O SEGREDO DEBAIXO DE UMA PEDRA
José Manuel Anes

É por vezes referida, como uma indicação do carácter iniciático - de transformação pessoal - de um determinado livro alquímico, a advertência que é feita pelo adepto relativa às condições espirituais prévias à Obra. O que acontece é que essas indicações podem constituir , por parte do alquimista, apenas sinais de temência a Deus, do qual depende o êxito da Obra e, por outro lado, conselhos de preserverança e de paciência, essenciais a um trabalho tão longo, não constituindo por si sós, provas do carácter vincadamente místico da obra - o que não quer dizer que esse carácter esteja necessariamente ausente.  O caso do ENNOEA parece não constituir excepção, mesmo quando o autor refere a necessidade da solidão - que também é escola, pois os divertimentos solitários são estudos- eventualmente encontrada nos bosques (próximos da sua Soure natal), onde se acha Deus .

De facto, na Parte Segunda desta obra, diz o autor que só aos Adeptos, que são, e forem, perfeitos, e justos concederá Deus esta grande ciência; porque a sabedoria não entra no entendimento dos homens maus, nem preservera no corpo dos pecadores. Por isso mesmo, Deus remunera esses homens - sejam eles cristãos, ou não, como o gentio Hermes, o mouro Geber e o hereje Paracelso10   -  com as utilidades da Crisopeia, e outros bens temporais, para satisfazer os seus merecimentos, pois se eles não tiveram estas virtudes, não os remuneraria Deus com estes prémios11 . Anselmo Caetano continua a enumerar, pela voz de Enodato - que dialoga "hermeticamente" com Enódio - as outras qualidades do Filósofo Hermético, o qual, segundo ele, Há-de ser homem de claro entendimento, profundo juízo, subtil discurso, grande compreensão, e bom engenho; e porque isto só não basta, deve ser também perito na língua latina, consuma-do na Filosofia, inteligente na Matemática, e versado na lição dos livros Químicos, para que o estudo aperfeiçoe o entendimento, e o entendimento ilustrado alcance grandes segredos com a subtileza do juízo, e os reduza à prática com o bom engenho. Além de todas estas qualidades há de ter indústria, constância riqueza, prudência, sossego, paciência e segredo porque (.) em nenhuma coisa devem os Adeptos ser mais acautelados, do que em ocultarem os segredos com que obram12 .

E mesmo na justificação do segredo alquimico, nunca Anselmo Caetano evoca razões iniciáticas ou místicas - tais como as que são explicitadas hoje pelos cultores da moderna alquimia operativa, mesmo que operativamente tradicional13  - antes enumera razões que têm a ver com a dificuldade  das operações - a razão deste misterioso segredo é, porque as operações da Arte Magna são muito dificultosas, e não podem os homens explicar-se com palavras, quando as coisas são muito difíceis14  - e outras que têm a ver com questões de preservação do segredo por motivo de segurança de todos - para que ficando estas operações duvidosas, não sejam inquiridas, nem averiguadas por homens ignorantes, e malignos, que executem com elas grandes maldades (.) para que os Herméticos inventores, e descobridores deste segredo não ficassem obrigados a satisfazer os danos, que causariam ao Mundo todos aqueles Tiranos, e Poderosos, que abusassem de tão ambiciosa potência, e tirania15 . Daí, ainda, a necessidade (devido à natureza dificultosa do assunto e devido à conveniência de protecção da Obra) de uma linguagem críptica, de natureza simbólica: se os Adeptos não a descrevessem com enigmas, e metáforas, e sonhos, e fábulas, poderia ser conhecida a matéria da Crisopeia, e preparada a Pedra Filosofal pelos rústicos, e ignorantes16 . Note-se que aqui, Anselmo Caetano invoca uma razão utilitária (e não iniciática) para a utilização so simbolismo: o afastamento dos (perigosos) ignorantes. No entanto, ele refere ainda uma razão última para a manutenção do segredo - mesmo para os que têm condições para encetar a Obra - e que consiste na exigência do esforço individual nesta via operativa. Mas para aqueles que, hoje, verão facilmente aqui uma indicação de tipo iniciático, o autor de ENNOEA menciona com singeleza a necesidade de que o Adepto tenha em grande apreço a sua Obra: Bem sabeis, que vos não posso revelar a matéria da Pedra Filosofal, senão em segredo; e para o segurar mais, quero que vos custe algum trabalho, porque os homens não estimam senão aquilo, que pelo seu trabalho adquiram17 .

Interessante é, sem dúvida, a referência ao tradicional preceito de Imitação da Natureza. Diz Anselmo Caetano: (.) a Arte Magna para fazer a Crisopeia deve imitar nas suas operações a Natureza18 .  Uns verão, nesta asserção uma indicação de cariz iniciático, uma via de comunhão com a Natureza, certamente inscrita na tradição alquímica, que tem um forte registo de transformação dessa mesma Natureza - longe portanto de uma atitude passiva e submissa. Mas não será legítimo ver nela apenas uma estratégia operativa eficaz para levar a bom terno a Obra Grande? Cremos que sim.

Para terminar esta breve introdução ao carácter iniciático (ou ao carácter não iniciático) do ENNOEA, referiremos uma passagem que, para um psicanalista como Bachelard terá uma conotação evidentemente sexual, mas que para alguns jungianos constituirá prova bastante da individuação alquímica, em busca do andrógino filosofal (assim como para um cultor da chamada alquimia interna será uma clara revelação do arcano): na geração dos Metais, o Enxofre é como a matéria seminal paterna, e o Mercúrio é como a matéria com que concorre o sexo feminino para a geração do feto, as quais ambas juntas formam no útero um só, e perfeito corpo. E daqui se segue que esta matéria é uma só coisa19 . Mas não constituirá apenas esta descrição uma alegoria biológica da união alquímica dos dois princípios, enxofre e mercúrio?  

 

 

I Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (1999)

"Discursos e Práticas Alquímicas". Volume I (2001) - Org. de José Augusto Mourão, Maria Estela Guedes, Nuno Marques Peiriço & Raquel Gonçalves. Hugin Editores, Lisboa, 270 pp. hugin@esoterica.pt

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