PEREGRINAÇÕES MUÇULMANAS - RELIGIÃO AO SERVIÇO DAS CIÊNCIAS:
O LEGADO ISLÂMICO DE AL-ÂNDALUS (711-1492)

JOSEPH ABRAHAM LEVI
Rhode Island College
© 2003

Introdução

Neste trabalho é nossa intenção investigar o papel que o Islão teve em Al-Ândalus no campo das Ciências, entre as quais ressaltam a Astronomia e a Astrologia. Com o termo Al-Andalus, ou numa forma aportuguesada, Ândalus, geralmente, referimo-nos à Península Ibérica em si, sem distinção política e, na maioria dos casos, geográfica, pelo menos sob o ponto de vista histórico-cultural. Al-Ândalus é a designação árabe de "Espanha", entendida em sentido lato, peninsular e, obviamente, não político. Em outras palavras, Ândalus é um "vocábulo que designa o território da Península Ibérica ocupado pelos muçulmanos, cuja superfície variou ao longo dos séculos" (1).

É precisamente nesta acepção que nós, enquanto estudiosos, usamos hoje o termo Al-Ândalus, referindo-nos ao período muçulmano na Península (711-1492), especialmente a nível intelectual, cultural e de relações humanas. Além disso, Al-Ândalus será vista ao mesmo tempo como Dar Al-Islam, nomeadamente, a "terra do Islão", e, após a(s) Reconquista(s), Dar Al-Harb, designadamente, a "terra do inimigo", principalmente, a "terra dos não-crentes", ou seja, o "território dos infiéis" (2), onde a maioria dos habitantes é constituída por não-Muçulmanos.

O Islão e as Ciências: Origens e desenvolvimento

A ciência islâmica tem as suas raízes nas escolas orientais, egípcias e gregas. Além de absorver estas influências preexistentes, o Islão conseguiu criar uma produção científica indígena, volumosa e original. De facto, a reacção islâmica a estes antigos tratados científicos foi de explicação, onde readaptações, correcções e melhoramentos excediam a mera função passiva de recepção e tradução. Isto foi em parte devido à força do Islão: uma religião multi-compósita onde a diversidade é bem aceite, obedecendo, porém, a cânones de assimilação e adaptação a um novo modelo, onde o secular e o religioso são separáveis e ao mesmo tempo indivisíveis, este último aspecto a controlar e ditar a direcção e os limites do outro. Logo no início da era islâmica, os estudiosos muçulmanos começaram a traduzir todos os trabalhos disponíveis adquirindo, assim, conhecimento científico suficiente para depois principiar as próprias teorias científicas e filosóficas (5).

O primeiro encontro com a Astronomia parece ter sido de proveniência indiana: os Siddhanta — designadamente, tratados astronómicos — foram traduzidos em Árabe com o título de Al-Sindhind em 771 (6). Porém, a base original indiana, em Hindi, já passara, por sua vez, por uma fase de transição e, sobretudo, pelo papel intermédio Pálavi (7) — seja isto em tradição oral ou escrita (8).

A astronomia indiana influenciou o pensamento científico muçulmano mais uma vez com a tradução de Al-Zij (9), nomeadamente, As Tábuas Astronómicas — seguindo o modelo dos Sindhind —, composta pelo cientista e astrónomo Muhammad ibn Musa Al-Khwarizmi (10). Segundo as normas científicas muçulmanas, as tábuas astronómicas constituem uma subdivisão da Astronomia a qual baseia os seus cálculos segundo regras aritméticas. Além disso, esta ciência observa os movimentos de cada estrela e, através de instrumentos astronómicos, também analisa o tipo de movimento como, por exemplo, se estas se movem retrograda, veloz ou lentamente:

This serves to show the positions of the stars in their spheres at any given time, by calculating their motions according to the rules evolved from astronomical works. This craft follows certain norms. They constitute a sort of introductory and basic material for it. They deal with months and days and past eras [i.e., chronology, mathematical, and historical]. It (further) follows established basic principles. They deal with apogee and perigee, declinations, the different kinds of motions, and how (these things) shed light upon each other. They are written down in well-arranged tables, in order to make it easy for students. These tables are called zîj. The determination of the positions of the stars at a given time by means of this craft is called "adjustment and tabulation." [Ta’dil and taqwîn] (11)

