JOSÉ MANUEL DE CASTRO PINTO - JOSÉ DO TELHADO
Casa de Carrapatelo, fachada nascente




ASSALTO À CASA DE CARRAPATELO
DE D. ANA VITÓRIA
IN: JOSÉ DO TELHADO
O ROBIN DOS BOSQUES PORTUGUÊS?
VIDA E AVENTURA
José M. Castro Pinto











Freguesia de Penha Longa, concelho de Marco de Canaveses, distrito do Porto
8 de Janeiro de 1852, cerca das 8 h da noite
Documentação histórica e Tradição

A Casa de Carrapatelo, situada próxima da Barragem do Carrapatelo no rio Douro, pectence à freguesia de Penha Longa e naquela época fazia parte do julgado de Benviver. Fica na margem direita do rio, a pouco mais de dez quilómeuos do Marco, a sede do concelho (1).

Quem embarcar na pequena praia do Lavadouro e descer pelo rio Douro abaixo, após cerca de meia hora de viagem poderá ver, olhando lá para cima, à direita, empoleirada no alto da escarpa, uma casa de feição fidalga - é a casa da quinta de Carrapatelo. Sozinha. Isolada.
O solar exibe a sua frontaria principal virada para o rio Douro, como que a mirar-se nele. Em frente da casa, um pequeno largo com um parapeito muito baixo; depois é a escarpa, e lá ao fundo, a menos de cem metros, as águas do rio.

Fachada principal, a sul

Esta é a fachada sul. Mas existe uma segunda, virada ao nascente, para cuja porta se sobe por uma elegante escadaria de granito, com um corrimão também de granito. Ao cimo da porta ostenta-se o brasão da família Abreu e Lemos.

Do lado de trás, voltada para norte, fica a porta da cozinha.

Vista de frente, pela fachada principal, a casa tem as portas ao rés do chão e por cima os aposentos, e num andar superior alguns quartos que ficam ao nível das águas-furtadas. Naquela época, a casa ainda não tinha a capela nem a pequena construção com a latada (do lado esquerdo, na foto).

A Casa de Carrapatelo pertencia ao rico fidalgo provinciano José Joaquim de Abreu e Lemos, de 73 anos, sargento-mor das milícias do julgado de Benviver, que aí habitava na companhia de sua filha, D. Ana Vitória de Vasconcelos e Abreu Lopes da Fonseca Lemos, de 39 anos, viúva; de sua filha natural D. Rita de Cássia; e de sua neta D. Ana Amélia, de 19 anos, solteira; além dos criados e criadas da casa. Tinha ainda outra neta, D. Maria de Melo, de 22 anos, que casara havia um ano com João da Silveira Osório de Vasconcelos e vivia na margem de lá do Douro, na Póvoa ou Quintã de Antemil.

A 3 de Janeiro de 1852 faleceu o sargento-mor.(2)

Todos os fidalgos e autoridades das redondezas tinham acorrido ao funeral e a apresentar condolências à família enlutada, além do muito povo que comparecera, pois era geral a estima pelos fidalgos de Carrapatelo e conhecida a bondade de D. Ana Vitória.

Durante a tarde do dia 7 iam partindo as últimas visitas.

***

Por trás do Carrapatelo ergue-se a serra de Monte de Eiras. Nas faldas da serra, num planalto com cerca de 150 metros de altitude, fica a capela de S. Brás, e, perto dela, uma corte que constitui uma espécie de abrigo. Esta corte era do Carvalhais, homem de confiança do Vinagre, de quem falaremos já a seguir.

Neste reduto encontravam-se, ao entardecer do dia 7, o José do Telhado e os seus homens. Dali ao solar de Carrapatelo, descendo por atalhos quase a pique, seriam 1500 metros.

_________________________________________________________________________

"Tendo atravessado o Tâmega no Barco do Canal [situado em Abragão, concelho de Penafiel], a quadrilha dirigiu-se para o monte do Castelinho, onde passou parte da tarde fingindo que caçava. Dali foi para a corte de Fandinhães, aonde o Fragas lhe enviou comida. Já noite, dirigiu-se a um alto que fica próximo da casa de Carrapatelo, onde José Teixeira destinou os postos de cada um."(3)

Campos Monteiro, obra citada

__________________________________________________________________________

O comandante preparara o assalto com todo o cuidado, e tomara as precauções necessárias para não se repetirem os erros de Cadeade. Acompanhavam-no, talvez, 25 homens (ou mais alguns, no máximo 30: a polícia não conseguiu apurar todos os nomes).
Ajudado pela sua experiência guerreira, traçou uma estratégia apropriada e pensou em todos os pormenores.

