O ROBIN HOOD PORTUGUÊS - MARIA ESTELA GUEDES

JOSÉ DO TELHADO
O ROBIN DOS BOSQUES PORTUGUÊS?
VIDA E AVENTURA
José M. Castro Pinto
Plátano Editora, Lisboa 2002, 256 págs
 

I - O REPARTIDOR PÚBLICO

José Manuel de Castro Pinto conta a história de José do Telhado, que a si mesmo se nomeara para o cargo de Repartidor Público. Esta designação faz pensar nas "repartições públicas", esses lugares de disforia em que invariavelmente esperamos horas, ao qual regressamos várias vezes, de onde nos remetem para outras repartições, das quais nos reenviam para a primeira, seja por causa de uma contagem de tempo para fins de aposentação, seja para recebimento de um subsídio ou abono de família. Para nós, hoje, "repartição pública" é uma expressão cujos progenitores filológicos estão remetidos para a obscuridade, substituível por "burocracia".

Porém, quando o autor insiste nessa circunstância de o Zé do Telhado se apresentar como Repartidor Público, logo o contexto e a parentela etimológica se iluminam - há repartições públicas porque a riqueza de uma nação deve ser repartida (equitativamente) por todos os cidadãos. E quem seria então o legítimo Repartidor Público? Encontrei vários cargos consignados nos livros com o primeiro nome - Repartidor Nacional de Cargas (eléctricas), repartidor de águas, repartidor de heranças, e no Brasil havia o repartidor nos engenhos do açúcar -, mas não descobri nenhum "Repartidor Público". Talvez nunca tenha existido, excepto na mente de quem faz este raciocínio: a riqueza da nação deve ser repartida por todos e não apenas por alguns, não é justo que uns poucos tenham tudo e a maioria viva na pobreza, logo tem de haver um Repartidor Público à margem da lei, se os Estados não tomam esse en_cargo. Ora este raciocínio faz parte de um ideário socialista, o que confere dimensão política à figura do herói que cavalgava pelos montes, se escondia nos bosques e nas serras, e comandava homens chamados "Pequeno" e "Pedreiros", que o tratavam por "Mestre". Em geral, os pedreiros têm como matéria-prima a pedra, os homens da floresta usam a madeira. Todos porém costumam designar-se por "construtores" ou mesmo "arquitectos".

José do Telhado é o Robin Hood português. Actuou como comandante de quadrilhas de salteadores em meados do século XIX. A sua atitude é de benemérito: não só tira aos ricos para dar aos pobres, e obriga os ricos a repartirem com os que nada têm, como age à maneira de Salomão, repartindo outro tipo de justiças. Por coincidência salomónica ou não, uma das suas repartições também envolve uma criança, que o padre da aldeia não queria baptizar, por a mãe não ter dinheiro para pagar as custas do sacramento; o José do Telhado não só obriga o padre a baptizar o bebé como a dar dinheiro à mãe. As suas maiores vítimas, como D. Ana Vitória, cuja casa de Carrapatelo vimos assaltada em texto anterior, acabam por ser os seus maiores aliados, dispensando-lhe protecção, quando o cerco das autoridades se aperta. A sua área de operações foi o Norte, sobretudo região do Douro central - Penafiel, Amarante, Felgueiras, Serra do Marão - e o facto de à rede dos seus informadores terem pertencido padres, e outras pessoas de estatuto social elevado, deixa perceber que o fenómeno envolve movimentações nada compatíveis com a criminalidade em sentido estrito. Outro aspecto estranho para o qual José M. Castro Pinto chama a atenção é para ilegalidades nos processos judiciais: falsificação e desaparecimento de documentos, suborno de testemunhas, etc.. É esse o título do capítulo 28: "Os assaltantes têm de cumprir as Leis. E as autoridades podem falsificar julgamentos?" Anota o autor, cheio de razão: "Mas parece-nos que aquilo que mais terá incomodado a justiça não terá sido os assaltos que fez, mas sim a denúncia das injustiças sociais que ficavam tão à mostra. Um salteador gozar da simpatia das classes humildes e até de gente rica - incomoda, pois claro! - e muito."

Porventura a quadrilha seria mais um pequeno exército, aliás o José do Telhado cumprira serviço militar e participou na revolução da Maria da Fonte, com Sá da Bandeira, a quem salvou a vida - Sá da Bandeira ocupou o mais alto grau na Carbonária portuguesa. Era um perito em armas de fogo. Chama-nos igualmente a atenção o uso do machado, instrumento tão ligado à madeira como o malhete à pedra, que também vimos ser usado no "Assalto à casa de Carrapatelo", e aparece noutros assaltos. Porventura um ideário socializante o moveria, já que é um desafio ao regime a existência de um Repartidor Público e de uma repartição de riquezas cometida à revelia da Lei. José do Telhado (1818-1875) morreu em Angola, no desterro. Não fora esse desacerto cronológico e geográfico do destino e teria participado na implantação da República Portuguesa, levada a cabo por pessoas como ele e da sua rede - gente da "floresta", armada, pertencendo a todos os estratos sociais, sobretudo intelectualizados. É para esse alvo utópico que tende o sentido mais amplo da narrativa, e essa também a matéria que o autor se propõe desenvolver num segundo volume.


