O REINO DE DEUS, OS TRÊS DA NATUREZA E O DE PORTUGAL
ANA LUÍSA JANEIRA

OS REINOS DA NATUREZA [3]
No momento da chegada ao Real Museu do Paço de Nossa Senhora da Ajuda, sua primeira morada lisboeta, a sala, onde se encontra o Bloco de Cobre Nativo actualmente, a quem pertencia e para que servia? Pertencia ao Colégio dos Nobres (1761-1837) e deveria servir para uma aula de escrita. Na altura em que deixou de ser a primeira e única escola oficial portuguesa habilitada com um ensino de ciências (extinto em 1772), o Colégio dos Nobres apresentava uma identificação e distribuição dos espaços onde é nítida a preocupação de disciplinar e de singularizar o tempo quotidiano de professores e de alunos, segundo uma organização com quatro séries distintas, embora não hierarquizadas.

A série educativa religiosa (andar térreo) visava a disciplina geral do individuo, através da aquisição de hábitos cristãos. Centrada na Igreja, maior volume da série, as actividades anuais do Colégio começavam com os Exercícios Espirituais e prolongavam-se por exames interiores, com destaque para o exame de consciên­cia em face da Divina Majestade. A série educativa física (andar térreo) visava o desenvolvimento, o aperfeiçoamento e o embelezamento do corpo, pela cultura física. Dispunha de um refeitório (maior superfície no edifício central), de um picadeiro (maior volume total) onde o exame contava às vezes com a presença do Rei, e de aulas de desporto (esgrima, florete, etc). A série educativa literário-científica (andar térreo e andar superior) visava a informação e formação preliminar nas letras e ciências. Dispondo de salas para aulas (Gramática, Retórica, Grego, Filosofia, Línguas, Matemática, Física, Desenho) é digno de destaque a existência da Sala das Grandes Máquinas da Física e da Biblioteca (21 andar), onde era privilegiada a impressão de livros de Matemá­tica, e da Casa dos Actos (maior volume), onde os exames conta­vam, por vezes, com a

presença do Rei. A série das séries (frontaria) visava servir um sistema autosufi­ciente e autoregulado. O controle e vigilância exercia-se nos torreões, pela presença da polícia e nos cárceres.O internamento comportava uma camarata, casas de habitação dos professores, etc. Os espaços vazios (exemplo, o pátio, maior volume da série) são integrados num sistema fechado. Estas quatro séries traduzem, pela sua distribuição espacial, um perfil antropológico de tipo iluminista: o corpo (série educativa fisica), o intelecto (série educativa literário-científica) e a razão, enquanto prática moral (série educativa religiosa) ou enquanto ordem soberana e universal (série das séries).