Mandara fazer um reconhecimento prévio ao local e escolhera os homens que entrariam consigo dentro de casa. Os restantes cobririam o assalto, uns vigiando os caminhos que levavam à quinta, outros postando-se mesmo ao redor da casa. Para pôr todo este grande plano em marcha, faltava só o regresso do batedor que enviara à frente para verificar se estava o caminho livre. Esse homem era o Vinagre, arrematante de carnes por profissão, em Canaveses, e profundo conhecedor da região.

- Vamos ter uma cobertura completa - disse o Avarento enquanto esperavam por notícias. - Os povos aqui para estes lados ficam longe da quinta, e os caseiros estão muito espalhados, e mesmo que quisessem não podiam acudir, porque temos muito pessoal.

- Se não fossem os meus homens não havia esta segurança toda - disse o Joaquim do Telhado, mal podendo abafar a inveja por os seus subordinados preferirem a chefia do irmão.

- Só há aqui uma coisa - interveio o Manuel Morgado. - Mourilhe é uma povoação grande, e podemos tê-los à perna. Fica logo do lado de lá do rio. Basta desconfiarem de alguma coisa, e aí vêm eles, é só meterem-se nos barcos, estão aí em menos de um credo.

- És um palerma! - replicou-lhe o José do Telhado. - Preparei tudo. Mandei os barqueiros virem todos para o lado de cá, Mourilhe está sem barcos.

- E não há o perigo de eles desobedecerem? - perguntou o Glórias.

- Respeitam-me muito - respondeu o José do Telhado. - Não vão arredar pé sem eu dar ordens.

Calaram-se. Ouviam-se passos a aproximar-se. Era o Vinagre que estava de volta.

- As novidades não são boas, chefe! - apressou-se ele a dizer. - Ainda há muita gente na casa.

- Ó diabo! - exclamou o comandante, preocupado. - Mas há homens? Viste bem?

- Há alguns! Há alguns! Estive lá mesmo ao pé de casa, é uma confusão, ainda há fidalgos e povo por todo o lado, ninguém deu por mim. Eu soube, por uma criada, que além da senhora, da irmã e da menina, ainda ficam lá para amanhã, o genro e o capelão, e o abade de Penha Longa, e mais o de Paços de Gaiolo, e um tal Serpa Pinto que é da Casa de Cerdeiredo, e mais duas meninas que são irmãs do genro.

- É muita gente! -disse o José do Telhado, pensativo. - É melhor esperar até amanhã.

Todo o bando olhou com ar interrogador para o comandante, aguardando explicações: então, o que fazer?

O José do Telhado virou-se para o Vinagre e recomendou-lhe: - Vais lá baixo à venda do José Ferreira, das Fragas, e trazeis comida à farta, broa, chouriço, e um cântaro de vinho e tabaco. Mas diz-Ihe que... bico calado! Desandas logo com ele para aqui, e não quero que vos vejam.

- Pronto! Está descansado!

E o Vinagre apressou-se a descer até à venda do José Ferreira, das Fragas.

***

No dia seguinte, 8 de Janeiro.

Terminara a ceia na Casa de Carrapatelo.

João, um dos dois homens que nesse momento se encontrava em casa - os outros criados, um fora ver sua mãe, outros dois tinham ido acompanhar ao fim da tarde o capelão, e finalmente o Francisco estava doente -, acabara de fechar todas as portas. Aproximavam-se as oito horas. Como de costume, os cães tinham entrado na cozinha para comer.

__________________________________________________________________________

D. Ana Vitória encontrava-se num dos dois quartos do andar superior do edifício (eram as águas-furtadas) conversando com a filha, O. Ana Amélia, com a filha natural do falecido, D. Rita de Cássia, idade cerca de 45 anos, e com duas outras meninas, D. Maria da Glória e D. Josefa Maurícia (irmãs do genro por parte da outra filha que não estava presente; teriam ambas uns 22 anos de idade"

__________________________________________________________________________

- Mãe! Pareceu-me ouvir barulho! -exclamou Ana Amélia, assustada.

- Não é nada. Foi impressão tua. São os criados a falar - disse D. Ana Vitória, procurando tranquilizar a filha.

