JOSÉ M. CASTRO PINTO - JOSÉ DO TELHADO

JOSÉ DO TELHADO
Mestre e Repartidor Público

IN: JOSÉ DO TELHADO
O ROBIN DOS BOSQUES PORTUGUÊS?
VIDA E AVENTURA
José M. Castro Pinto
Plátano Editora, Lisboa 2002

Documentação histórica e Tradição

Gorara-se o assalto à Casa de Cadeade, do Dr. António Fabrício. Mas isso não prejudicou o prestígio do José do Telhado: muito pelo contrário.

Dentro do bando sabia-se que a inveja do José Pequeno e a cobiça de mais uns tantos fora a razão daquele ataque precipitado. Sabia-se também que o homem de Sobreira não receara enfrentar o José Pequeno, repreendendo-o e ameaçando-o, e que o trazia mesmo debaixo de olho. Além disso, o José do Telhado tinha conhecimentos fora do comum, já estivera em Lisboa e servira chefes militares importantes. Até fora condecorado. Fizera a tropa na cavalaria, em Lanceiros da Rainha, chegara a sargento, fora ordenança do barão de Setúbal e do visconde de Sá da Bandeira, e - o que era mais importante - conhecia a estratégia militar e tinha um grande sentido prático. Como se tal não bastasse, possuía força, habilidade e coragem; mais que isso, uma coisa que todos compreenderam logo: ele não permitiria indisciplina nem desordem. Os outros viam-se compelidos a confiar na sua valentia e lealdade. E, instintivamente, começavam a admirá-lo e a respeitá-lo.

Seria invulgar naquelas circunstâncias, mas o certo é que passava a dispor de um nítido ascendente moral.

Custódio, que nunca consentira que chamassem médico para tratá-lo, viu o seu mal agravar-se mais do que contava. O tiro e as pisadelas do animal eram de consequências bem mais sérias do que a princípio se supunha. Diz a tradição que resolveu então partir, conforme pôde, para a sua terra natal, acompanhado do Girafa, em vista de um tratamento mais cuidado, retirando-se assim, pelo menos temporariamente, da chefia da malta. Mas a presença do José do Telhado, impondo-se como mestre indiscutível, era para Custódio uma espécie de compensação, pois agradava-lhe a personalidade, bravura e franqueza do antigo lanceiro.

Praticamente, todas as pessoas da época que se referem à constituição física do José do Telhado (nomeadamente as testemunhas de casas assaltadas) o descrevem como um homem muito bem constituído fisicamente, alto e forte. Tinha barba cerrada, que usou ao que parece durante a maior parte da sua vida, descaindo em leque. Olhos e cabelos castanhos. Além disso, era muito ágil, e especialista no jogo do pau e no manejo de armas de fogo.

Repare-se que nem podia ser de outra maneira: muito ágil e forte. Refiramos apenas que muitas e muitas vezes conseguiu fugir a cercos que lhe eram feitos por mais de dez ou de vinte homens, regedores e soldados. Isso aconteceu em cercos a casas onde dormia e até em pleno dia, como na feira de Vila Meã, por exemplo. Já sem falarmos que sob o seu comando tinha mais de trinta homens, alguns de instinto feroz que era necessário dominar.

Poucos dias depois do assalto a Cadeade, o José do Telhado mandou comparecer todos os homens, à noite, no casebre que fora quartel-general de Custódio, o Boca Negra, e começou por dizer-lhes:

- De hoje em diante acabou-se a revalbaria! Temos de levar a vida a sério se queremos vencer. E quem não estiver satisfeito pode sair já, a porta está aberta! De hoje em diante, a malta aqui reunida não será um bando de ladrões. Governamo-nos, mas eu só vou tirar aos que têm mais, para dar aos que têm menos. Proíbo, ouvi bem: proíbo!, que alguma vez se tire aos pobres e a todos aqueles que vivem honradamente do seu trabalho. Nesta nossa comunidade (1), também não consinto que se matem pessoas; e só usaremos a força quando resistirem e nos obrigarem a isso. Também não admito que ninguém se aproveite da ocasião para abusar das mulheres.