A maioria das traduções de textos provenientes do Oriente e do Médio Oriente pré-islâmico foi efectuada durante a segunda metade do século VIII da Era Vulgar, assinaladamente, só cem anos depois da Hégira (12). A tradição oral de novos conversos muçulmanos — por exemplo Sírios e Aramaicos — também tem um papel importante na composição literária e científica do Islão (13). A contribuição judaica à ciência muçulmana é especialmente visível durante os seus anos de formação, ou seja, durante os séculos II e III da Hégira. Carlo Alfonso Nallino (14) oferece-nos alguns nomes proeminentes, entre os quais ressaltam, Ma Sha’ Allah (m. em c. 815-820), Abu ‘Uthman Sahl ibn Bishr bin Habib ibn Hani, ou Haya, (c. primeira metade do século IX), Rabban Sahl Al-Tabari (c. primeira metade do século IX) e Abu Al-Taiyib Sanad ibn ‘Aly (m. em c. 864) (15). A presença e a participação activa de Judeus neste processo de transferência do saber é visível, primeiro no Levante e depois no poente muçulmano, esta última área a abranger o Magrebe (16) e, obviamente, a Península Ibérica, ou como dito antes, Al-Ândalus:

The intellectual dependency of Muslim Iberia on the Levant made inevitable the reception of such advances in the west and the peculiar social configuration of al-Andalus facilitated their transmission to the Jewish and Christian worlds (17).

Junto às influências levantinas sob o Islão nestes primeiros anos de formação científica, a tradição grega — especificamente e num sentido mais abrangente, helénica — é obviamente a mais importante herança cultural deixada ao Islão. Todavia, também a tradição greco-helénica se encontra fortemente impregnada de tradições orientais. Portanto, fazer uma distinção entre as contribuições de uma e as da outra é humanamente quase impossível:

What mainly concerned them were scientific and philosophical treatises and technical descriptions of how things worked. This corpus of learning was translated into Arabic between c. 750 and c. 900. In certain directions, for example astronomical and medical, it was also enlarged and refined, becoming more comprehensive and more accurate through the observations of Islamic scientists themselves or through their becoming acquainted with the yet more distant learning of India and China 818).

Por exemplo, o Almagesto (19) de Ptolomeu foi traduzido primeiro em Siríaco e depois em Árabe. Uma das versões em Árabe foi feita por Al-Hajjaj ibn Yusuf ibn Matar (20) (Bagdade, c. 786-833), talvez baseada sob uma obra de origem siríaca e, além disso, também parece ser responsável pelo seu título com o qual ficará, desde então, conhecida no mundo inteiro (21). Durante o século XII ainda existiam cinco cópias do Almagesto a circular livremente nos círculos intelectuais europeus e muçulmanos, entre estes últimos, a área magrebina assim como aquela levantina (22). Há quem considere esta herança científica como uma simples assimilação, completamente passiva, ao mundo greco-helenístico. Em outras palavras, a antiga educação ocidental grega e mediterrânea, segundo estes autores, vivia agora através do Islão, sendo este último uma sua mera continuação:

[…] the Islamic assimilation of Greek science was so complete that Muslim thinkers are best viewed as an extension of Hellenistic education (23).

Isto é verdade, mas só parcialmente. Não podemos esquecer que o Islão, ao longo da sua expansão, assim como as outras duas religiões monoteístas antes dele, nunca aceitou nenhum elemento alheio no seu dogma senão antes passar tudo por um "crivo escrutinador". Só depois desta análise e experimentação — onde há sempre espaço para uma "adaptação" — é que a componente "forasteira" podia ser transformada num instrumento útil e adequado para os próprios fins. Portanto o Islão, se bem que se tenha servido muito das fontes greco-helenísticas, ao mesmo tempo, porém, conseguiu criar uma tradição intelectual autónoma, com um carácter autenticamente "muçulmano", seja este árabe, persa, magrebino, berbere, hindu, túrquico ou mongólico:

But it would not be wholly true to say that the birth of Muslim geographical science was entirely dependent upon familiarity with Greek sciences, because there had already appeared no less than about five writers who dealt with the geography, historiography, and archaeology of Arabia, i.e., Abu-Ziyad al-Kilabi, an-Nadar b. Shamil (d. 204 A.H.), Hisham al-Kalbi (206 A.H.), Sa´dan b. al-Mubarak, and Abu-Sa´id al-Asma´i (d. 213 A.H.). [...] Muslim contributions to the astronomical and the mathematica side of geography were a part of broader intellectual and scientific movement which commenced with the Abbasid age. Its growth and development can best be followed in relation to the four chief schools, i.e., those of Baghbad, Egypt, North Africa, and Andalusia (24).

