O SEGREDO DEBAIXO DE UMA PEDRA
José Manuel Anes

No Diálogo Terceiro da Parte Segunda do ENNOEA, são referidos, ainda mais enigmativamente, os arcanos relativos ao Mercúrio Filosófico e à sua preparação. Aqui o "discurso" é, progressivamente, mais enigmático, mais hermético, e o emprego das alegorias e dos símbolos passa a ser dominante, se não mesmo exclusivo. Estamos pois na senda do discurso simbólico de que nos fala H. Eco, mas que aqui coexiste, num mesmo autor e numa mesma obra, contrariamente ao que ele afirma (aceitando apenas excepções em alquimistas do século XX).

Começemos pelos seguintes três enigmas alquímicos:

 - . a matéria da nossa é o ninho onde nasce, e se cria a nossa Águia . é a chave mestra, que abre as portas do Palácio encentado  da Natureza50 

 - Ainda que esta matéria não entra na Obra, serve de meio para alcançar, e conhecer a matéria que nela entra. Esta é composta dos quatro elementos51 

- Esta matéria tem corpo, alma, e espírito, porque é filha do espírito universal52 

Não é agora, a ocasião de proceder a uma análise exaustiva da via operativa do ENNOEA (nem sabemos sinceramente se, nesta fase, tal será possível, na totalidade), pelo que apenas veremos, por alto, a estrutura da sua Obra Grande. Mas é importante referir, antes disso a sua concepção de Espírito Universal - em consonância total com a tradição alquímica -, o qual será uma substância puríssima, penetrantíssima, (.) impalpável, invisível e imperceptível (.)  que desce do Céu empíreo para os mixtos,e que sobe do centro de terra, comunicando-lhe as suas virtudes, e embebendo-os, se faz corporal, constituindo assim o Sal, que é a primeira matéria de todo o composto. Na verdade, esse Espírito Universal  - na verdade o Pai da Pedra Filosofal - é idêntico (mas multiforme) em todos os mixtos, sendo a quinta essência da Natureza, contendo os três princípios, que são a mesma substância radical: o enxofre, ou fogo natural, o mercúrio, ou húmido natural e o sal, ou seco radical , que liga os outros dois. 53 

Voltando ao Mercúrio Filosófico, Anselmo Caetano diz-nos que ele é a Matéria do Lapis, depois do seu nascimento (isto é, quando o cálido e o húmido, estão unidos perlo seco). Os sucessivos nomes que (ela, matéria, ou ele, mercúrio) vai tomar - o Mercúrio, o Enxofre, etc. - são estados da matéria, que resultam dos graus de calor  que o Mercúrio teve na  digestão - os quais serão "explicados" no parágrafo IV deste Diálogo Terceiro do ENNOEA. Assim sendo, o Mercúrio e o Enxofre serão qualidades diferentes, resultantes de diversos graus digestão de uma só matéria54 . Então, Quando pela força do fogo se destila a humidade radical, juntamente com ela se destila o seu natural calor que tem cor de Ouro (.) o Ouro Filosófico - denominado Enxofre, Alma, ou Ouro, porque a sua cor parece Ouro.

É agora a altura de mencionarmos um relato sumanente simbólico que, longe de se referir a experiências místico-esotéricas, parece referir-se a experiências bem tangíveis de natureza operativo-laboratorial. Trata-se do Casamento hermético do Leão com a Águia, o qual introduz aquilo que vai ser discutido no parágrafo seguinte. Vejamos as suas partes mais importantes (que satisfarão, eventualmente, a imaginação de algum psicanalista, ou jungiano):

Tomai a Virgem com asas, lavada, limpa, e prenha da Seminal, e espiritual matéria do primeiro contacto masculino, ficando ilesa a glória da sua virgindade, com as faces tintas de roxo; ajuntai-a com o segundo sujeito masculino sem suspeita, nem perigo de adultério; e por fim parirá um venerável fruto de ambos os sexos, do qual sairá uma imortal prosápia de poderosíssimos Reis (.) Nestes ajuntamentos de que faço menção, tudo é puro, sem mancha de vício: não se perde a virgindade, nem se comete adultério. Juntai pois a Águia com o Leão, e escondei-os no seu claustro diáfano, com a porta muito bem tapada, para que não saia por ela a sua respiração, ou lhe entre o ar estranho. A Águia acometendo o Leão, o despedeçará e o comerá. E logo adormecerá com um profundo, e dilatado sono, inchando-lhe tanto o estômago, que feita hidrópica, se converterá com admirável metamorfose num Corvo muito negro; este perdendo paulatinamente as penas, principiará a voar, e com o seu vôo se remontará tanto, que sacudirá sobre si mesmo água das núvens, até que ficando molhado dispa de boa vontade as asas, e descendo por falta delas, se converta em um branquíssimo Cisne 55 .