As obras pedagógicas da época, a intervenção consecutiva do Governo através de legislação e os relatório anuais feitos pelo Director-Geral dos Estudos revelam uma produção discursiva, onde emergem alguns enun­ciados sobre a ideia de ciência que orientava a iniciação feita no Colégio. Ideia que se perfila, quer por aquilo que nega (perspectiva negati­vista), quer por aquilo que propõe (perspectiva positiva): - descrédito face à erudição livresca, - expectativa prestigiante perante as ciências exactas.Para tal entusiasmo concorrem principalmente o lugar de destaque ocupado pela Física e pela Geometria e a importância atribuida às novas técnicas e novos aparelhos. Vejamos a distribuição deste ensino segundo alguns anos lectivos: 1767 - início do ensino de Matemática e do privilégio de impressão de livros de Matemática; 1768 - início do ensino de Algebra e de Física Experimental; 1769 -suspenção do ensino da Física, porque não havia aulas de Geometria; 1772 - abolição do ensino científico. Muito embora fosse este o contexto, segundo informações colhidas no livro de Rómulo de Carvalho, pode dizer-se, em síntese, que a Física e a Algebra só funcionaram dois anos; a Geometria e a Aritmética só funcionaram três anos, entre 1766 e 1772. Para marcar ainda mais e de uma forma mais incisiva como era a sua situação de crise permanente e de inoperância completa, retiram­se estes dados: dos cinco alunos que frequentaram o curso completo, dois não foram para a Univer­sidade de Coimbra, dois foram para Direito e um só foi para a Faculdade de Matemática. Segundo Rómulo de Carvalho, uma das causas que terá motivado grandemente este insucesso-catástrofe provém da ciência moderna dever conjugar observação experimental e exploração teórica elementar, havendo poucos professores preparados para tal. Embora iluminados e obscurecidos pelo fulgor de Locke e de Newton, interpretados segundo teses experimentalistas, embora defendendo ideias novas, os mentores desta instituição - fortemente ecléticos e inclinados para sobrevalorizarem a prática, a experimentação e o a posteriori  - contribuiram para que a vida e a morte do ensino das ciências, pois permaneciam vitimados por um debate de fundo. Escondido, este debate nunca recebeu deles o aprofundamento que merecia: - qual é o lugar da teoria e da prática no avanço do método experimental? - qual é a importância dos a priori e dos a posteriori  na teoria do conhecimento? Neste momento, avance-se que, para além de muitas outras causas e de tantas outras condições (decadência institucional de tipo político-social), o Colégio dos Nobres, ao ver extinto o seu ensino científico em 1772, nunca poderia ter a oportunidade de beneficiar do período crítico de Emmanuel Kant (1770-1790), nomeadamente na definição do juízo sintético a priori, que viria a colocar a questão e o debate no seu devido lugar. A correspondência entre as regras que organizam o espaço segundo as quatro séries analisadas e a lógica que preside ao discurso abrindo lugar para o ensino das ciências só por três anos, é possibili­tada pelo sistema epistémico que passo a definir, a partir dos Estatutos  datados de 1761. Este sistema mental funciona segundo conexões que determinam três níveis, três relações e três pólos privilegiados: - a natureza educa-se, - para se conseguir uma elite educada e ordenada é preciso capitalizar esforços pelo internato, - educar pressupõe um léxico discipli­nar, que inclui o ensino das ciências e visa uma normatividade social. Que disciplinas cientificas eram ministradas no Colégio dos Nobres? As disciplinas científicas previstas pelos títulos 9, 10 e 11 eram a Matemática, a Arquitectura Militar, Civil e o Desenho, a Física Teórica e Experimental. Todas pertencem à razão segundo a árvore da Encyclopédie, embora a Arquitectura inclua também a memória e a imaginação. O estudo da Matemática, reconhecido como importante para a milícia (Terra e Mar), incluía um ano obrigatório; no caso da carrei­ra das armas, três anos obrigatórios. Os estudos eram distribuídos em aulas teóricas e aulas teórico-práticas (problemas). A actividade deste ensino exigiu traduções e impressões de que o Colégio tinha o privilégio em Portugal. O estudo da Arquitectura implicava a aquisição de conhecimentos úteis para projectar e edificar fortificações, e a informação pormenorizada sobre medidas e projecções: de manhã, aulas especulativas, de tarde, prática de desenho. O estudo da Física (Física Experimental só para os que iam para Medecina) comportava o valor da História da Física, para instruir e não para ostentar, transmitindo só o que é sólido e proveitoso. Ultima parte da Filosofia, o estudo da Física deveria limitar-se ao demonstrado ou experimentado, pela Geometria e o Cálculo. As aulas eram acompanhadas de experiências e demonstrações. Para o efeito, possuía o melhor Gabinete de Física na Europa, com aparelhos comprados na Inglaterra ou feitos propositadamente pelo célebre construtor, Joaquim José Reis. Este equipamento transitou para a Universidade de Coimbra em 1772. O substrato natural de cada indivíduo, mesmo quando ele é nobre, necessita de uma intervenção cultural, luz a iluminar a mocidade. Nasce-se nobre. Porém, o verdadeiro nobre é-o por educaç­ão.A disciplina do corpo e do entendimento pressupõe um período de internamento, isto é, um espaço confinado e um tempo organizado, como acontece no caso da camarata, aproveitamento do espaço e investimento no tempo. Na verdade, numa camarata, uma só voz pode e deve controlar todos. A situação de internamento encontrava tradição em Portugal: bem sucedida (Escola de Sagres), mal sucedida (Colégios de Dom Manuel e de Dom João III). Qual o contributo que se pode esperar das ciências? Organizam um país, organizam um exército. Porquê?