Astronomia e Astrologia: duas faces da mesma medalha

Como pudemos observar, então, a tradição da antiga Mesopotâmia — sobretudo proveniente da Caldeia e Babilónia — foi transmitida, assimilada e transformada por ambas as culturas grega — ou talvez seja melhor dizer greco-helénica — e muçulmana, respectiva e cronologicamente nesta ordem. Porém, durante todo este período a Astronomia e a Astrologia encontravam-se completamente relacionadas entre si que era quase impossível separar as duas disciplinas. Em Árabe a `Ilm Al-Ahkam An-Nujum é "a ciência dos decretos das estrelas" (25) ou, mais simplesmente, "a ciência dos decretos", ou seja, em Árabe, `Ilm Al-Ahkam (26). Os Ahkam são "as opiniões", "as decisões", "os responsos" dados pelas estrelas (27). Os `Ilm Sina`at An-Nujum referem-se a ambas a Astronomia e a Astrologia, sendo as duas inseparáveis, aspectos da mesma ciência.

Nas traduções latinas medievais o significado literário de Ahkam (opiniões) influenciou o futuro e o destino no Oeste de ambas a Astrologia e a Astronomia, causando, assim, uma divisão bipolar entre a ciência original, a Scientia Iudiciorum Stellarum (28), — isto é, tudo aquilo que depois será a Astrologia — em oposição à Astrologia Quadrivialis — ou seja, a Astronomia Doctrinalis, em outras palavras, a Astronomia como tal.

Resulta óbvio, então, que segundo os fundamentos islâmicos as duas ciências eram só uma, dois aspectos, duas faces da mesma disciplina. De facto, em Árabe temos só um termo para designar quer o astrólogo, quer o astrónomo, ambos denominados munajjim (29). Foi só durante o século XIX da nossa era, sob influência europeia, que finalmente apareceu uma diferença entre as duas disciplinas: de agora em diante o munajjim será o astrólogo e o falaki terá as suas funções de astrónomo (30).

Ainda que os Muçulmanos conhecessem e soubessem as diferenças básicas entre estas ciências, os crentes em Allah nunca se preocuparam ou sentiram a necessidade de separar as duas. Isto talvez pelo facto de que, para quase todos os estudiosos muçulmanos, fosse praticamente impossível separar as duas: as partes prática e teorética encontravam-se assim interpoladas, complementando-se uma na outra. Os cálculos matemáticos encontravam-se ao serviço das "necessidades humanas", daí as predições, os responsos e as "guias". Na maioria dos casos estas previsões eram para o benefício público, como nas advertências contra futuros fenómenos naturais e físicos. Onde e quando o aspecto "mágico" intervinha, então só aquelas actividades destinadas ao benefício comum — executadas por cientistas sábios, isto é, os munajjimuna, quer dizer, os astrónomo-astrólogos — eram permitidas. A feitiçaria não fazia parte destas "divinações". Quando esta se encontrava, era só para motivos de "expurgação" e "erradicação" completa do Mal. Mesmo nestes casos esta tinha de ser efectuada por expertos. Além disso, e mormente, a religião limitava todas estas actividades. A Shari’ah (31) estava ali a ditar as normas e as regras de conduta. Houve casos nos quais cientistas e filósofos muçulmanos tentaram separar as duas disciplinas, porém não no sentido ocidental, mas principalmente sob uma divisão interna, ou seja, na abordagem e/ou na maneira em que uma das disciplinas deveria ser classificada ou comparada com outras matérias científicas.

