ROTAS DO PALUDISMO
OS NATURALISTAS E A INTRODUÇÃO DE ESPÉCIES

MARIA ESTELA GUEDES
Associação Portuguesa de Escritores
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa

Ribeira Brava 18 Nov./ Illº e Exmº Snr. /Não estou melhor - Deram-me de conselho que abandonasse a ilha por algum tempo - Estou transtornado - /Dizem-me que pareço um cadaver - /Vai esta carta por um navio de vélla; e se estiver pêor, sigo depois d’amanha no paquete Bolama para S. Antão - /Sou de V.ª Exª /Mtº attº vendor obg.mo criado/ Francisco Newton /O medico tem-me receitado quinino de meia em meia hora, em dóses fórtes /A febre tende a desapparecer, mas a fraqueza é excessiva, pois não há que comer, a não sêr mandioca, mtº pouco milho, e nem sequér uma gallinha, pois vai tudo para S. Vicente, onde cada ovo está por 60 reis - É uma perfeita calamidade para este pobre povo - Consegui sahir hoje até caza do D.r que me receitou mais quinino - É de caza d’elle que escrevo a V.ª Exª. Para hoje, receitou-me 16 decigrammas de sulphato - Quiz dar-me um vomitorio, mas eu tive receio, porque creio que sou cardiaco - Elle concordou - (1)

Estivesse ou não doente Francisco Newton em Cabo Verde, ele que, depois de em aparência ter passado dez anos em São Tomé, a queixar-se de febres e delírio, escrevia a Bocage, de Portugal, referindo-se às doenças metropolitanas, e são dele os sublinhados: "Temos um turbilhão de doenças sem numero, quasi todas terminadas em ite. Em Africa temos apenas as febres, que eu nunca lá tive." (2). Estivesse ele ou não a tomar sais de quinino, o que relata corresponde aos sintomas e tratamento do paludismo. Também corresponde à verdade a descrição das consequências da seca, esse drama que muito mais vidas ceifava nas ilhas do que a malária.

Na correspondência dos naturalistas, é constante esta queixa, e bem sabemos das baixas que atingiram as equipas nas suas missões de estudo nas regiões tropicais, sobretudo no século XVIII. Aliás, o sezonismo abrange a quase totalidade das regiões tropicais e subtropicais, e até há poucas décadas era ainda um flagelo em Portugal continental. Também sabemos, ainda através dos naturalistas, que os regressados de férias na metrópole muitas vezes encontravam em São Tomé uma população branca de novas caras na sua maioria, porque entretanto muitos tinham ido ocupar o lugar deixado pelos falecidos. Mas desde tempos remotos é conhecido que o paludismo dizimou exércitos, impediu a penetração do europeu no interior de vastas colónias, criou obstáculos à construção de obras de grande envergadura. Um exemplo não muito distante bastará para nos elucidar quanto à extensão da calamidade: numa frente asiática da Segunda Grande Guerra, morreram quarenta mil homens em combate e duzentos e cinquenta mil de doenças várias, maioritariamente paludismo, isto apenas entre os aliados (Gordon, 1949). Em 1943, Soeiro & Rebelo ainda comentavam que o continente negro era fracamente povoado, o que se devia sobretudo ao paludismo e à doença do sono. Só uns quatro milhões de brancos numa população total inferior a 150 milhões.

São por isso a guerra e a necessidade de levar a cabo grandes empreendimentos que mais impulso têm dado ao combate anti-malárico: durante a construção do Canal do Panamá, estudaram-se várias formas de protecção dos operários. Vulgarizou-se a partir daí o uso de redes metálicas nas janelas, e a própria legislação impunha regras de construção e higiene. Seja exemplo a Lei do arroz, a exigir que os barracões para albergue dos trabalhadores fossem protegidos com redes, e a aconselhar os habitantes das povoações adjacentes a usá-las (Hill, 1938). Mais recente ainda foi o impulso dado à pesquisa nos Estados Unidos, na sequência da guerra do Vietname (Botelho, 1971).

Os naturalistas estão de modos diversos ligados ao paludismo. Um deles é através da introdução de espécies, assunto delicado e sigiloso, como tenho demonstrado (Guedes), mesmo neste caso, em que os fins parecem justificar os meios.

