VIAGENS NA CIMBEBÁSIA / O RIO CUNENE
PADRE CHARLES DUPARQUET
28-07-2003 www.triplov.com
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O vagão boer era uma pesada estrutura de madeira e ferro, puxada por dezenas de bois. A estampa figura em "Como eu atravessei a África", de Serpa Pinto, explorador português contemporâneo de Duparquet.

Segunda-feira, 16 de Agosto - Pela tarde chego às terras do rei Nihombo, que me manda instalar próximo da sua habitação e me entrega uma carta do snr. Chapman, filho do célebre viajante do mesmo nome. O snr. Chapman encontra-se junto da tribo dos Ongangera, caçando avestruzes. Soube da minha próxima chegada a Cuambi e manifesta o desejo de se encontrar comigo. Marco esse encontro para quinta-feira, 19 de Agosto, junto às nascentes de Uvuzia.

Terça-feira, 17 de Agosto - Nihombo manifesta um enorme empenho em que que eu funde uma estação nas suas terras. Preparou já a madeira necessária para as construções e mostra-ma, reunida junto do seu palácio. Tive de dizer-Ihe que estava já comprometido com Iquera, seu vizinho, mas que procuraria todavia que viessem estabelecer-se junto dele alguns missionários, reclamando contudo a maior liberdade para circular entre uma e outra tribo, conforme desejar. Peço-lhe então um terreno em sítio alto e salubre e ele indica-me um, ali próximo, que me parece reunir as condições necessárias. Depois disto, anunciei ao rei a minha partida para aquela tarde, dizendo-lhe que tinha um encontro com o snr. Chapman e não podia estar mais tempo com ele. Queixa-se de que lhe conceda tão pouco tempo depois de ter passado quase duas semanas com Iquera, fazendo-me prometer que regressarei. Insiste para que uma personagem da sua corte, chamada Camania, me acompanhe até Omaruru e ali fique comigo até ao meu regresso, e sou obrigado a conceder-lhe essa satisfação. Este Camania é de origem herera, mas há muito tempo que está ao serviço de Nihombo, tendo percorrido todas as tribos do Ovampo, a sul e a norte do Cunene. Colho dele grande número de informações geográficas. À noite vamos dormir em Oquihoro, última aldeia no caminho de Uvuzia. O rei manda-nos ali um vitelo e uma grande porção de sal, como presente de despedida.

Quarta-feira, 18 e Quinta-feira, 19 de Agosto - Na quinta-feira pela manhã, quando me achava já perto de Uvuzia vejo chegar o snr. Chapman, a cavalo, seguido dum criado. Só à noite recebeu a minha carta e apressou-se a responder-lhe. Está acampado a 4 horas daqui, junto da omaramba Oquipoco e, alguns dias antes, estivera em Tamantzu, junto da Ongangera, na mesma omaramba. Nestes lugares há água em abundância durante todo o ano e as nascentes estão cheias de peixes. Continuamos a viagem juntos e dentro em pouco encontramos, em Uvuzia, dois Europeus, que andavam à caça de aves na omaramba. Eram os snrs. Léon e Carlson, negociantes de Oloconda, que, no ano passado, me tinham oferecido uma hospitalidade tão amável.

Estes senhores andam em digressão de recreio através do Ovampo. Almoçamos todos juntos e, a seguir, os snrs. Léon e Carlson dirigem-se para o acampamento do snr. Chapman. Este presenteia-me com uma larga provisão de carne de girafa, seca ao sol.

Sábado, 28 de Agosto - Há aproximadamente dez dias que deixei Uvuzia, deixando repousar os meus bois, tanto em Nohorongo como em Ocaocana, onde as pastagens são excelentes. Ocucueio, onde cheguei hoje, passa por ser muito saudável.

