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MEMÓRIAS DO LAGARTO CABOVERDIANO
Maria Estela Guedes
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Serpa Pinto, homem de pouca ortografia...
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Eu, um atlante, um descendente de Lug? Já não queria tanto, faz-me corar ascendência tão luminosa. Queria era que um homem da estatura intelectual de Bocage tivesse perguntado sem receio: como é que eu apareci em duas ilhotas de origem vulcânica, cujas flora e fauna terrestres foram totalmente importadas, quer por acção voluntária e involuntária do homem, quer em resultado de acidentes naturais vários? Espécies incapazes de voar, ou de transpor a nado barreiras marítimas de grande extensão, têm remotíssima probabilidade de alcançar ilhas oceânicas. No entanto, não só estão lá, como estão em grande número. Então desde quando habitava eu os ilhéus, quem foram os meus antepassados, por que razão desapareceram da sua pátria originária, e como colonizaram Cabo Verde? Sou um lagarto, não dou a resposta. Mas a ciência existe para isso: para sonhar, ousar responder aos grandes mistérios, mesmo e sobretudo com a beleza das respostas mais fabulosas. Afinal, ela não é mais do que um depósito de mercadorias com prazo de validade limitado, para não invocar a refutável tese de que só é científica a tese refutável.

E cumpre louvar aqui esse homem de pouca zoologia, e também pouca ortografia, como convém a um escritor, no caso autor de Como Eu Atravessei a África, único porém a responder a outra pergunta: como é que um animal de facto herbívoro podia sobreviver em dois ilhéus a bem dizer desprovidos de vegetação? Refiro-me a Serpa Pinto, claro. Aqui entre nós, vejamos: nunca passei fome, sou gordinho e até gigante. Fartei-me de comer gafanhotos e outros insectos, ovos da Oceanodroma castro e outras aves, os meus próprios ovos, os meus próprios filhotes, sei lá!... Tudo o que vinha à rede era comestível. Só não comia parras nem maçãs. E sempre vos digo que nos ilhéus Branco e Raso há outros Scincidae, caso da minha prima Mabuya stangeri. E outro sáurio gigante, que já não pertence à minha família, a querida osga Tarentola gigas. Também nunca passaram fome, e também eles arribaram misteriosamente aos ilhéus. Nas crises, já se sabe que aguento jejuns e abstinências de mais de quarenta dias, como Hopffer teve a bondade de assinalar.

Mais importante, então, do que saber onde havia sido capturado o exemplar de Paris, era inquirir a origem, geográfica e genealógica, da população cabo-verdiana. Mesmo admitindo que eu fosse arborícola e vegetariano por em tempos remotos os ilhéus se revestirem de farta vegetação arbórea e arbustiva, ainda resta saber como fui lá parar, e de que antepassados poderei ser relíquia. As ilhas vulcânicas nascem desertas. Os ilhéus foram para a minha linhagem uma segunda pátria, refúgio de exilado, onde só por milagre sobrevivi, perseguido pelos pescadores, pelos deportados, pelols naturalistas insaciáveis, e finalmente por cães à evidência mais esfomeados do que eu.

Eles são omnívoros, diz ingenuamente Serpa Pinto. Ao lê-lo, espero 'que Bocage tenha sentido um arrepio. Sabia que eu era herbívoro e melhor sabia ainda que na minha pátria quase não há vegetação. A política da prudência levou-o a iludir o paradoxo com um punhado de líquenes no caso do Branco, e com o silêncio no do ilhéu Raso. Fosse Darwin a encontrar-me, quando em 1832 passou um mês em Santiago, no início da viagem do Beagle, e eu talvez houvesse sobrevivido como paradigma de uma linda tese. Entre ambos havia uma grande diferença, da mesma natureza da que o separa do primo, um pré-romântico, por conseguinte um indivíduo avançado para a época: Bocage foi naturalista de gabinete, um homem da velha escola inventariadora, avessa a teorizações; há quem aluda até aos seus punhos de renda, já não me recordo se para o classificar como zoólogo se como perito em política africana. Em resumo, como diria G. F. Sacarrão, em conversa com a minha cronista (a quem, aliás, censurou a excessiva dureza com BB, mas eu, como estrela nesta galáxia, acho que merecia um pouco mais de atenção por parte do eminente herpetologista), na opinião do Prof. Sacarrão, repito, Bocage era um conservador, cioso dos seus privilégios de par do reino e da sua reputação junto do clero e da família real. O marquês du Bocage, que conste, nunca calçou botas sequer para apanhar sardaniscas no jardim da sua Vila Roma, em Sintra (e que nome mais punhos de renda para uma casa do que esse, apelido de Teresa, sua esposa, tradicionalmente conhecido como anagrama de Amor?). Pelo contrário, Darwin arregaçou as mangas, enfiou-se na lama e no mato, colheu material no terreno, de olhos bem abertos para o ambiente em que viviam os animais. Além de ser, como o poeta, um homem avançado para o seu tempo, pertence à estirpe dos naturalistas-exploradores, como Anchieta, Humboldt ou Peters, aqueles que estavam habituados a correr riscos e a salvar-se no último instante, quantas vezes à custa da imaginação. BB, que sempre viveu numa estufa (era doente dos pulmões), não tinha o carácter audacioso e inspirado do poeta. Basta ler os apontamentos da viagem que em 1859 fez à Europa para verificar que lhe faltava imaginação. Reduzem-se a uma lista de horas de chegada e partida, e classificação da qualidade dos hotéis, do clima, pessoas e museus, em suma, pequeno rol de caracteres discriminantes da morfologia externa do real.

A Bocage, faltou-lhe um golpe de asa. Um pouco mais de azul me faltou por isso a mim, para ser além.