Em outras palavras, então, a ciência muçulmana herdou a atitude antiga oriental (32) e greco-helénica para com os fenómenos físicos e a sua consequente influência nos seres humanos. O natural e o supernatural, com as suas causas e os seus efeitos, eram assim vistos e procurados mesmo nestes fenómenos. O universo era primeiro descrito na mera explicação de eventos cósmicos, os quais eram depois interpretados como sendo o resultado duma luta entre duas forças opostas, nomeadamente, o Bem e o Mal. Observar estes fenómenos — estudando-os, para depois encontrar e tomar uma solução definitiva — é assim a chave, o ponto de partida da Ciência (33).

A inovação muçulmana entre a Astronomia e a Astrologia é o uso constante e abundante da Astronomia Esférica, usando exactas computações matemáticas em pesquisas astrológicas. Junto a estas computações precisas e complexas, os cientistas muçulmanos geralmente incluíram nos seus tratados tábuas para facilitar o trabalho do astrónomo. A Astrologia é assim uma arte que requer uma sólida preparação científica, onde computações matemáticas e exactidão absoluta são a norma quando estamos a analisar o firmamento e todos os complexos fenómenos relacionados com este estudo (34). Eis como Ibn Khaldûn, na sua obra magna Muqaddimah, de facto nos descreve a Astronomia:

This science studies the motions of the fixed stars and the planets. From the manner in which these motions take place, astronomy deduces by geometrical methods the existence of certain shapes and positions of the spheres requiring the occurrence of those motions which can be perceived by the senses. Astronomy thus proves, for instance, by the existence of the precession of the equinoxes, that the center of the earth is not identical with the center of the sphere of the sun. Furthermore, from the retrograde and direct motions of the stars, astronomy deduces the existence of small spheres (epicycles) carrying the (stars) and moving inside their great spheres. Through the motion of the fixed stars, astronomy then proves the existence of the eighth sphere. It also proves that a single star has a number of spheres, from the (observation) that it has a number of declinations [Mayl], and similar things (35).

Nos primeiros dois séculos da Hégira, quando a dogmática muçulmana sobre os limites da Astrologia ainda não era ditada e controlada pela ortodoxia religiosa, a Astrologia fazia parte das outras nobres ciências, encontrando-se junto com a Matemática, Física, Filosofia e Metafísica (36). Por volta do fim do século II da Hégira o Aristotelismo entrou no Islão e, consequentemente, a Astrologia encontrou-se relegada a ter um papel menor, rodeada de suspeitas e, às vezes, para "sobreviver", foi até constrangida à "clandestinidade". Os teólogos muçulmanos viam a influência das estrelas sobre as acções humanas como uma severa e grave ameaça ao monoteísmo islâmico. Isto explicaria a grande polémica que surgiu sobre a Astrologia nas várias escolas muçulmanas (37).

Todavia, apesar destas polémicas e do seu estado de "degradação" entre as outras ciências, a Astrologia, pelo menos ao nível formal, nunca foi dividida da Astronomia. Só a prática, o uso e o estudo destas "influências" eram, se não proibidos, pelo menos vistos com grande suspeita e acanhamento. Novamente, não havia motivo para separar as duas disciplinas. O que se rejeitava era só uma das suas multíplices aplicações. Além disso, o aspecto mais prático da ciência — o puramente matemático e teorético em si — continuou imperturbado por muitos séculos juntamente com as outras ciências.