Fez uma pequena pausa, olhando os circunstantes. Estava no meio da casa, de mãos atrás das costas, encostado levemente à mesa, onde a pálida luz da vela emprestava um certo ambiente místico de cabala.

Ninguém ousou contestar as palavras daquele que acabava de se consagrar como mestre indiscutível e indiscutido.

O José do Telhado prosseguiu:

- De hoje em diante, eu só estou aqui como Repartidor Público (2). Tudo o que tirarmos aos outros não será só para nós. Uma parte é para os pobres. Ali para o Douro há muita gente rica, mas também se vê por lá muito pobre. Tenho visto por aí muitos velhos, sem terras, nem nada, e mulheres com bandos de filhos. A nossa comunidade tem de ajudar os que são esquecidos por todos. Também não podemos esquecer-nos do senhor Custódio, e vamos ajudá-Io a curar-se do mal que tem. Ele precisa de dinheiro.

A tradição oral e escrita faz muitas referências a esta repartição dos dos bens obtidos nos assaltos. Não se pode simplesmente dizer que ela não tem um fundo de verdade.

."Eram sete os quinhões a repartir do espólio", diz Camilo Castelo Branco, em Memórias do Cárcere, referindo-se às riquezas conseguidas no assalto ao Carrapatelo.

."Não consinto que se derrame sangue [...] e uma quinta parte dos lucros será distribuída pelos pobres da região", diz José do Telhado, pela boca de um escritor Anónimo, que conta a vida do salteador.


Ia-se fazendo ouvir um certo murmúrio. O José do Telhado suspendeu a sua fala, com ar interrogador:

- Que dizeis?

- É que não fica muito para nós - afoitou-se a adiantar o Veterano. - Quanto tempo vamos ficar a pagar para o Custódio? Ele pode não arrebitar, e levar tempo a esticar. E agora há também o mestre...

- Ao senhor Custódio paga-se enquanto ele precisar - interrompeu o José do Telhado. - E eu para mim só quero tanto como cada um de vós. Não quero mais nada.(3)

- É de homem! É de homem! - exclamaram algumas vozes em coro.

- Ah! Se é assim... 'Tá bem! - concluiu o Veterano, tirando o chapéu da cabeça em sinal de respeitosa concordância.

- Estou aqui às tuas ordens, mestre! Ninguém cumpre mais que eu... - interveio o Avarento. - Mas acho que cada um trata de si... Não tenho nada a ver com os pobres!

Houve alguns murmúrios, uns concordantes outros não.

- O mestre é que sabe! - replicou o Sancho Pacato.

- Mas eu cumpro!... Mas eu cumpro!... - apressou-se a confirmar o Avarento.

Depois, durante um minuto, nenhum dos circunstantes tomou a palavra. Então o José do Telhado prosseguiu:

- Os ricos e os políticos é que hão-de pagar para os pobres... Os políticos têm sido a desgraça dos pobres. Prometem tudo, mas só protegem os que eles muito bem querem (4). Aos pobres passam a vida a mentir-Ihes. De hoje em diante eu serei repartidor público. Podeis dizê-Io a toda a gente. O povo há-de sabê-Io. E também quero que as autoridades o saibam. Porque este encargo foi-me dado pelo povo.

"Ele mesmo se intitulava Repartidor Público." Campos Monteiro, obra citada

A organização do grupo

A partir deste dia, o José do Telhado, aplicando um pouco os seus conhecimentos militares e ajudado pelo seu sentido prático, começou a estruturar um bando organizado.

Em cima, como comandante, encontrava-se ele, José do Telhado. Depois, como 2º elemento, o ajudante, estava o Joaquim do Telhado, seu irmão (5); abaixo deste, eram os chefes de divisão: o José Pequeno, os dois filhos do morgado de Canavesinhos (António e José) e o Sarrazola.