Os criados que se encontravam em casa, nesse dia, eram:

João de Carvalho, novo, mas não sabemos a idade
José Pinto, 26 anos
Luísa Maria, 37 anos
Quitéria, 20 anos
Marcelina, 19 anos


Entretanto, momentos antes, tinham batido à porta da cozinha. O fiel João, pensando tratar-se de qualquer caseiro que viesse trazer algum recado ou saber ordens, aprestou-se a abrir a porta, ao mesmo tempo que soltava os cães e perguntava:

- Quem está aí?

De imediato surge-lhe um vulto pela frente. Ouve mais passos. Lembra-se dos ladrões Num movimento rápido, procura recuar e deitar a mão à porta para a fechar.

O Peneireiro vibrou-lhe uma violenta pancada com as costas de um machado, fazendo-o cair no chão, sem sentidos, à entrada da cozinha.

- Este já está! - exclamou o agressor.

Instantes depois, estavam dentro da cozinha uns dez homens: entre eles, o José do Telhado, como comandante; e ainda o Joaquim do Telhado, o José Pequeno, o Glórrias, o João de Morais, o Peneireiro, o Francisco Mineiro, e os irmãos Pedreiro (o Sopro-Leve). O José do Telhado e o seu irmão Joaquim levavam bacamarte e pistolas, e os outros iam armados com clavinas, pistolas, machados ou facas (4).

-Tu e o Glórias ficais aí de guarda! - ordenou o comandante virando-se para o Peneireiro. - Vigiais e vedes se é preciso alguma coisa. Não quero que façam mal ao homem. Se ele vier a si, mandai-o estar quieto.

As criadas gritaram. Foi um pandemónio. Luísa, a mais velha, estava sentada ao lume.

- Onde estão as suas amas? - perguntou-lhe o José do Telhado.
Diante de tantos assaltantes e o João de Carvalho no chão com
a cabeça partida, Luísa nada podia fazer, quase nem podia entrar em pânico, tinha de enfrentar a situação com o máximo de sentido prático possível.

- As minhas amas estão nas águas-furtadas.

- Leve-nos até lá - disse o comandante.

Luísa obedeceu, conduzindo-os pelo corredor em direcção à sala.

Aproveitando a barafunda da agressão ao criado, a Marcelina, que também se encontrava na cozinha, percebeu de imediato o que se passava e num tremendo salto de pavor subiu para cima do forno e daí para o caniço (5), onde se manteve quieta e aterrorizada vendo o que em baixo se passava. No meio da confusão, ninguém reparara na sua fuga. "Oxalá não se lembrassem de a procurar!", pensou. "Oxalá que uma tossidela involuntária, ou até a simples respiração, a não denunciassem!"

***

- Há qualquer coisa! - tornou Ana Amélia, cheia de medo. - Deus Nosso Senhor nos proteja! - implorou Josefa.

Só D. Ana manteve uma certa frieza, não deixando transparecer qualquer emoção. Compreendera tudo.

Mulher destemida e habituada a grandes decisões - viúva, o pai doente há bastante tempo e agora falecido - pediu um lenço, passou-o pela cabeça e, sem nada dizer, apressou-se a sair pelo falso da casa, que dá saída para o quintal das laranjeiras.

Estava escuro, mas conhecia bem o caminho.

"Preciso de pedir socorro, disse para si mesma. Custe o que custar. Se me apanham matam-me, mas tenho de tentar. São capazes de nos matar a todos... Se me apanham cá fora é pior, mas tenho de ir. Sobretudo por causa daquelas três meninas. Muitas vezes as quadrilhas não respeitam nada nem ninguém..."

Os pensamentos acudiam-lhe em turbilhão, num acesso febril. Procurava manter um passo apressado e ao mesmo tempo silencioso, apesar da escuridão.

Mas antes de chegar ao quintal ouviu junto a si, num tom baixo que parecia um segredar de amigo:

- Se tem apego à vida, volte para casa!

Na sua frente, tinha um homem com uma arma de fogo. Compreendeu que era inútil discutir. Dali por diante o seu lugar era em casa. E precisava de estar lá quanto antes.

***

O portão do quintal das laranjeiras ficara vigiado pelo taberneiro José dos Santos e pelo António Morgado. Fora este que aconselhara D. Ana Vitória a voltar para trás. Para o pátio do lado sul, virado para o rio, tinham sido destacados o Cabreiro e o Pichorra. O Manuel Morgado e o Vinagre tinham ficado de guarda a uma cancela do lado esquerdo da quinta.