Sem pretender fazer a exegese completa deste texto - parecido, aliás, a outros textos de autores clássicos que referem as bodas alquímicas do enxofre e do mercúrio -, a qual necessitaria de ser vista também  à luz daquilo que Anselmo Caetano escreve adiante, quando refere os graus de digestão,  parece-nos não ser de excluir a hipótese de que a Virgem com asas, seja o Mercúrio, ou Azougue o qual ao sublimar-se, voa - o que segundo Filaleto é uma Águia -, podendo transportar com ele um Ouro, intrínseco (a sua semente radical) ou extrínseco (o Ouro "vulgar"). Este é o fundamento da "via das amálgamas"

Através da discussão dos meios e extremos da Crisopeia e das quatro digestões Herméticas, expõe Anselmo Caetano a Obra alquímica que propõe e segue. Desde logo, os meios operativos, ou Chaves da Obra Grande, - que vai do Mercúrio Filosófico e dos Metais Perfeitos até ao Elixir Perfeito - os quais poremos em correspondência com os meios materiais  ou  diversos graus, e com os meios(ou sinais demonstrativos, na realidade as cores sucessivas da Obra):

1º) - Dissolução  ou Liquefacção: a) redução dos corpos à sua primeira e antiga matéria, na verdade uma "reincrudação" dos corpos cozidos; b) congresso do macho e da fêmea, que conduz ao corvo negro; c) separação dos quatro elementos contidos na Pedra (quando retrocedem as luminárias).

Corresponde também ao 2º. meio material (depois do Mercúrio Filosófico e dos  Metais Perfeitos): os quatro elementos que circulam até se fixarem.

O Nigredo - a confusão dos elementos que surge no fim da liquefacção - é também o 1º meio demonstrativo, a Cabeça de Corvo, que marca o princípio da primeira negridão, a corrupção ou putrefacção (que dispõe para a geração).

Corresponde, ainda à primeira digestão (que é feita com CALOR BRANDO) - o congresso do macho e da fêmea, a mistura das matérias seminais, a dissolução do corpo e a resolução dos elementos em Água homogénea (o Caos tenebroso, o Tenebroso abismo).

2º.) - Lavação: faz do Corvo Negro, um Cisne Branco, de Saturno, faz nascer Júpiter, o rei dos Deuses (símbolo da conversão do corpo em espírito).

2º. Meio ou sinal demonstrativo - cor Branca (o Cisne): - onde se dá a perfeição do primeiro grau e do Enxofre branco, também denominado Terra bendita, Terra foliata, onde os filósofos semeiam o seu Ouro.

Corresponde ainda à 2ª. Digestão, onde o Espírito do Senhor anda sobre as águas (começa a fazer-se luz, separando as águas das águas); renova-se o Sol e a Lua, faz-se uma Nova Terra e um Novo Céu. Dá-se a espiritualização de todos os corpos, os Corvos negros dão origem às Pombas brancas. O espírito ígneo que desce em forma de água, procede a  regeneração do mundo.  A Águia e o Leão abraçam-se num eterno e íntimo abraço.

 - Segundo escreve o autor de ENNOEA, nas duas últimas obras anteriores: o Dragão exercita a sua grande crueldade consigo mesmo, pois tragando a sua cauda, todo se engole e se converte em Pedra

 - Diz ele, também, que é necessário obrar com grande advertência, para que se faça a separação das águas com o peso, e medida, de sorte que as águas que ficam debaixo do Céu, não afoguem a terra, e as que sobem ao Firmamento, a não desamparem de modo, que fique seca.

3º.) - Redução: restitui a alma à Pedra desanimada, sustentando-a com leite orvalhado e espiritual, até que tenha perfeito vigor

Corresponde, também, à 3ª. Digestão, a qual dá de beber à terra, que acaba de nascer, leite orvalhado, e todas as virtudes espirituais da quintaessência (.). Então esconde a terra em si um grande tesouro, primeiramente semelhante à luz resplandescente - a Terra da Lua -  e depois, ao Sol rubicundo - a Terra do Sol .

Corresponde aos 3º e 4º. meios demonstrativos que são, respectivamente: a cor Amarela (a Aurora) -  marca  a transição entre o Branco e o Vermelho e anuncia os cabelos dourados do Sol - e a cor Vermelha escura (o Enxofre so Sol, Esperma masculino, Fogo da Pedra, Coroa Régia, Filho do Sol) - que se tira da Branca, pelo fogo.         

4º.) - Fixação: fixa um e outro enxofre - 3º) meio material, que marca o fim da primeira Obra -, sobre o seu corpo fixo, mediante o espírito; isto é feito, cozendo os fermentos por seus graus (amadurecendo as coisas crtuas e dulcificando as amargas)

Corresponde, também, ao 4º.) meio material: fermentos produzidos sucessivamente pela ponderada mistura das sobreditas coisas, e, também, à 4º. Digestão - que aperfeiçoa todos os Mistérios do Mundo, e converte a terra em excelentíssimo fermento que fermenta todos os corpos imperfeitos.