Em Al-Ândalus a Astronomia atinge o seu apogeu na segunda metade do século X da Era Vulgar. Abu Al-Qasim Maslamah ibn Ahmad Al-Majriti (m. em c. 1007), filósofo e matemático andaluz, através de muitas viagens e contactos com o resto do mundo islâmico, conseguiu reeditar, melhorar e, por fim, aperfeiçoar a versão árabe do Planisphærium de Ptolomeu (38). Al-Majriti é também famoso pela sua edição das Tábuas Astrológicas de ambos Abu ‘Abdallah Muhammad ibn Musa Al-Khwarizmi (m. em c. 850), e Al-Battani (c. 858-929) (39), nas quais substituiu a antiga cronologia persa pela árabe/muçulmana. Outro nome proeminente é Ibn Al-Samh de Granada (m. em 1035), o qual, sob o modelo de Al-Sindhind (40), compôs tábuas astronómicas. Porém, a obra mais importante que Ibn Al-Samh nos tenha deixado é um pequeno tratado no qual nos descreve um instrumento astronómico a sete lâminas, dedicado aos cálculos do movimento do Sol, da Lua e dos cinco planetas (41). No fim do século X, ou no começo do século XI da Era Vulgar, Abu ‘Abd Allah Muhammad ibn Yusuf ibn Ahmad Mu`adh Al-Jaihani, ou também Al-Juhani, compôs tábuas astronómicas pela cidade de Xaém, na Andaluzia. Gherardo de Cremona, (c. 1114-1187), traduziu esta obra em Latim sob o título Liber tabularum iahen cum regulis suis (42). Porém, o mais importante astrónomo andaluz, sem dúvida qualquer, é o famoso Abu Ishaq Ibrahim ibn Yahya Al-Naqqash ibn Al-Zarqalah, Azarchel (c. 1029-1087), ou Auzarchel em traduções medievais latinas e, em Castelhano, Azarquiel de Toledo (43). Para o emir de Sevilha, Al-Mu`tamid ibn `Abbad (1068-1091), Al-Zarqalah inventou o astrolábio universal, adaptável para qualquer latitude (44). Mais uma vez, a Astronomia e a Astrologia faziam parte do mesmo estudo:

[…] (Knowledge of the) positions of the stars in the spheres is the necessary basis for astrological judgments, that is, knowledge of the various kinds of influence over the world of man that are exercised by the stars depending on their positions and that affect religious groups, dynasties, human activities, and all events. We shall explain this later on, and we shall clarify the evidence adduced by astrologers, if God, He is exalted, wills (45).

Voltando ao astrolábio universal de Al-Zarqalah, podemos dizer que, entre as suas demais funções, se baseava na projecção estereográfica. Al-Zarqalah descreve o instrumento, a sua construção e o seu uso na safiah. Devido à sua grande utilidade, o seu trabalho foi traduzido em muitas línguas: Hebraico, Latim, Espanhol e, por Gherardo da Cremona, também em Italiano. Al-Zarqalah efectuou quase todas as suas pesquisas científicas em Toledo (1061; 1080-1081), sob a égide do já mencionado emir Yahya Al-Ma’mun. As suas observações foram registradas nas Tábuas Toledanas, traduzidas em Latim por Gherardo da Cremona sob o título Tabulae toletanae iahen cum regulis suis. No século XIII da Era Vulgar a cultura de Al-Ândalus começa a declinar e com ela as inúmeras pesquisas científicas. Gradualmente, porém, una nova sociedade começa a aparecer, suplantando e beneficiando da experiência desta última civilização: a Península Ibérica de Dar Al-Islam, terra onde reina o Islão, torna a ser Dar Al-Harb, território onde a maioria dos habitantes é constituída por não-Muçulmanos, no nosso caso Cristãos e Judeus.

Interacções económico-sociais

Como pudemos observar, então, durante o período medieval a Península Ibérica era uma sociedade pluralista multifária, onde três comunidades diferentes estavam a viver lado a lado, a influenciar-se uma à outra sob todos os níveis: económica, social e culturalmente. Este longo período de coexistência na Península, também conhecido por Convivência — nomeadamente, Cristãos, Judeus e Muçulmanos a viver juntos em Al-Ândalus entre, oficialmente, 711-1492 — não sempre foi pacífico, mesmo por parte dos membros de todos ou de qualquer um destes três grupos em particular. Apesar de nunca ter existido uma verdadeira campanha para uma total assimilação, o intercâmbio cultural em termos de interacções diárias levou-os a uma integração mais "civilizada", onde, ao mesmo tempo, cada um dos grupos étnico-religiosos guardou a própria identidade e consciência histórico-política. Em Al-Ândalus, durante o período islâmico (711-1492), a Ahl Al-Kitabi, isto é, a "Gente do Livro" (46), era e, segundo a Lei Islâmica, deveria sempre ser tolerada e protegida. Apesar das muitas restrições e taxas às quais eles eram sujeitos, os de Ahl Al-Kitabi, graças à sua fé monoteísta (47), eram tratados com imparcialidade e respeito (48). Eles usufruíam da dhimmah, ou seja, protecção. Enquanto dhimmi, Judeus e Cristãos podiam viver livremente — isto porque, segundo o Alcorão, qualquer kitabi pode, em teoria, viver em qualquer país muçulmano ou zona geográfica de aderença islâmica — e ser permitido residência assim como a liberdade de praticar todas as actividades normais — inclusive adorar o próprio deus — excepto aquelas actividades que pudessem ter jurisdição sobre os Muçulmanos.

