O CARBONARISMO
ITALIANO
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A POSIÇÃO RELIGIOSA DA
CARBONÁRIA ITALIANA

Os Carbonários, retomando por sua vez a estrutura cristã do rito de "Alexandre do Segredo" levado a Nápoles por Briot, exprimem bem o seu particularismo religioso neste aspecto:

"É impossível que na Itália as inclinações religiosas permaneçam inteiramente estranhas a uma instituição tal como é a Carbonária. Em um ou outro lugar, a incredulidade se associou algumas vezes ao amor pela liberdade e ódio pela opressão. Os Carbonários, ao contrário, mostram uma fé sincera na religião de Jesus, que se encontra no Evangelho, e liberta de todos os elementos estranhos que os teólogos nos têm introduzido em dezoito séculos. Esses são ao mesmo tempo reformadores políticos e religiosos".

Este credo Carbonário leva consigo todos os sinais das heresias espirituais medievais que propunham uma volta aos valores de base da cristandade primitiva - humildade, pobreza voluntária e liberdade de consciência - apontando o dedo contra a arrogante riqueza do Vaticano e o seu imperialismo político. Mas no século XIX divulgar uma tal posição significa também participar das primícias do laicismo, mesmo permanecendo fiéis à secular tradição italiana.

Nos nossos dias, os poucos paises laicos europeus são todos repúblicas, e os Carbonários foram republicanos que não viram mais os frutos de seus esforços e sacrifícios. A reunificação da Itália passava também através da oposição no particular estatuto dos Estados Pontíficios que separavam os reinos do Sul daqueles do Norte: esta oposição se estendia por via de conseqüência ao próprio Papado, com tudo que comportava no plano dogmático e religioso além do político. À diferença do autor do trecho citado, (que aparece em um número da Biblioteca Histórica em 1820, e é talvez da autoria do mesmo Briot -n.d.t.) nós não pensamos que esta vontade de retornar aos valores originais da cristandade pré-nicênica (325 d.C.) tivesse uma capacidade real de proposta inovadora no campo religioso. Parece-nos melhor que andasse de pari passo, no terreno revolucionário, com todas as outras propostas dos Carbonários.

Sendo o Vaticano um imperialismo local assimilável àquele global da Áustria, essa declaração parece reinvidicar a liberdade de consciência, mais do que formular uma proposta coerente ou uma inovação estruturada, espiritualmente e teologicamente falando. Não se trata senão de uma reposição em causa unilateral e declarada de uma autoridade dogmática. A imensa maioria dos Carbonários não percebeu, nem desejou, uma alternativa ao cristianismo. Notemos, de qualquer modo, levando em conta seu número e suas origens diversas, que alguns puderam pensar. Com efeito, é próprio na Itália, em Veneza, que o Rito maçônico de Misraïm, alter-ego do Misraïm francês de 1785 (arquivos da biblioteca de Alençon), apareceu em 1788, apresentado-se ao estudo como uma tentativa de retomada ética da religião antiga: isso teria, portanto, podido representar uma tipologia religiosa alternativa.

A presença de Garibaldi tanto entre os Carbonários quanto no Rito mais tardio de Memphis, a sua atividade maçônica que resultou na federação destes dois Ritos egipcios, as relações estreitas que conhecemos entre os membros de Misraïm e certos Carbonários no período do Terror branco, nos obrigam a aceitar a hipótese de que algum componente da Carbonária via em uma retomada ética do paganismo solução ainda mais radical no embate com o imperialismo romano. Esta dupla obediência maçônica foi também aquela de Briot e de Testa. De qualquer maneira, as origens francesas e néo-célticas dos Ritos Florestais, assim como o panteísmo deista de Toland, foram totalmente ocultados e ignorados pelo Carbonarismo italiano, que preferirá, ao máximo, lançar-se nas tradições mediterrâneas greco-egipcias (entre as quais é de compreender o néo-pitagorismo), majoritariamente em correspondência com a etnologia das populações interessadas.

Fica, todavia, assentado que os inimigos da Maçonaria em geral, e dos Carbonários em particular - como o abade Gyr - , não cessaram de formular em seus confrontos suspeitos de ateísmo, mas sobretudo de panteísmo, a grande heresia libertária. E mesmo este panteísmo se reencontra tanto nos clãs célticos antigos quanto em certas heresias medievais maiores e impenitentes, na vida de Giordano Bruno, nas proposições de John Toland baseadas sobre aquelas de Spinoza e, em certa medida, em toda a corrente libertária maçônica do Século das Luzes. Basta revelar e sobrepor, como já fizemos anteriormente, as grandes datas das ações progressistas da Maçonaria com as datas das excomunhões e dos Silábios lançados pelo Vaticano entre os séculos XVIII e XX para compreender que se trata de uma dialética, de uma verdadeira relação entre forças contrárias, entre as proposições liberais em movimento e a manutenção de uma ordem constituída teocrática.