Pormenor do mapa que mostra o raio de acção da quadrilha


II - AUTOR ANÓNIMO

É preciso distinguir as formas dos conteúdos para descrever este livro algo bizarro, profundamente híbrido, que podemos classificar como manual escolar, como guião de filme, como biografia, mas que realmente, ao misturar tudo isto, cria algo de novo, até do ponto de vista gráfico: a reconstituição do autor, na maior parte dos casos dialogada, é acompanhada por imagens, documentos, citações em prosa e verso de outros autores, resumos, esquemas escolares para análise de texto, mapas geográficos, notas sobre a etimologia das palavras e significado de certos vocábulos, apelos à atenção do leitor para a moral da história, etc.. São estes alguns caracteres da morfologia externa da obra. Os internos tendem todos para o mesmo alvo: a reposição da verdade. A verdade repõe-se em duas frentes: correcção de dados biográficos erróneos, e correcção da leitura que certos sectores fazem sobre o facto de José do Telhado ser um simples salteador. Realmente, não é possível aceitar esta versão. Faltam elementos para o caracterizar mais completamente, sobretudo acerca do período em que José do Telhado foi militar, pois era no Exército e Marinha que se procedia em maior escala ao recrutamento para as sociedades secretas. Talvez José M. Castro Pinto abra essa porta no segundo volume. Por enquanto, na falta de mais informação, a simples colagem a Robin dos Bosques, permitida pela tradição, já confere dimensão literária e mítica à sua pessoa, o que é incompatível com a ideia de um simples criminoso que apenas move ao desejo de o encarcerar. Ele movia à adesão, simpatia popular, compreensão, cumplicidade, e até ao amor das vítimas.

Pela segunda vez, José Manuel de Castro Pinto conta a história de José do Telhado, tão insatisfeito com a primeira que não a inclui na bibliografia, e dela só salva algumas citações atribuídas a "Autor Anónimo". Estas citações são curiosas, interferem ficcionalmente com a sua orientação para os factos, e mesmo jurídicos, que constituem o mais forte contributo para o apuramento da verdade histórica neste segundo livro, a que se seguirá um terceiro (segundo volume). O autor fez pesquisa, consultou fontes primaríssimas como certidões de nascimento, casamento, os autos, etc.. E também consultou fontes muito secundárias, poetizadas no "Só" por António Nobre e romanceadas nas "Memórias do Cárcere" por Camilo Castelo Branco, que esteve preso com José do Telhado na Cadeia da Relação do Porto.

Camilo é aliás o seu principal ponto de referência quanto à reposição da verdade, porque o autor do "Amor de Perdição" não submete a literatura aos factos históricos. Como qualquer artista, submete a História às necessidades da arte, por isso as suas datas e nomes relativos a José do Telhado e familiares estão errados. Porém Camilo, com o seu desacerto nos pormenores, é uma fonte primária também. Ele conheceu o Zé do Telhado, estiveram presos na mesma altura e, segundo informação pessoal de José Manuel de Castro Pinto, foi Camilo quem arranjou advogado ao Zé do Telhado - Joaquim Marcelino de Matos, de Lamego, formado em Coimbra, e que passou para a praça do Porto. Era também um ardente defensor das correntes socialistas que estavam a difundir-se em Portugal, fez parte dos batalhões da Patuleia - os patuleias eram os radicais de esquerda de então. Defendeu o réu gratuitamente, aliás há um pormenor no livro que nos desperta a curiosidade, tanto mais que o autor não parece dar-lhe atenção: o José do Telhado não era pobre, vestia bem, mirava-se ao espelho, apreciando apresentar-se apessoadamente. Porém rico também não era e teve de ser socorrido na fase final, até por esse advogado benemérito. Ora bem: qual o destino então dos saques? Que fez ele à parte que lhe competia da repartição dos roubos, e que não devia ter sido tão pequena como isso?

E sobra ainda esse entremês ficcional: entre história e literatura, onde encaixar os testemunhos do autor anónimo?

Ele é um elo de ligação entre textos morfologicamente diversos, uma personagem romanesca, uma figura de auto-ironia que só descodifica quem leu o seu primeiro livro. Nós aguardamos ansiosamente o terceiro e não o segundo, pois muito há ainda para descobrir sobre o Zé do Telhado. Só uma parte do que parece uma alta venda foi ainda desvendada, a excitante telenovela (e porque não usar o guião para esse fim?) ainda vai no adro.