A secessão de Al-Ândalus do Império Muçulmano (Dinastia Abássida, 132-656 A.H./750-1258), encareceu este processo de simbiose entre as três fés monoteístas. Em 756 ‘Abd Al-Rahman I (138-172 A.H./756-788), declarou-se emir de Al-Ândalus. Novamente, então, Córdova — Qurtuba em Árabe — tornou-se capital da Dinastia Omíada em Al-Ândalus (99-633 A.H./717-1236), onde assimilação e integração ditavam as interacções entre os seus sujeitos. As Artes e as Ciências eram promulgadas mais do que nunca e, pela primeira vez em Dar Al-Islam, assinaladamente, em terra muçulmana, os dhimmi eram encorajados a seguir os seus interesses, inclusive as Artes, as Letras e as Ciências. Quanto aos Judeus, estes conseguiram concentrar-se em particulares áreas e tarefas do saber humano:

In the relatively open intellectual and social setting of medieval Islamic cities, Jews consumed the classic texts of philosophy and science, studied the contemporary Islamic modifications and elaborations, and produced a philosophical and scientific literature of their own in Arabic and Hebrew (49).

Todavia, o século XI da Era Vulgar viu muitas mudanças. Os pequenos reinos cristãos no Norte da Península começaram a criar problemas para os Muçulmanos em Al-Ândalus. Os Almorávidas, (448-541 A.H./1056-1147) (50), subiram ao poder e com eles também veio uma atitude conservadora, permeada de intolerância religiosa para com os dhimmi e a sua posição político-social em Al-Ândalus. Conversões forçadas ao Islão deixaram aos Judeus com só uma solução: encontrar refúgio ou em outras terras muçulmanas — onde, segundo a lei islâmica, a tolerância era a norma —, ou emigrar para o Norte, aos novos estados cristãos de Aragão, Castela, Navarra e Portugal onde encontraram asilo, ganharam respeito e também receberam posições importantes nas comunidades locais, entre as quais reparamos aquelas administrativas e diplomáticas. De facto, foi mesmo num ambiente urbano que os Judeus prosperaram. A sua antiga e secular experiência em transacções de negócios e a habilidade na maneira de tratar as actividades comerciais, tornaram a presença judaica muito valiosa para os Cristãos os quais, ao contrário, ainda se sentiam mais à-vontade num ambiente rural. Além disso, e mormente, os Judeus foram esta conexão indispensável entre os Muçulmanos e os novos estados cristãos do Norte. Isto explicaria a rápida ascensão social e económica dos Judeus, aspecto premunidor do futuro intercâmbio cultural que se seguiu:

With the decline of the Islamic centers in Spain and the reawakening of culture in northern Europe, displaced Jewish intellectuals found themselves in the advantageous position as translators and cultural intermediaries between the Muslims and Christians. Translating of Arabic texts into Hebrew or Latin facilitated a philosophical and scientific literacy among individual Jews, and more important, fostered an abiding interest in the issues that the texts emobied (51).

Intercâmbio cultural

Dado que muitos Judeus conheciam o Árabe, eles tornaram-se portanto indispensáveis quando os novos estados cristãos tomaram posse de antigos territórios peninsulares de língua árabe (52). Também nestes novos estados cristãos recém-nascidos, uma considerável autonomia e liberdade foi concedida aos Judeus. Nos territórios cristãos ibéricos, a língua árabe ainda guardava o seu lugar de cultura durante todo o século XII e durante uma grande parte da metade do século XIII. Durante todo este tempo os Judeus foram aqueles que mantiveram a tradição muçulmana viva. Os Muçulmanos já não estavam a morar em Dar Al-Islam mas antes, em Dar Al-Harb, ou seja, a "terra do inimigo", o território não-muçulmano. Os estudiosos judeus, então, eram responsáveis por transmitir a cultura árabe/muçulmana para o Cristianismo. Eles tinham, portanto, um papel activo no trabalho de transmissão do Árabe para ambos o Latim e as várias línguas vernáculas. Os Judeus executavam então uma vasta gama de trabalhos, a abranger assuntos que iam do literário e filosófico ao científico, passando pelo religioso-especulativo (em árabe, Kalam):

Jewish translators created more than a new library of accessible texts; they stimulated among their own coreligionists, along with the Christian patrons who encouraged their efforts, an enlargment of intellectual horizons and a rethinking of religious traditions in the light of new ideas, as well as acrimonius debate regarding the pernicious effect of such ideas on religiuos texts and teachings (53).