Porque se opõem ao ócio e à desordem. Porque defendem o método e os hábitos de trabalho. O exercício intelectual por meio das ciências impõe regras e pressupõe leis. O rigor científico serve para organizar, controlar, gerir, capitalizar o espaço e o tempo reque­ridos pelo Iluminismo. A par disso, a modernidade favorece a necessidade, por vezes trágica, de colmatar incertezas com artificialismos de segurança, procurados por várias vias, nomeadamente através de colecções, como se verifica na Universidade de Coimbra reformada (!772). Este tipo de coleccionismo,  com facetas várias, viria a desembocar numa outra prática da mesma família - o consumismo de mais recente existência. O coleccionador, seja ele movido por simples amadorismo misturado com prazer lúdico, ou por interesses de descoberta mais especificamente científicos, insiste em signos concebidos a partir das coisas e nos seus modos de representação, e persiste no fascínio cumulativo, reunindo naturalia (produtos dos Três Reinos) ou artificialia (armas, medalhas, relógios, antiguidades, instrumentos, etc.). Nuns casos, predominam preocupações dirigidas pela desejo de captar a distribuição lógica que corresponde ao sistema da natura  e da cultura, noutros casos sobressai  a descrição enumerativa. Aqui importa inventariar. Ali importa sintetizar. O ecletismo entre engenho e arte, a síncrese entre arte e natureza, destinam-se a uma unidade onde se concretiza uma tabela axiológica, mistura de raridades e curiosidades: o estranho, o insólito primam pela sedução. A inteligibilidade das coisas serve-se de uma categoria: o espaço. Herbários. Mesas com minerais. Frascos com animalia exótica. Caixas de medalhas. Séries de retratos. Espacializam-se as coisas. Espacializa-se o mundo. Enquanto isso, o tempo continua ausente ou pelo menos bastante escondido. O sistema (o todo obtido através das partes) mais ligado a Aristóteles, ou o inventário (descrição exaustiva), dependendo da tradição nascida com Plínio, são maneiras de representar que fazem intervir a ordem dos coexistentes, à margem do que virá a ser, posteriormente, o predomínio da ordem das sucessões. Pensar é espacializar e espacializar é classificar. Por um lado, as regras que presidem à colecção decorrem da abundância com que a realidade se mostra por via dos Novos Mundos. Por outro lado, o choque produzido pela luxúria das coisas exóticas (exótico = aquilo de que não se ouviu falar, de que se não percebe a fala) exige um esforço de ordem com foros de mathesis universalis. O sistema epistémico regulador desta expressão - onde o escasso é valorado, como se valora o diferente -  especifica um articulado muito próprio em termos de universo lógico. Com  efeito, se é verdade que o fascínio pelo outro subjaz, também é verdade que, no limite, a colecção mede-se pela sua capacidade de albergar quantidades e qualidades definidas pelos contornos do mesmo. Quem organiza uma colecção procura possuir o maior número de exemplares significativos, muitas vezes diferentes só em pormenores mínimos, no contexto de uma pletora remissível a um horizonte de semelhança, porque todos os objectos da colecção possuem pontos comuns. Assim sendo, estamos perante uma realidade  fechada, contendo um mundo aberto, onde seres naturais ou artificiais (pouco importa) se misturam, sempre que apresentem características de maravilhoso: do  invulgar ao extraordinário. As provas de capacidade requeridas na escolha (quem selecciona), na manutenção (quem possue) ou no apreço (quem admira) passam por uma função muito precisa - a capacidade de olha/ver - complementada, em situações experimentais, pela capacidade de observar. Embora nem sempre aconteça - porque a actividade do *cole-ctor+ corresponde a uma função que o *coleccionador+ nem sempre  assume - esta componente é particularmente fundamental quando o espírito do coleccionador coexiste com a tarefa de colector, como se verifica frequentemente nos saberes em torno dos Três Reinos da Natureza. As regras do sistema epistémico, que criam condições para a emergência deste espírito setecentista, possibilitam também  espaços concretos para as colecções. Câmaras de Curiosidades. Câmaras de Maravilhas. Como os Observatórios Astronómicos, os Jardins Botânicos, os Laboratórios de Química, os Museus de História Natural ou os Gabinetes de Física, estas espacialidades, por mundanas que sejam, preservam saberes e práticas de conhecimento onde coabitam poderes e prazeres. Galerias, armários e vitrines acolhem representantes e representações da Natureza, espalhados por quadros, tabelas e caixas. Espalhados. Mas não desordenados.  Porque a descoberta da ordem dos seres, a taxionomia reguladora e a sistemática estruturante traduzem o desejo de guardar, o desejo de representar, e um dinamismo cultural tendendo para a necessidade de evocar. Circunstâncias que mobilizam  gestos em favor do dever de tornar público o acto de expor, a exposição. O gabinete toma como ideal de realização o imperativo de se constituir como  resumo do universo, miniatura do grande espectáculo que é o mundo da criação: divina ou humana. E porque esta é ordenável, mesmo a nível do (d)escrever,  são precisos catálogos e inventários, destinados a classificar o material. Ordenando o que foi coligido, porque se vê no mundo ou pelo que se recebe por tradição, catálogos e inventários servem como exemplos de enumeração e de organização, ao mesmo tempo que revelam facetas e poderes do coleccionador. Por meio deles, este tem presente, a qualquer momento, como se desenha a *cartografia+ geral do seu património, ao mesmo tempo que os utiliza para dar a conhecer as *viagens+ possíveis nos *territórios+ criados pelas suas representações. Daí que estes lugares, onde se acolhe o que se vê ou se imagina, vão a par com espaços contendo outros objectos a guardar e salvaguardar - os livros e  documentos  - e outros modos de mostrar outras maneiras de fazer colecção - as bibliotecas e arquivos -. É por isso que os Gabinetes de Curiosidades e as Bibliotecas de Raridades apresentam tantas semelhanças entre si. De um ponto de vista exterior: pé direito imponente; à volta, junto das paredes, móveis e vitrines; no meio, vitrines centrais e mesas. Em relação aos conteúdos: construções destinadas a preservar materialidades que o Entendimento selecciona entre aquilo que a Sabedoria Divina criou e os produtos onde a Memória, a Razão e a Imaginação  inscrevem as suas melhores marcas. A colecção encontra a biblioteca... L'Encyclopédie fecha o século. 

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