JOSÉ MANUEL DE CASTRO PINTO
José do Telhado - Culpado e inocente (Vol II)

AGUADEIROS, GALEGOS E CONFISSÕES

RECONSTITUIÇÃO:
Este episódio foi dos que mais vincados ficou na literatura de cordel,
e nela nos baseámos para fazermos a nossa Reconstituição













O HOMEM DAS BARBAS É O ZÉ DO TELHADO


Um galego que morava na Rua Escura, no Porto, exercia desde há muitos anos a profissão de aguadeiro, até que, um belo dia, resolveu regressar à terra natal, a cidade de Tui, que fica logo do lado de lá do Minho.

Meteu-se a caminho. Viajava a pé, para economizar a passagem, e levava uma cana grossa, que lhe servia de bengala.

Quando ia já próximo de Barcelos, salta-lhe de súbito à estrada um homem que estava escondido num barranco:

- O dinheiro ou a vida!

O galego mirou de alto a baixo a visita que tinha pela frente: era um homem forte; e bem vestido. Trajava jaqueta de peles, calças de casimira, faixa à cinta, sapatos de cabedal amarelo e chapéu de aba descaída. Por fim, o aguadeiro implorou:

- Senhor, sou um pobre de Cristo que vou de caminhada para a minha terra e não levo nada comigo. Só estes trapos que vossemecê vê!

Por seu lado, o homem da jaqueta ficou desiludido com a inesperada presa e disse com os seus botões:

"Pensei que ia caçar algum lavrador ricalhaço, que tivesse feito chorudo negócio e viesse sozinho por desconfiar até dos amigos, e afinal dou de caras com um maltrapilho!"

- Para onde vais tu, assim tão miseravelmente vestido? - perguntou o homem da jaqueta, já condoído com o triste aspecto do viandante.

De facto, o galego apresentava-se todo cheio de remendos, coberto de pó pela dolorosa caminhada, agarrando-se desesperadamente ao fraco amparo da cana que lhe servia de bordão. Era mais digno de dó que de cobiça.

- Vou de volta para minha casa, que fica em Tui, na Galiza, a ver se passo lá menos trabalhos do que cá. Assim como assim, ao menos estou na minha terra. E vou com pressa, porque o governo de lá anda a chamar homens para se matarem uns aos outros nessas malditas guerras, e eu quero ir apresentar-me já, porque não quero que depois as autoridades me pilhem e me metam na cadeia.

- E fazes bem! - aplaudiu o homem da jaqueta. - Quanto levas contigo, para gastares numa viagem tão grande?

- A bem dizer, nada, meu senhor. Que podia eu levar? Matava-me a acarretar barris de água para casa dos fregueses, lá no Porto. Mas que pode ganhar um aguadeiro nesta terra? Nem para o pão me dava. Trago só comigo uma moedinha de um pinto, foi o que se pôde arranjar...

- Mas isso é muito pouco! - exclamou surpreendido o homem da jaqueta, cada vez mais condoído com a penúria do viajante. - Nem sequer te chega para pagares as pontes! (1) E não te esqueças que ainda tens muito caminho para palmilhares!...

- Pois é, meu senhor! Mas que hei-de eu fazer?!...

- Olha! Então toma lá outro pinto, que te dou eu!...

E o homem da jaqueta rebuscou no bolso e passou-lhe o pinto para a mão.

Nesse momento, os olhinhos do galego rebrilharam. Era a cobiça! Já que o desconhecido era tão generoso, não poderia compadecer-se ainda mais? E numa ânsia:

- Ó meu senhor! Já que é tão bonzinho... Dois pintos não chegam para nada... Ainda tenho muito caminho para andar. Se me quisesse dar mais qualquer coisinha!... Isto ainda é pouco.

Imediatamente o homem da jaqueta, que se mostrara generoso mas não gostava de abusos, arrancou a cana das mãos do galego para lhe dar com ela duas bordoadas bem assentes no lombo, para lhe castigar a ganância:

- Ah meu patife! Então tu trazias só um pinto e havias de remediar-te com ele, e agora já nem dois te chegam?!...

- Ai! Ai! - gritou o galego ao cair da primeira bordoada.

Mas, ao mesmo tempo, um som esquisito vinha de dentro do improvisado bordão:

- Tlim, tlim, tlim!

O generoso castigador ficou espantado, tanto mais que a cana fpesava muito. Mas admitindo ter-se enganado, não demorou a despedir segunda bordoada.

E o galego:

- Ai! Ai!

E a cana:

- Tlim, tlim, tlim!

Então o homem da jaqueta, muito intrigado, pôs-se a mirar e remirar a cana.

Nisto, o galego ajoelhou a seus pés e, de mãos erguidas, pediu-lhe pelas alminhas que lha devolvesse:

- Ó meu senhor! Dê-me a caninha, porque foi um patrício meu que me pediu para a entregar como lembrança à família dele lá na Galiza.

Mas o inesperado justiceiro abanou a cana furiosamente e depois bateu-a com força no chão: - e dela começaram a saltar, reluzentes, as primeiras moedas - loirinhas, de ouro legítimo!

Eram noventa peças de ouro! - Ai o grande mariola! Não está mal pensado, meu espertalhão! - e era um nunca mais acabar de ouro a sair da cana.

De joelhos, o galego implorava com mais instância ainda:

- Isso não é meu, ó meu senhor! Eu não sabia o que vinha lá dentro. Foi um patrício que me deu a cana para entregar à família dele.

- Sim! Sim! E antes que me esqueça passa-me para cá o meu pinto!

O galego devolveu o pinto ao desconhecido, que começou a apanhar as moedas do chão e a contá-las. Já em posse delas todas soergueu-se, enquanto o galego seguia atónito os seus movimentos, mas sem ousar intervir.

- Com que então, noventa peças, meu tratante! Deste-te ao cuidado de furares os nós da cana com fogo, para acamares cá dentro estas moedas todas! E vestiste-te como um maltrapilho para ninguém desconfiar! Agora toma lá vinte, que as outras são para mim.

O galego pareceu hesitante, nada satisfeito com a partilha.

- Podes seguir o teu caminho. Até vais mais leve, porque eu fico-te com a cana!

Considerando-se espoliado, o galego procurou enfrentar o desconhecido e vociferou:

- Mas isso é um roubo!

- Não é, não; estás enganado! É assim que o José do Telhado castiga os sovinas como tu!

Ao saber quem tinha pela frente, o galego emudeceu de espanto e mal conseguiu gaguejar:

- O Josééé... do Teee...lhaaa...do?!

- Sim; o José do Telhado! - volveu este, com escárnio, perante o pavor do galego. - Agora vai em paz apresentar-te às autoridades da tua terra, e diz aos teus amigos galegos que o José do Telhado praticou uma boa acção dando uma lição a um sovina!

E, sem esperar resposta, meteu por um pinhal, enquanto o galego apressava o passo, estrada fora, para ver-se longe de encontros com o famoso homem da jaqueta. Agora caminhava mais depressa, até porque fora aliviado da pesada cana que não voltaria a ver!

Uma hora depois, já o José do Telhado seguia pela estrada de Braga.

A tarde ia no fim, começava a escurecer. Lá à frente caminhava um homem, em passo lento. A sua roupa era limpa, mas o aspecto humilde. Debaixodo braço levava o seu ganha-pão: uma rabeca com que tocava nas feiras e romarias, cuidadosamente guardada numa saca de baeta verde.

 
(1) Naquele tempo era frequente, mesmo para as pessoas que iam a pé, terem de pagar para atravessar as pontes.