O José do Telhado e os homens que o acompanhavam chegaram à sala de jantar, onde já se encontravam as três meninas e D. Rita de Cássia. Ao verem-nos assomar à porta atrás de Luísa, ainda ficaram mais aterrorizadas, se é que isso era possível. Reprimiram um grito e procuraram até abafar soluços e reprimir lágrimas, cada qual receando ser morta se deixasse transparecer o mínimo sinal de angústia.

A seguir a Luísa entrara o comandante: fisicamente bem proporcionado, barba cerrada descaindo em leque sobre o peito, vestido com bom gosto, dava um tom de certa imponência àquele quadro trágico.

"Um que parecia chefe, que era gordo, alto, corado, barba cerrada, com botas Alamona, jaqueta de malha e pintas [...]"(6)


Momentos depois chegava. D. Ana Vitória, que regressava do exterior.

- Quem é vosso chefe? - disse ela resolutamente dirigindo-se aos homens.

- Aqui me tem, minha senhora! - respondeu prontamente o José do Telhado; e tirando o chapéu em respeitoso cumprimento. - Às ordens de Vossa Excelência! - e depois de uma pausa perguntou, vivamente interessado: - Onde estava a fidalga?

D. Ana Vitória expôs a verdade, sem qualquer hesitação: - Quando vi o que se passava, quis ir pedir socorro. Mas um dos seus homeps obrigou-me a voltar para trás.

- Ah! - fez o José do Telhado ao ficar inteirado dos factos.

Uns breves instantes de silêncio. As pancadas do relógio da sala pareciam ouvir-se claramente como nunca, medonhamente. Todos os olhos se dirigiam para as duas grandes personagens, das quais dependia todo o desenrolar dos importantes acontecimentos que iriam suceder-se: D. Ana Vitória e José do Telhado.

Ele continuava de chapéu na mão, quando retomou a palavra, mantendo um tom afável:

- Eu sou Repartidor Público e venho buscar o que há a mais nesta casa. Sei que a fidalga é uma pessoa bondosa, que costuma auxiliar os pobres desta região.

A dona da casa procurou não deixar transparecer a comoção que lhe ia na alma e disse com firmeza:

- Que quer o senhor José do Telhado?

Com efeito, as suas suspeitas confirmavam-se. Agora já não tinha dúvidas nenhumas acerca do homem que estava diante de si. Já ouvira dizer que ele se intitulava Repartidor Público.

- O dinheiro, as jóias e as pratas - respondeu o José do Telhado em tom mais grave e pondo o chapéu na cabeça.

- Está bem. Entrego-lhe tudo, tudo, mas com uma condição! - respondeu D. Ana Vitória sem vacilar; fez uma propositada pausa, encarou-o bem de frente e só então acrescentou: - Que não batam em ninguém e sobretudo que respeitem estas três meninas que estão aqui.

- Tem a minha palavra. E saiba Vossa Excelência que o José do Telhado respeita sempre as senhoras e a vida de todos.

As pessoas começaram a movimentar-se, talvez sem saberem bem para quê, e algumas pigarrearam ou tossiram, como forma de descarregar do silêncio e da emoção a que a cena agora finda as obrigara.

- Por onde quer começar? - perguntou D. Ana Vitória. - Por aqui, já que estamos aqui.

Com toda a sua enorme coragem, a senhora de Carrapatelo procurava enfrentar tão difícil transe. E começou por entregar-lhe duzentos mil réis que tinha logo ali.

A um pequeno gesto de mão do comandante, os assaltantes começaram a abrir armários e guarda-louças, e retiraram lestamente salvas de prata, castiçais, faqueiros e outros objectos de valor.

Sequiosos de riqueza, não se esqueceram de pedir o ouro que as senhoras traziam. Josefa Maurícia e Maria da Glória ficaram uma sem o anel e outra sem os brincos, e D. Rita sem o fio. O Francisco Mineiro acabava de exigir o anel de ouro brasonado de D. Ana Vitória.

- Peço-lhe que me deixe o meu anel! - disse ela voltando-se para o José do Telhado. - É um anel de muita estimação, é um anel de família.

- Será feito como a fidalga quer! - respondeu ele, tirando o anel da mão do Mineiro e devolvendo-lho.


Mas não ia ainda a meio esta tarefa de recolha na sala, quando inesperadamente se ouviu um tiro. Todos ficaram espantados e receosos, até o comandante. Tudo parou.

- Vai lá abaixo ver o que se passa - disse o José do Telhado para o João de Morais.

Ficaram a aguardar. Mas antes que este tivesse tempo de chegar à cozinha, apareceu à porta o Peneireiro, com um ar idiota, meio a rir, meio atrapalhado. Era um rapaz ruivo, alto, pálido, de 26 anos.