Este último meio operativo - que marca o fim da primeiro trabalho da Obra Hermética -, continua a cozer os fermentos por seus diversos graus, derretendo,  penetrando  e tingindo, de tal modo que gera o Elixir, e depois exalta-o56 . Na verdade, a Pedra  exalta-se por graus - até chegar à sua última perfeição -,  com sucessivas digestões (quatro) que, na realidade, são os "regimes de fogo" de Filaleto.

O autor de ENNOEA, comenta a Obra que acaba de expôr, em linhas gerais, com as seguintes afirmações, que constituem os segredos operativos (debaixo da pedra):

Toda a fabrica da Obra Filosófica não é outra coisa mais que dissolver e coagular: dissolver o corpo e coagular o espírito (.) Pela redução se fixa o corpo volátil em permanente corpo, e a Natureza volátil ultimamente passa a ser fixa, do mesmo modo que a fixa tinha passado a ser volátil.57 

 -A produção da Pedra dos Filósofos é como a criação do mundo, porque é necessário que tenha o seu caos, e a sua matéria prima, em que nadem confusos os elementos, até que separados pelo espírito ígneo, e que seja elevada a parte leve desta separação para cima, e a grave seja precipitada para baixo. Nascendo a luz, desaparecem as trevas: ajuntando-se as águas em um lugar, aparece a terra seca ou árida. Finalmente saem sucessivamente os dois Luminares grandes, e produzem as virtudes Minerais, Vegetais, e Animais na Terra Filosófica58 .

 - A criação da Pedra Filosofal é por todas as cirscunstâncias semelhante à de Adão, porque do corpo terrestre e grave dissoluto pela água se faz o limo, que mereceu chamar-se Terra Adâmica, na qual residem as qualidades e virtudes de todos os elementos. Também se lhe infunde a alma celeste pelo espírito da quinta essência, e o influxo solar, e pela benção, e orvalho do Céu se lhe dá a virtude infinitamente multiplicativa, mediante a cópula de ambos os sexos59 .

Esta obra só se pode fazer havendo um radical disolvente do Ouro, e da sua mesma natureza (.), que é o Mercúrio Filosófico; porém quem não o tiver, não poderá colher o fruto desta Árvore da vida, ainda que saiba conhecê-la60 .

 -  O maior segredo desta obra consiste no modo de obrar, o qual todo depende da circulação dos elementos, porque a matéria do Lapis vai passando de uma para outra Natureza61 .

 - Quase que não há maior segredo em toda a praxe da obra, que o certo e ajustado movimento deste círculo - o segundo círculo, da restauração, o que pesa a água, e que examina as medidas - porque dá forma ao Infante Filosófico62 .

 Depois de uma discussão de temas como A Circulação da água (onde se inclui esse arcano do círculo, acima citado), o Fogo da Natureza  e a Circulação dos Eelementos, o Fogo Filosófico, Enódio pede a Enodato que lhe faça uma breve relação da aplicação destas coisas, ao que ele anui, noutra descrição - uma verdadeira súmula da Obra Grande - cheia de simbolismo operativo:

Tomai o Dragão Ruivo, animoso e belicoso, em cujo nascimento não faltou nenhuma força. Depois escolhei sete ou nove Águias generosas, cuja vista se não ofenda com os raios do sol. Lançai as Aves com a Fera em um caárcere claro, e fortemente fechado, debaixo do qual poreis um vapor tépido, para que se acenda a peleja. Em breve tempo se cometerão com dilatada e obstinada batalha, etá que finalmente, depois de quarente e cinco ou cinquente dias, principiarão as Águias a picar e a despedaçar a Fera. Morrendo esta, infectará todo o cárcere de podridão.. (ver texto a pp. 65-67).

Uma síntese, que poderemos dizer equivalente a esta, acha-se no Testamento hermético (em castelhano), ao mesmo tempo simbólico e operativo:

Si en Mercúrio no alterado,/ Dissuelves Oro nativo,

El Rebis has conseguido,/ Y el fermento deseado:

Ponle en vaso sigilado,/En fogo lento a coser,

Advertiendo, que ha de ser/ Tan suave el movimiento,

Que solo elentendimiento,/Pueda llegarlo a entender.

(.)

En dos alas solamente,/ Consiste toda la Obra,

Y lo de más todo sobra,/ Porque és engaño patente:

Toma un cuerpo permanente,/ Y aun te custe disuelo,

Abate el Águia al suelo,/ Y no la dexes bolar;

Porque el intento es hallar,/ Modo de unir Tierra y Cielo.

(.)  texto completo nas pp. 81-83

 

 

I Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (1999)

"Discursos e Práticas Alquímicas". Volume I (2001) - Org. de José Augusto Mourão, Maria Estela Guedes, Nuno Marques Peiriço & Raquel Gonçalves. Hugin Editores, Lisboa, 270 pp. hugin@esoterica.pt

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