Segunda-feira, 31 de Agosto - Estou nas nascentes da Ombica, onde residem Berg-Dâmaras e Bushmen. O chefe dos Bushmen chama-se Cobosip e reside sempre aqui ou em Ocucueio. É vassalo do rei do Cuambi e usa também o nome Ovampo de lombo. Vou visitar a sua aldeia, onde encontro crianças encantadoras, fortes e gordas, sem que possa calcular qual é o seu sistema de alimentação, porque os Bushmen não têm culturas de espécie alguma; e, quanto a gado, possuem apenas algumas cabras. Vivem exclusivamente de raízes selvagens e da caça que conseguem apanhar com armadilhas ou abater com as suas espingardas. O filho de Cobosip acaba de abater uma girafa, o que é uma grande festa para toda a tribo. Trazem a carne toda ao chefe, que me vende uma porção e me faz, além disso, presente de parte dos miúdos, petisco muito estimado por eles e de que também eu apreciei o sabor delicado. [1].

Terça-feira, 1 de Setembro - Ontem à noite um bushman trouxe da floresta alguns tubérculos grandes, chamados obu na língua bushman e otwi na língua dâmara. Eram de diferentes formas: redondos, bifurcados e compridos, mas o bushman afirma que todos pertencem a plantas do mesmo tipo. Mandei-os assar no forno e comi-os com prazer. As residências principais dos bushmen nesta região, são em Otavi e Naidaus. O seu nome é sap no singular, san no plural e sakhoin para designar a raça em geral.

O nome indígena dos Berg-Dâmaras é Hokoin e o dos Hotentotes Naman e Namakoin; o dos Cimbebas em língua hotentotes, Kumaka Daman ou pastores Daman. Cada tribo de bushmen tem, além disso, o seu nome particular. Encontramos, junto do rio Cubango, os Khum, os Haikum, os da Ombica, depois os Masarua, os Mucuangalas, etc. Todos estes bushmen começam a estar bem fornecidos de espingardas e em breve saberão fazer-se respeitar pelas tribos vizinhas. Infelizmente servem-se delas também para se destruirem entre si. É uma coisa quase inexplicável a resistência vital desta raça. Foram evidentemente os Bushmen os primeiros aborígenas do Sul da Africa, mas tiveram de recuar diante de todas as sucessivas emigrações de Hokuins, de Hotentotes e de Cimbebas, tribos que não cessaram de lhes fazer uma guerra encarniçada, sem conseguirem contudo destruí-los. Ocupam todos os desertos do Sul da Africa, onde parece que nenhuma outra criatura humana poderia encontrar meios de subsistência. Dir-se-ia que estes lugares são os preferidos pelos Bushmen, que ali se aguentam sem rebanhos nem lavras. Os Bushmen são evidentemente uma raça superior à dos Hokhoins.

8 de Setmbro - Depois de ter atravessado Chivacundo, onde se encontram duas pequenas povoações, uma de Berg-Dâmaras e outra de Bushmen - Chimongundi e Outjo -chegamos por fim a Pallafontein, onde se encontram os primeiros Dâmaras. O bom rei Ombondyuho apressou-se logo a vir-me visitar. Quando eu ali passara, tinha-me feito presente duma cabra, tão dócil e domesticada, que não tivemos coragem de a matar. Seguiu o meu vagão até ao Cunene e conosco regressou novamente. Nunca se afastava do carro e tinha como função servir de guia ás cabras que iamos comprando. Quando o dia tinha sido muito fatigante e não tinha conseguido arranjar alimentação suficiente, subia ao carro, á noite, e batia-me com a pata nos joelhos, pedindo uma ração de sorgo ou de feijão. Quando voltarmos ao Ovampo, conto trazê-la ainda comigo.

Como receava a viagem de Pallafontein a Ozongombo, dezanove horas sem uma gota de água, resolvi tomar outro caminho, um pouco mais longo, mas onde encontrariamos água em abundância.

Ombondyuho ofereceu-me logo o seu sobrinho Cavériua para me servir de guia. Ficou mesmo resolvido que me acompanharia até a Omaruru para saber notícias da guerra que acabava de estalar entre os Hotentotes e os Dâmaras.

Tomamos pois o novo caminho de Ocaquero e, na noite de 15, cheguei a Omaruru, com uma grande comitiva, que tinha sempre ido aumentando desde o Ovampo até á Dâmara. Não quis ir perturbar a comunidade e deixei-me ficar no meu vagão. Grandes foram, por isso, a surpresa e alegria dos bons Padres ao verem-me entrar, de manhã, na capela, para a oração. Disse a Santa Missa em acção de graças e, a seguir, o Padre Hogan entregou-me o correio da Europa, que me trouxe a notícia da feliz dIsposição do Governo Português a respeito da missão e do seu desejo de que acção civilizadora desta se estenda para Norte do Cunene, à Colónia de Moçâmedes. Oxalá que as minhas esperanças possam finalmente realizar-se também por este lado, conseguindo a evangelização dessas belas e interessantes regiões, que parecem dispostas a receber a palavra de Deus.