Cada um destes chefes encarregava-se de um grupo de divisionários (geralmente constituído por 4,5 ou 6 elementos), entre os quais se contavam o Avarento, o João de Morais, o Glórias, o Peneireiro, os Pedreiros, etc. (6)

O total do bando cifrava-se em pelo menos 25 indivíduos.

Havia ainda o corpo auxiliar (constituído por donos de estalagens, criados e criadas de servir, e outros), que prestava preciosas informações à sociedade:

"Era por intermédio do seu corpo auxiliar que José do Telhado sabia se os viajantes que ceavam ou dormiam nas estalagens, conduziam dinheiro, para onde iam e a que horas retomavam a jornada, se havia valores nas casas e em que recanto se guardavam, se as autoridades se mexiam para o perseguir, etc. Como vêem, um serviço esplendidamente montado, que participava ao mesmo tempo da estrutura militar e da mais perfeita organização policial."

Campos Monteiro, José do Telhado e os seus Quadrilheiros (Revista Civilização, 1930-1931; Edições do Tâmega, 2001)

Numa época em que se viajava a cavalo ou em carruagens puxadas por cavalos, ir comer e dormir às estalagens era uma necessidade. Mas também um perigo, como estamos a ver.

No entanto é de assinalar que uma estalagem podia ser procurada precisamente por causa dos assaltos. Porquê? Quando se conseguia obter, em determinadas estalagens, um salvo-conduto que garantia protecção contra os assaltos.

Veremos, já daqui a pouco, episódios em que aparecem os salvo-condutos passados pelo José do Telhado.

Iremos citar fragmentos de Autos, pelos quais se poderá ver duas coisas: uma, que as casas assaltadas tinham sempre bom recheio; outra, a que em alguns casos (como em Senra e em Sequeiros) são os próprios assaltantes que tomam a iniciativa de se dirigirem aos lugares da casa onde se encontram escondidas as riquezas... porque já sabiam que estavam lá!

Parece-nos, no entanto, que esta estrutura da quadrilha apontada por Campos Monteiro não pode ser tomada com muita rigidez, nomeadamente no que se refere à existência de um "ajudante" específico.

Além disso, hoje em dia, questiona-se quem eram os homens da família do José do Telhado envolvidos nesta quadrilha.

Nos autos do Arquivo Distrital e no Tribunal da Relação do Porto encontramos várias referências, de anos diferentes, ao(s) irmão(s) Joaquim do Telhado e António do Telhado. Não parece de crer que as autoridades andassem a fazer confusão durante tantos anos não sabendo quem eram este Joaquim e este António.

Ora bem! Há um auto onde o José do Telhado fala no seu irmão António Joaquim. Assim sendo, estará resolvido o mistério. Com efeito, nunca vemos nomeados ao mesmo tempo os irmãos (?) Joaquim e António: tratar-se-á da mesma pessoa. Aliás, o nome António Joaquim era muito frequente naquela época.


(1) Ou sociedade, agrupamento; por isso os seus componentes eram por vezes chamados sócios.
(2) Para apresentarmos estas declarações do José do Telhado baseámo-nos em elementos da tradição escrita. No entanto, são factos indiscutíveis o ele apresentar-se como Repartidor Público (afirmou-o mais do que uma vez em frente das autoridades) e ajudar, em várias situações, gente pobre muito necessitada.
(3) Diz a tradição que Custódio retirou-se e morreu passados poucos dias.
(4) A seguir à Maria da Fonte, intensificaram-se por todo o país as perseguições aos perdedores da revolta. Isso reflectia-se sobretudo a nível económico, não conseguindo empregos e sendo-lhes agravado o pagamento dos impostos.
(5) Diz-se que Joaquim do Telhado chefiava um bando e se juntara ao irmão para algumas acções em conjunto; porém os seus subordinados, reconhecendo a valia e superioridade do irmão, jamais quiseram voltar à antiga chefia, vendo-se Joaquim do Telhado na necessidade de Ihes seguir o exemplo.
(6) Em muitos casos referimos apenas a alcunha ou um nome, e não o nome completo. Os leitores compreenderão que evitemos identificar desnecessariamente nomes ou famílias.