Desde os primeiros contactos do europeu com o índio se adoptou o seu remédio, a casca amargosa da Cinchona, ou árvore de quina. Bernardino António Gomes, naturalista do século XIX, isolou o seu princípio activo, a cinchonina. A famosa Água de Inglaterra, de Jacob de Castro Sarmento, era um preparado à base de quina (Landeiro, 1936). Das quinas passou a farmacologia ao quinino e sucedâneos. A primeira droga de síntese foi a plasmoquina, segundo Cambournac (1948), pamaquina em Botelho (1971); e hoje, ao fim de um longo processo de invenção de fármacos, eles parecem basear-se ainda nas propriedades das quinas, o que demonstra a eficácia do remédio índio. Landeiro informa que a cultura das quineiras nas ex-colónias portuguesas se deve à iniciativa de Júlio Henriques. De facto, o conhecido botânico de Coimbra até nos legou um livro sobre São Tomé, em resultado da sua permanência na ilha com fins agrícolas, mas isso foi no século XX (Henriques, 1917). Já no século anterior as quineiras tinham sido introduzidas em Cabo Verde e na Madeira. As primeiras flores das Cinchona da Madeira e da ilha de Santo Antão foram enviadas em 1874 para Portugal pelo Barão do Castello de Paiva. Hopffer, naturalista que redescobriu em Cabo Verde os célebres lagartos Macroscincus coctei (Guedes, 1992) assinala o tamanho máximo das árvores em 333 centímetros (Gomes, 1875). Este número, se não corresponde às potencialidades da espécie até ao milímetro, tem a vantagem de uma claridade maçónica exemplar. De facto, o 3 e equivalentes, como o 666, o triângulo, S. João, etc., são alertas clandestinos para espécies em cujo devir houve interferência daqueles que usam o código.

Newton mostra que a doença existia em Cabo Verde em finais do século XIX, aliás já ali se conhecia desde séculos antes; em 1507, as caravelas das rotas da Índia tinham recebido ordens para não escalarem nas ilhas, forma de evitar que as pessoas contraíssem a doença (Cambournac et al.,1984). Ora, sendo elas vulcânicas e distantes uns quatrocentros quilómetros de África no ponto em que mais se aproximam do continente, como é que o paludismo as alcançou?

O paludismo, sezonismo ou malária, não é uma doença, sim uma série de estados mórbidos no homem e nos animais, causados por protozoários cujo ciclo de vida se desenrola em hospedeiros de espécies distintas. Parte das fases de desenvolvimento decorrem no aparelho digestivo de algumas espécies de mosquito do género Anopheles, e as fases restantes no sangue do animal infectado pela picada do mosquito. Esses protozoários, se bem que agrupados em um só género (Plasmodium), pertencem a várias espécies e variedades, em geral próprias de cada grupo animal: os Plasmodium que causam a malária humana não causam malária aos macacos, e os plasmódios do macaco não transmitem a malária ao homem. De outra parte, cada espécie produz seu tipo de paludismo, ou infecção mista, se vários agentes se combinam no sangue. As principais são Plasmodium vivax, que desencadeia a febre terçã, benigna ou intermitente simples; Plasmodium malariae, responsável pela febre quartã ou intermitente simples; e Plasmodium falciparum, na origem da febre terçã, maligna ou remitente perniciosa (Poisson, 1953).

Uma das várias hipóteses de dispersão dos animais que colonizam ilhas é a do transporte eólico, aplicável às de Cabo Verde: mosquitos do continente podem ter sido empurrados pelo vento até as alcançarem. Porém os factores envolvidos na infecção palúdica são demasiado complexos para aceitarmos que a sua chegada às ilhas tenha sido independente da participação humana. Ovos e larvas também viajam nas vasilhas de água a bordo de navios, aviões e outros meios de transporte. De algum destes modos terá sido introduzido o Anopheles gambiae no Egipto e no nordeste brasileiro. Estas introduções deram lugar a campanhas anti-maláricas de grande vulto. A erradicação do Anopheles do Brasil, para onde terá sido introduzido em 1928-1930, foi o primeiro exemplo da possibilidade de extinção de um anofelino introduzido. O segundo foi o extermínio da mesma espécie no Egipto, em 1945. No Brasil esta operação cobriu 300 mil quilómetros quadrados, área na qual quase 100% dos habitantes tinham estado doentes e 50% das casas haviam sido abandonadas (Cambournac, 1948).