- O que é que foi? - perguntou imediatamente o José do Telhado.

- É que o criado tornou a si... Começou a levantar-se e quis-me matar... - procurou responder evasivamente o Peneireiro.

- Coitado do João! - exclamou D. Ana Vitória, adivinhando o drama.

- E então? - perguntou o José do Telhado, cada vez mais impaciente.

- Então... tive de livrar-me dele... E mais a mais podia denunciar-me

- Disparaste? - perguntou o comandante, furioso.

- Dei-Ihe um tiro...

- Ah patife, que me traíste! Hás-de pagar pelo que fizeste! (8)

A realidade fora diferente. Sem dúvida que o infeliz podia ser uma perigosa testemunha e que o Peneireiro pode ter pensado em qualquer tentativa de resistência. Mas só o seu instinto de malvadez e a cobiça de participar pessoalmente no saque o levaram a transgredir as ordens do comandante, até porque o criado, desarmado e ferido, não estava em condições de fazer frente aos seus dois guardas.

Acontecera que o criado, com a cabeça partida, perdia sangue. Recuperara os sentidos e, muito a custo, conseguira levantar-se.

- Dêem-me uma pinga de água para matar a sede! - pedira ele. - Sinto a garganta a arder!

- Para que quer vossemecê água?! Deixe-se estar quieto! - respondera o Peneireiro.

E de imediato desfechou-lhe um tiro, que o apanhou no lado direito do abdómen e ele foi caindo lentamente para o chão.


***

Terminada esta primeira recolha, feita na sala, disse o José do Telhado:

- Agora queira conduzir-me ao seu quarto!

- Vamos - respondeu D. Ana Vitória, mantendo sempre a mesma firmeza de espírito.

E a dona da casa, com o José do Telhado a seu lado, seguiu à frente do grupo para o quarto.

Caminhavam no corredor. Ouviu-se um grito abafado de Ana Amélia:

- Ai! Deixe-me!

É que o José Pequeno procurara abraçá-Ia e abusar.

Olharam imediatamente para trás as pessoas da frente. D. Ana Vitória percebeu e disse asperamente para o José do Telhado:

- Se tem palavra, cumpra-a! Eu dei-Ihe a minha palavra que lhe entregava tudo, mas que respeitassem todos, e antes de tudo as meninas!

O José Pequeno largara Ana Amélia, que parecia chorar e tapava o rosto com as mãos. O comandante aproximou-se do José Pequeno e num repente aplicou-lhe uma forte joelhada seguida de pontapés ao estômago. O agredido agarrou-se à barriga a gemer e o José do Telhado socou-o no rosto desprotegido. A vítima caiu, um fio de sangue saindo da boca, e o comandante desfechou-lhe o primeiro pontapé na cabeça.

- Não o mate, senhor! - disse Ana Amélia puxando pelo braço de José do Telhado.

O comandante conteve-se e ajeitou a jaqueta.

- Pare com isso! - disse D. Ana Vitória retomando a marcha. - Já chega de mortes.

- Nunca ninguém ouviu dizer que eu deixasse fazer coisas dessas. É palavra do José do Telhado (9).

Chegados ao quarto, disse D. Ana Vitória tirando uma chave do peito e abrindo sem vacilar um guarda-jóias:

- Podem começar por aqui.

Era a recolha final dos objectos de ouro e pedras preciosas: cordões, anéis, alfinetes e outras coisas mais.

Voltaram à sala, mas o José do Telhado não estava satisfeito. - Ainda falta o dinheiro! -disse ele.

- Já lhe entreguei o dinheiro que tinha comigo - respondeu D. Ana Vitória.

- É pouco! Tem cá em casa trinta mil cruzados - replicou (10). - Não me peça para entrar no quarto do meu querido pai! Não

tenho forças para tanto! - disse D. Ana Vitória chorando.

Luísa, vendo que não havia outra saída, prontificou-se:

- Eu acompanho-os se for preciso.

Aprestaram-se para avançar as criadas Luísa e Quitéria, o José do Telhado, o Manuel Morgado (que entrara em casa ao ouvir o tiro do Peneireiro, procurando saber o que se passava) e o Sopro-Leve empunhando um archote.

- Senhor José do Telhado, lembre-se destas meninas! - disse D. Ana Vitória temendo pela ausência do chefe.

- Indique-me a fidalga um quarto com chave - respondeu ele.