Os Judeus peninsulares, nas suas transacções quotidianas falavam Árabe, não o Árabe clássico do Alcorão, mas antes, a sua variante vernácula, também conhecida como Meio Árabe. Apesar das suas formas degeneradas, em comparação ao seu genitor incorrupto (54), o Meio Árabe encontrava-se, mesmo assim, consideravelmente perto da sua matriz. Portanto, não foi difícil para os escribas judeus, completamente fluentes no próprio vernáculo ibérico, traduzir o árabe literário destes tratados para a língua vernácula local. Também temos de nos lembrar que as línguas semíticas — como no caso do Árabe e, em medida menor, do Hebraico — mesmo tendo sofrido, como qualquer língua, mudanças e modificações linguísticas através dos séculos, ainda mantinham uma impressionante semelhança com o seu modelo clássico. Isto é em parte devido à própria natureza das suas religiões, onde as práticas religiosas fizeram de maneira que se mantivesse uma conexão estreita com o arquétipo linguístico original. O mesmo não pode ser dito para nenhuma das línguas românicas e os seus liames com o Latim, a sua língua de origem. As línguas românicas passaram por muitas mutações linguísticas e evoluções, afastando-se do Latim Clássico de uma maneira muito drástica que o simples conhecimento do Romanço — ou seja, qualquer uma das futuras línguas românicas — não ajuda na abordagem às letras e ciências sob o ponto de vista do Latim Clássico.

As interacções entre Judeus, Muçulmanos e Cristãos foram portanto essencial na transmissão da antiga ciência oriental, médio-oriental e greco-helénica para o Oeste. A particular ênfase que os Muçulmanos a residirem em Al-Ândalus puseram sobre a Ciência — em particular a Astronomia e Astrologia — abriu as portas à Europa, assim estimulando os interesses, o estudo e a constante e sempre aperfeiçoada pesquisa que finalmente levará às realizações de Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642), a mencionar só alguns entre os mais famosos cientistas europeus da Idade Moderna. As actividades astronómicas — ou seja, traduções, trabalhos originais baseados em observações práticas de fenómenos naturais e celestiais — prosperavam em todo o Império Muçulmano, do Magrebe e Al-Ândalus às margens do rio Ganges e às costas do Oceano Índico. Traduções de trabalhos científicos gregos eram feitas e refeitas de novo, com emendas e aperfeiçoamentos e, quanto às edições, Ptolomeu era o mais traduzido e revisto autor de toda a antiguidade. Entre os muçulmanos ibéricos, Al-Zarqalah, autor das famosas Tábuas Toledanas, foi o mais proeminente. Ao mesmo tempo, porém, estamos a assistir à transferência e consequentemente à assimilação de Cristãos para este novo conhecimento e interesse nas ciências, não só na Península Ibérica, mas também no resto da Europa. Todavia, por quase três séculos, Al-Ândalus foi o centro, o ponto de irradiação desta cultura científica Médio Oriental, islâmica assim como judaica. De facto, um sempre crescente número de estudiosos judeus encontrava-se também envolvido nos interesses de ambos os Judeus e/ou os (Judeu)-Árabes:

Other Jews derived social and political advantage as astronomers and astrologers, employed by rich patrons or even governments valued their linguistic, scientific, and philosophic expertise (55).

O renovado interesse na ciência islâmica avizinhou Judeus e Cristãos, estimulando a formação de equipas de tradutores inter-étnicas. Estes grupos de Judeus e Cristãos, assistidos por Árabe-Muçulmanos, fixaram os padrões para traduzir e transmitir a ciência árabe/islâmica ao Oeste (56).