Então os mosquitos podem ser introduzidos em regiões onde não existiam anteriormente. Porém isso não é necessário para que uma zona sã passe a ser palúdica. Estão identificadas mais de trezentas espécies de Anopheles (Ribeiro et al., 1980), distribuídas por grande parte do mundo, se bem que só muito poucas sejam vectores do paludismo - além de Anopheles gambiae, um dos mais importantes vectores em toda a África tropical (Ferreira et al., 1948), mencione-se Anopheles maculipennis atroparvus, responsável pelo paludismo em Portugal. Para relativo sossego nosso, dessas poucas, só as fêmeas picam, só picam de noite, e só quando estão em postura, pois precisam de sangue para amadurecerem os ovos (Hill, 1938).

Os Anopheles, mesmo vectores de malária, podem habitar dada região, sem a transmitirem ao homem, porque o seu organismo está limpo de protozoários. Passam por ser o único vector da doença, porque somos nós o sujeito do olhar: se fossem os mosquitos a apresentar esta comunicação, era o homem o seu principal inimigo. Fora do âmbito das especializações, e até na experiência que muitos conservamos de longas temporadas em regiões fortemente palúdicas, é dos mosquitos que o homem se protege, drenando pântanos, secando vastas áreas, tapando vasilhas, lançando larvicida para as colecções de água, usando mosquiteiros, exterminando-os com insectidas, etc.. Porém, quando um mosquito saudável suga o sangue de alguém infectado, os protozoários são ingeridos, desenvolvem-se no sistema digestivo do insecto, e só então o mosquito os pode transmitir a uma pessoa sã. Aliás há registo de casos em que a doença é transmitida não pelos mosquitos, sim por transfusões de sangue. Em suma, os Anopheles só infectam o homem por terem sido infectados por ele.

Para voltar a Newton, com os seus verdadeiros acesso de paludismo, pois falso é o lugar onde diz que os sofreu, ele transportou os hematozoários nas suas inúmeras viagens entre Portugal, Timor, Macau, São Tomé, Angola e outros pontos da costa africana. Introduziu-os assim no organismo de Anopheles saudáveis, do mesmo modo que introduziu nos museus objectos coligidos em lugares de onde supostamente escreve mas onde não estava.

Na rota do paludismo, já vimos que as quineiras, os protozoários, e ovos e larvas de mosquitos foram transportados e introduzidos pelo homem em geral e pelos naturalistas em particular. Faltam porém outras espécies, as que levantam problemas delicados à biologia, por não se saber quais são. Entre os métodos de combate aos animais nocivos, a introdução de predadores é praticada pelo menos desde o século XVIII, como se lê em Vandelli (3), sem mais pormenores. Aliás, ela é praticada desde que o homem começou a domesticar gatos para comerem ratos. Na literatura consultada para este artigo, mais extensa do que a referida, menciona-se o combate aos Anopheles por este processo, porém os autores só se referem à introdução de predadores, indígenas ou estrangeiros, o que é insuficiente; outros mencionam os peixes, o que continua a ser vago; dentro do grupo vago dos peixes só Cambournac (1949) cede a identificar um género, Gambusia. Finalmente, em só um artigo vimos identificada uma espécie, o que torna oficial a introdução de Gambusia affinis nas ilhas de Cabo Verde pela Missão de Estudo e Combate de Endemias (Ribeiro et al., 1980).

Que outras espécies foram introduzidas ao longo de séculos, de que não aparece rasto na literatura científica, a não ser em discurso cifrado? Para não sairmos de Cabo Verde, com a sua enigmática herpetofauna, não serão sapos, osgas e lagartos, animais insectívoros? E para rematar com esse mesmo Frederico Hopffer que não esperou que as quineiras crescessem tudo quanto podiam para afirmar, com mais zelo maçónico do que matemático, que em Cabo Verde o tamanho máximo das quineiras era de 333 centímetros, então o lagarto gigante, Macroscincus coctei, está ainda mais marcado pelo 3, no apocalíptico 666 da página de descrição original da qual é citado. De resto, é a espécie que conheço cuja literatura mais sobrecarregada está de contradições e ironias. Basta pensar que a sua celebridade se deveu ao gigantismo, metro e meio, segundo Gray, quando as suas dimensões normais eram os doze a quinze centímetros dos seus congéneres.

