta, positiva e que acontece existir fora da alma. O que se interroga, a que se quer interrogada, uma vez aceita como verdade a afirmativa de que – tu, Victor, dizes: Marinetti - como agente - tenía que haber existido para que algo (lo que por los hechos sabemos) se cumpliera en el mundo fenoménico, lo mismo con la generación beat con el surrealismo o con Novalis, é a questão: Por que o invisível se quis visível? E a resposta a esta questão dada por Dadá, instantaneamente, será: Para ser contagiado pela visibilidade. Se aceitamos esta resposta que só o Homo Ludens poderia dar, fusão, fissão nuclear da Mentira na Verdade, uma outra possibilidade não-dual, mas inversa, pois não implode uma mônada de Leibnitz para multiplicá-la em tantas verdades e tantas mentiras mais, e sim para fundi-la mais profundamente em sua própria anulação, buraco negro em que o humor se liberta e nos liberta como hipótese irreprimível, então essa resposta lúdica nos lança para suas conseqüências fatais, que imitando o método de Descartes formulamos, mesmo que ainda com algum terror ancestral em nossas gargantas, mas também já com um riso nervoso e perverso querendo afluir aos nossos lábios, que fremem: a formulação, rigorosa, de que: Se O emite o, que retornará a O, então somos, estamos aqui visíveis e iremos, retornaremos para o invisível porque temos uma missão: contagiar o Invisível de Visibilidade. E se realmente À divindade agrada o jogo de criar e a criatura é o seu gosto de brincar, como diz Angelus Silesius, nossa mais atroz e feroz brincadeira será transformar todo o eterno em efêmero. Todo Nirvana em Sansara? Ohhh, horror, só Sabor. Mardoror. No vale Novalis? Mas não creio que Novalis seja um cúmplice adequado a esse Jogo, antes, por ele, creio que teremos, após a contaminação de O por o, a pura abolição de o e de O, como dualidades conflitantes, e o surgimento, como resultado do contágio do divino pelo humano, do sagrado pelo profano, de uma nova mônada, relativa e absoluta ao mesmo tempo, simultaneamente eterna e efêmera, esta: oO, e tudo recomeçando mais tarde, mas dessa vez inversamente, quem sabe, pela emissão de O por o, pelo retorno a o de O.

Dizes também, Víctor: Esta es una visión que habrá que discutir y desarrollar a la luz de las nuevas perplejidades, que la físicia y, sobre todo, la biología contemporánea, están aportando para el entendimiento humano. Poderíamos, quem sabe, continuar este nosso diálogo pós-platônico incluindo este espectro de que falas, e para isso eu te lanço a seguinte pergunta: Conheces os Campos Morfogenéticos descobertos, ou Sonhados, por Rupert Sheldrake? Assim como tu, não tão alucinado como parece, ele afirma, não literalmente, que, graças aos campos morfogenéticos, basta um único indivíduo de uma espécie ter uma experiência inédita para sua espécie que imediatamente o conhecimento dessa experiência passa a ser propriedade, atributo, Saber por contaminação obscura, de toda a espécie.

Também se trata, aqui, de uma outra forma de contágio.

Seríamos nós dois um só, lúdicos e morfogenéticos hasta este punto?

Hacemos el juego?

Fraternalmente,

Vicente Franz Cecim, escritor e membro implicante da Ordem Implicada de David Bohm. Também de Ordem Implícita de Jacob Boehme.

Belém, Amazônia, Brasil.

Iniciado em 6 de setembro de 2001 & concluído precisamente hoje, em 6 de setembro de 2003, por puro acaso atemporal.

andara@nautilus.com.br
www.culturapara.com.br Ver in Literatura: Vicente Franz Cecim