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MEMÓRIAS DO LAGARTO CABOVERDIANO
Maria Estela Guedes
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Tenho cauda preênsil...
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Tenho cauda preênsil, sou um animal arborícola. Nada de anormal para Peracca, pois, mais adiante, declara a sua ignorância quanto às condições físicas e climatéricas do ilhéu Branco. Em suma, ignora o que BB sabe: que nele não há árvores. Cet ilot, assez élevé au-dessus du niveau de Ia mer, produit abondammenl de l'orseille - escreve BB, encantado; o facto de existir urzela no ilhéu já me impedia de morrer à fome. Quanto ao Raso, a situação será mais embaraçosa:

M. de Cessac m'avait indiqué, dans le temps, un autre ilot voisin de celui-ci l'Ilheo Raso, comme lieu d'habitation du gros Saurien inconnu, qui nous a tant couté à retrouver; mais j'avais tout lieu de croire inexacte l'indication d'un tel habitat, car cet ilot, ne présentant qu'une masse de rochers stériles, se trouve dans les conditions les plus défavorables pour servir d'abri à une grosse espéce, qui paraît vivre exclusivement de végétaux.

Veremos que BB, apesar de em 1874 já dispor de espécimes do Raso, levará vinte e tal anos a convencer-se da minha existência nesse ilhéu, e que durante esse tempo evitou fazer-se a si mesmo perguntas indiscretas a meu respeito.

Regressando a Peracca, reparemos ainda que diz ter examinado quarenta exemplares, número verdadeiramente assustador, atendendo à tão limitada área de distribuição de uma espécie ainda por cima gigante da família. Noutro artigo, declarava: Ora il 6 giugno corrente avendo ricevuto dalle isole dei Capo Verde una quindicina di Macroscincus coclei vivi... Convenhamos em que é mais do que uma ninhada, e BB teve razões para suspeitar da minha extinção iminente.

Peracca refere a fragilidade da minha causa, raros espécimes a tinham inteira. Supondo que a minha terra fosse arborizada, com o meu tamanho e peso, e a cauda assim tão frágil, por que raio andaria eu a trepar às árvores? Por outras palavras: um animal arborícola não devia ser mais ágil, mais leve, e ter uma sólida cauda? Ou então: terei eu engordado, ficando assim com os movimentos lerdos, e a minha cauda fragilizou-se a ponto de parecer que queria cair de vez? Julgo que sim, que tive de me adaptar. Os meus remotos antepassados deviam ser bem mais pequenos, elegantes e despachados do que eu.

A verdade é que os hábitos de outros Scindidae até costumam ser fossadores, quando há terra solta e não lava solidificada no chão, como nos meus ilhéus. Todo o meu corpo, alongado, cilíndrico, a boca protegida, os membros atrofiados, a cauda tendendo a aproximar-se da cabeça, aponta para esse lado. Até o castanho-amarelado da pele dá ideia de um animal com costumes subarenícolas, mimetizado com a areia, para não levantar suspeitas às presas, o que, a ser verdadeiro, faria de mim um carnívoro. Acontece, porém, que na minha pátria - dois calhaus de origem vulcânica, áridos, desabitados, de vegetação paupérrima, progressivamente rarificada, semeados em pleno Atlântico, com apenas três e sete quilómetros quadrados de superfície, de litoral escarpado, inacessível à acostagem de botes em quase toda a extensão -, na minha pátria, há quase tanto areal como floresta. O Branco tem esse nome por a rocha ser clara, e o Raso por ser uma pedra rasa. Raramente lá vai alguém.

Ainda a propósito da cauda, cito um parágrafo que Margarida Pinheiro dedica a uns familiares meus, em artigo da Garcia de Orta (13, 1986), «Mabuya delalandii (Dum. & Bibr.) e Mabuya vaillanti Blgr. (Sauria, Scincidae) do arquipélago de Cabo Verde»:

Um aspecto interessante dos exemplares estudados é o de, virtualmente, todos os adultos possuírem a cauda regenerada ou em regeneração. A proporção de indivíduos com cauda regenerada é por vezes apontada como um indicador da pressão de predação. Pode, no entanto, existir também uma componente etológica. Nos lacertídeos, de um modo geral, o macho, imediatamente antes da cópula, procura imobilizar a fêmea, prendendo-a entre os maxilares. É variável, com o género, o local onde o macho fixa os maxilares; no entanto, é admissível que, se o macho tenta imobilizar a fêmea prendendo-a pela cauda, daí resulta a sua autotomia. Comportamentos agonísticos ou tentativas de cópula entre machos podem ter o mesmo efeito.

Apesar disto, e da permanente agonia que vivi em Cabo Verde, o meu rabo ainda hoje me causa algumas ralações. Os meus principais predadores foram os homens, em especial os de ciência. Há algumas aves de grande e médio porte nos ilhéus - a águia-pesqueira, em extinção, o abutre-do--egipto, a coruja-das-torres, procelárias, etc. -, mas nenhuma me ataca, sou muito pesado e elas preferem alimentar-se de peixe ou detritos. Outras, de insectos, como o Cursorius cursor. Mamíferos, só a baleia. E quirópteros, claro. Tirando os domésticos, e um ou outro rato, não há, a bem dizer, mais mamíferos no arquipélago. Não é por causa dos predadores animais que largo assim o rabo de qualquer maneira, antes isso que perder a cabeça. Nem pensar. Sem pretender armar em importante, denunciando a pressa de só observarem umas e não outras aparências, pois nem a cauda é assim tão impressionante nem nela se aloja o embrião da alma, cumpre dizer entretanto que, no meu reptiliano entendimento, só o seu estudo e o do complexo dentário permitiria a alguém passar-me um cartão de identidade. Ora, no museu de Paris, o meu esqueleto havia sido entregue na secção de anatomia e dividido justamente em posta e cauda: Geoffroy Saint-Hilaire filho, não sei que fez do rabo, a única pessoa a referi-lo é Hopffer, como se verá adiante (1). Agora Cuvier, no livro Ossements Fassiles, deu-me ao crânio tais voltas que de repente me vi gago: se no todo externo, segundo Duméril e Bibron, era a nova espécie Euprepes coctei, na parcela craniana, Cuvier identificou-me com a já conhecida Lacerta scincoides de Shaw. Chamassem-me simplesmente lagarto, como na minha terra, e eu não tinha sofrido tantos tratos de polé.


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NOTAS
(1) Veja o manuscrito em http://triplov.com/cabo_verde/hopffer/
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