Entraram as três meninas, o quarto foi fechado, o José do Telhado meteu a chave ao bolso e tocando na arma assegurou:

- Esta pistola responde pela honra dessas meninas!

O quarto do sargento-mor ficava a meio do corredor, do lado esquerdo. Mas a porta estava fechada à chave e naquela situação de dor ninguém sabia dizer onde estava a chave.

- Abro isso com a lâmina do machado - disse o Manuel Morgado.

Rebentou com a fechadura e entraram, mas também não se encontrava a chave da cómoda - onde talvez estivesse grande parte do dinheiro. Também com a lâmina do machado, o Manuel Morgado rebentou a tampa, o mesmo fazendo a uma papeleira. Nos restantes móveis não houve problema. Encontraram, de facto, bastante dinheiro: peças e pintos de ouro e cruzados de prata, além de mais alguns objectos de valor. À falta de sacos, meteram tudo em fronhas de travesseiros e lençóis.

Voltaram à sala, onde se encontrava D. Ana Vitória e D. Rita, e depois o José do Telhado abriu o quarto das meninas.

- Alguém as incomodou? - perguntou ele.

- Não! -responderam todas três, sentindo-se já protegidas, apesar dos terríveis acontecimentos que estavam vivendo.

O comandante virou-se para as duas senhoras e as duas criadas, e apontando o quarto disse:

- Entrem todas para aqui.

E antes de as fechar todas à chave, recomendou-lhes:

- Agora vou deixá-Ias aqui fechadas à chave. E estejam caladinhas, porque são muito bonitas! Não gritem nem se mexam antes de eu estar longe, que ninguém lhes fará mal. Adeus, minhas senhoras, até à vista!

Fechou a porta à chave e, em passo calmo, abandonou a Casa de Carrapatelo.

"[...] recomendou-lhes que estivessem caladinhas, que eram bonitas, fechou-as por fora e retirou-se a passo mesurado."

Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere


(I) O concelho de Marco de Canaveses foi fundado em 31 de Março de 1852, por decreto de D. Maria II, encorporando, no todo ou em parte, os julgados ou concelhos de Soalhães, Benviver, Canaveses, Portocarreiro, Riba Tãmega e Gouveia. Na altura do assalto, Carrapatelo pertencia ao concelho de Benviver, mas dois meses depois passou a integrar o concelho de Marco de Canaveses. Optaremos geralmente por dizer Soalhães/Marco, porque os documentos continuarão a usar, muitas vezes, a designação Soalhães.
(2) O funeral realizou-se no dia 5 para a Capela do Senhor Preso à Coluna, pertença da família, na Igreja Matriz de Paços de Gaiolo.
(3) In Campos Monteiro, obra citada. Alguns dos assaltantes fizeram a passagem do Canal em pequenos grupos, para não levantarem suspeitas. Levavam com eles duas cadelas (talvez com o intuito de acalmarem os cães da casa) e dois cães. O José do Telhado tinha com ele o seu cavalo. O comandante dera como senhas: Merda, para avançar, e Mesão Frio, para retirar.
[4) Bacamarte: "arma de fogo antiga, de cano curto e de grande calibre, com boca geralmente em forma de sino" (Dicionário da Academia); clavina: espécie de espingarda curta com estrias.
(5) Caniço: espécie de rede de canas entrelaçadas na qual se secam castanhas, ou se põem as carnes ao fumeiro ou se curam os queijos.
(6) Descrição feita pela criada Quitéria em declarações posteriores, num dos Autos. Botas Alamona = botas de montar a cavalo.
(7) Este anel ainda hoje se encontra na posse dos descendentes de D. Ana Vitória.
(8) Declaração de J. António dos Santos, um dos assaltantes que foi preso: «[...] que quem matou o criado, segundo o que ouviu dizer na saída a João Ribeiro Peneireiro, fora este, porquanto dizendo o José do Telhado que tinham feito mal em matar, porquanto ele tinha tratado bem as Senhoras da casa, este Peneireiro respondeu que o criado o tinha querido matar a ele, e que então ele o matara primeiro.» (In Autos, Tribunal da Relação do Porto.)
(9) Alguém ouviu da boca de Ana Amélia, mais tarde, que se não tem sido a sua intervenção, talvez o abusador não tivesse saído dali com vida.
(10) Nunca se sabe as más surpresas que a vida nos reserva: a informação da existência dos trinta mil cruzados fora passada para o José do Telhado pelo Fragas, que era, nem mais nem menos, afilhado do falecido sargento-mor e fora o fornecedor de pão e vinho na serra.