Creiamos então, levando em conto a magmaticidade inclassificável das proposições emancipadoras formuladas durante este longo e multíplice período, que a primeira ação dos Carbonários no campo religioso - a qual foi as formas e as expressões - seja reconduzível às reivindicações da liberdade de consciência, sinônimo perfeito da primeira heresia que contém em si todas as outras no direito canônico desta época, ainda dependente do quadro dogmático do Concílio de Trento. Com efeito, a primeira heresia como é descrita no "L´Etat en abregé de la Justice ecclésiastique et séculiére du pays de Savoie", de AChambert (1674), se coloca acima de todas as heresias particulares, e leva o nome de "LIBERTA". Eis o texto que a definia aos olhos do Vaticano:

 

"Todavia, como não existe pintura sem sombras, assim ocorria a deformação e a noite da heresia para reconfirmar as belezas da Igreja romana e as luzes que emanam das suas verdades. Oportet hareses esse, e como não existem nações bárbaras que não tenham adorado uma divindade qualquer, assim como não existe religião que não teve profanadores que fundaram sobre a ruína do culto divino uma liberdade desregrada: Ovidio os representou maravilhosamente na fábula dos Mineidi, onde, transformados em morcegos, que não são nem ratos nem pássaros e que nada procuram senão a escuridão e as trevas. Os heréticos seguiram sempre estes movimentos em suas revoltas imprudentes: a inclinação para a liberdade de fazer qualquer coisa, com arrogância, segundo sua opinião, e o amor cego do sentir pessoal são suas principais crenças; eles adquiriram a qualidade de agressores sem nada provar, e levam ao ridículo a Religião dos seus pais; querem que a fé e a natureza sejam submetidas ao mesmo gênero de demonstração; e, em suma, não tendem senão ao relaxamento, e sob pretestos similares supõem erros e abusos da Igreja para separar-se dela e fabricar uma a seu modo e não segundo a vontade de Deus: e como se fosse bom matar o corpo com algum membro doente, atacam aquele da Igreja, por motivo dos maus que ela teve em seu seio".

Depois de ter fustigado todos os grandes heréticos como Cerinto, Ebione, os gnósticos, Marcione, Mani, Ario, Pelagio, Berengario d´Angers, Giovanni Huss, Lutero, Calvino, Giansenio, e todos os cismáticos dos Patriarcados de Jerusalém, de Constantinopla, de Alexandria e de Antioquia - começa a ser muita gente - cai a sanção: "A pena do herege é a excomunhão, quanto à Igreja, e segundo as leis canônicas à privação da sepultura, se permanece obstinado. Ela condena o apóstata à prisão perpétua. O magistrado secular pune com a morte o apóstata e aquele que infrange os dogmas, e freqüentemente o fogo consome os seus livros junto com os corpos". Não tendo podido até agora atingir senão os cismáticos cristãos, as condenações continuam e se extendem ao mundo inteiro:

 

"Além dos hereges e dos cismáticos, existem nações sem nenhuma crença em Jesus Cristo, como os Judeus, como os Pagãos e os Maometanos, mas a Igreja não os pune, porque estão fora dela, senão com a excomunhão geral que a cada ano é lançada por Roma. "Vem, enfim, um inciso sobre o ateísmo, que, a partir do século XVII começava a colocar o nariz para fora: "Têm-se visto ainda infelizes reduzidos a não crer em nada do outro mundo, e que se chamam ateus. Esses atribuem tudo ao capricho da natureza e não vêm nada acima dessa. Afirmam que a alma morre com o corpo, como a dos selvagens, e que Deus é uma suposição imaginária e fantasiosa. Que, enfim, não existe paraíso ou inferno, nem esperança de outra vida. Tal foi a crença do detestável Lucílio que morreu em meio às chamas [...]".

Este texto fala por si, e coloca em evidência muitas coisas: A definição de que a primeira de todas as heresias é a colocação em prática da liberdade de consciência; *A imposição da "normatização" em todos os domínios da vida individual é reclamada sob pena de morte; *O valor do indivíduo é negado em proveito do grupo, e melhor se for católico romano; *Aos pagãos (paganus = habitante do pagus, da campanha), ou seja, as populações rurais, é intimado submeter-se à normatização urbana. *Aqueles que não se enquadram nos códigos estabelecidos são fisicamente suprimidos, e os que se encontram fora do alcance de uma justiça secular complacente e dominada são marginalizados e rejeitados preventivamente da "família" religiosa considerada.

Esses se tornam "foras da lei" sem ao menos saber, e são ipso facto condenáveis não apenas colocando pé em uma região dependente secularmente do direito canônico. Este texto, a base de muitos racismos ainda vigorantes em nossos dias, era válido na época que estudamos. Isso certamente é esclarecedor sobre as posições do Vaticano nas posições da Maçonaria progressista, e ainda sobre os anátemas lançados aos Carbonários e acompanhados de severas repressões da polícia.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>Foi a Carbonária uma maçonaria em sentido estrito?
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