Depois de ter transcrito estes enxertos do meu diário, desejo ainda dar notícias dos resultados definitivos da expedição, que tão benévolo auxílio me prestou. Depois de nos termos separado em Ololica, seguiu durante dois dias as margens do rio e, depois de mais duas jornadas através da floresta, chegou à tribo do Evare. Daí, continuou para norte durante seis dias, atravessando uma região muito arborizada, habitada por Bushmen, que serão talvez os Nhembas, indicados nas cartas. Encontrou-se então, não longe dos Amboelas, num distrito povoado de elefantes, mas de tal forma arborizado e pantanoso, que a caça se tornava dificilima. O snr. Erickson tomou então a resolução de regressar com o seu pessoal a Omaruru. Quanto ao snr. Dufour persistiu em ficar nessa região com o snr. Vanzyl e um outro Boer ; mas grandes obstáculos tiveram que vencer depois. Passado algum tempo, não longe do Cubango, o snr. Vanzyl teve desinteligências com um dos seus criados hotentotes, e este miserável, para se vingar, dirigiu-se, ao abrigo da escuridão da noite, ao carro do seu patrão, desfechando contra ele a sua espingarda quási à queima-roupa. O desgraçado velho, que viveu ainda cêrca de uma hora, expirou nos braços do snr. Dufour, pedindo-lhe que transmitisse o seu último adeus á mulher e aos filhos.

O outro caçador resolveu então regressar á Dâmara e insistiu com o snr. Dufour para que seguisse o seu exemplo. Mas este, que não queria renunciar às suas explorações, ficou sàzinho nesta região isolada, tendo como companheiros apenas os Bushmen, que tomara ao seu serviço. Esperemos que Deus lhe não falte com a sua ajuda em situação tão crítica e difícil. Tem consigo alguns bons cavalos e penso que, em caso de necessidade, poderá, sem grande dificuldade, alcançar a Huíla e Moçâmedes. A região onde agora deve encontrar-se, está ainda completamente inexplorada e poderá ali recolher muitas e interessantes noções geográficas1.

Quanto aos Boers, como os jornais já anunciaram, estão todos já estabelecidos agora no belo e salubre planalto da Huíla.

Ao acabar o relato desta minha viagem, talvez não seja inútil resumir abreviadamente e ao mesmo tempo completar, sobre certos pontos, os ensinamentos geográficos que duas explorações sucessivas me permitiram colher ácerca desta região do Ovampo e outros países adjacentes. É o que vou fazer, lançando um rápido golpe de vista sobre cada uma das tribos do Ovampo, assim como sobre aquelas que lhe são limítrofes2.

Essas tribos são em número de dezasseis, sendo cinco a oeste, seis no centro e cinco a leste.

1. A corajosa obstinação do jovem e sábio explorador, acabaria, infelizmente, por lhe ser fatal. Pouco depois da partida dos seus companheiros, o snr. Dufour foi assassinado pelos Ovampos. Os seus papeis puderam ser recolhidos pelo snr. Erikson; mas nem o seu corpo nem as suas roupas puderam jamais ser encontrados.

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Nota do tradutor - A pag. 20 do I Vol. da obra Artur de Paiva (ed. da Agência Geral das Colónias, 1938) , diz-se : «Nomeado em 1885 para comandar um contingente que devia incorporar-se na expedição a Caconda, bate-se no Fendi, na margem esquerda do rio Cunene, e derrota o gentio que roubara e assassinara o explorador francês Dufour, retirando depois de a expedição ter ocupado o Luceque. Pela sua acção foi louvado pelo Governo Geral de Angola e condecorado com a medalha de Valor Militar».

2. Para acompanhar este interessante estudo, é necessário seguir a carta que publicamos no nosso n.º de 7 de Outubro findo. (Carta de Ovampo, pag. 122).