_________

(1) Cartas de Francisco Newton. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/N-142. Newton fez a exploração de Cabo Verde e Guiné de 1898 a 1902. Sem ano. Deve ser de 1902.

(2) Cartas de Francisco Newton. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/N-126. Sem ano. Deve ser de 1895.

(3) Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o flósofo naturalista nas suas peregrinações deve principalmente observar, por D.V. 1779. Cópia de Frei Vicente Salgado. Ms. azul, Academia das Ciências de Lisboa.

REFERÊNCIAS

BOTELHO, Álvaro (1971) - Quimioterapia da malária. Anais da Escola Nacional de Saúde Pública e Medicina Tropical, 5 (1-2): 99-102.

CAMBOURNAC, Francisco J.C. (1948) - Modernos processos de combate ao sezonismo. Anais do Instituto de Medicina Tropical, V: 321-340.

CAMBOURNAC, Francisco J.C. (1949) - Sobre o combate ao sezonismo no território de Goa (Estado da Índia). Anais do Instituto de Medicina Tropical, VI: 7-40, fotos.

CAMBOURNAC, F.J.C., H. Santa Rita Vieira, M.A. Coutinho, F.A. Soares, A.Brito Soares & G.J, Ganz (1984) - Note sur l'éradication du paludisme dans l'île de Santiago (République du Cap-Vert). Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, 10 (1-4) 23-34.

FERREIRA, F.S. Cruz, A.R. Pinto & C.L. de Almeida (1948) - Alguns dados sobre a biologia do Anopheles gambiae da cidade de Bissau e arredores (Guiné Portuguesa), em relação com a transmissão da malária e filaríase linfática. Missão de Estudo e Combate da Doença do Sono na Guiné. Anais do Instituto de Medicina Tropical, V: 223-250, fotos, gráficos e planta da cidade de Bissau.

GOMES, Bernardino Antonio (1875) - As arvores da quina em Cabo-Verde. Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, Academia Real das Sciencias de Lisboa, V (18): 73-74.

GRAY, J.E. (1845) - Catalogue of the specimens of Lizards in the collection of the British Museum. London, pág. 111.

GUEDES, Maria Estela (1992) - Memórias do lagarto cabo-verdiano. O Escritor, Revista de Cultura da Associação Portuguesa de Escritores, nova Série, nº 1: 83-104.

GUEDES, Maria Estela (1999/-) - Francisco Newton: Cartas da Nova Atlântida (livro que publica as cartas do naturalista existentes no Arquivo histórico do Museu Bocage). E "As gralhas", conjunto de artigos e dossiers sobre a subversão em ciência. Em linha em http://triplov.com/.Citado em Março de 2003.

GORDON, R.M. (1949) - Insects in control. The control of insects. Anais do Instituto de Medicina Tropical, VI: 247-272.

HENRIQUES, Julio (1917) - A ilha de S. Tomé sob o ponto de vista histórico-natural e agrícola. Boletim da Sociedade Broteriana, 27.

HILL, Rolla B. (1938) - Método de profilaxia anti-sezonática em Portugal. Actualidades Biológicas (Conferências realizadas no Instituto Rocha Bento Cabral em Maio de 1938), Lisboa, XI: 58-86.

LANDEIRO, Fausto (1936) - A quina e seus derivados. Separata do Boletim Geral das Colónias, 127, 62 págs., Agência Geral das Colónias, Lisboa.

POISSON, Raymond (1953) - Famille des Plasmodiidae. In Pierre-P. Grassé, "Traité de Zoologie", T. I, fasc. II - Protozoaires. Masson & Cie. Paris.

RIBEIRO, H., Helena da Cunha Ramos, R. Antunes Capela e C. Alves Pires (1980) - Os mosquitos de Cabo Verde (Diptera : Culicidae). Sistemática, distribuição, bioecologia e importância médica. Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa. Estudos, Ensaios e Documentos, 135, 142 pp.ilustr., fotos e mapas.

SOEIRO, Alberto & António Rebelo (1943) - Noções de malariologia especialmente destinadas aos funcionários administrativos, com um capítulo de técnica por António Rebelo. Estação Anti-Malárica, Lourenço Marques, Moçambique, 40 págs. ilustradas por Mário de Carvalho Pereira.