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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Açores e Madeira vistos por Marcelo Caetano em 1938
CARLOS ENES

 

Sumário

Summary

Introdução

Visão de Marcelo Caetano

Bibliografia

ANEXOS

Documento 1:
CARTA DE MARCELLO CAETANO AO MINISTRO DO INTERIOR

Documento 2

I - Distrito de Ponta Delgada

II - Distrito de Angra do Heroísmo

III - Distrito da Horta

IV - Distrito do Funchal

V - Considerações finais

Nota dos trabalhos realizados pela Junta Geral do distrito de Ponta Delgada...

Ex.mo Sr. Ministro do Interior

Em complemento dos projectos de decreto que apresentei já a V. Ex.ª, julgo do meu dever reunir algumas notas colhidas na visita que fiz aos distritos insulares e que possam elucidar o Governo sôbre os problemas que lhes dizem respeito.

I - Distrito de Ponta Delgada

 

Regime administrativo – Foi deste distrito que partiu o movimento de opinião tendente à obtenção da autonomia das Juntas Gerais nas ilhas. E, de facto, publicado em 24 de Março de 1895 o decreto orgânico da autonomia, logo em 18 de Novembro seguinte o regime foi aplicado a Ponta Delgada, a pedido de dois terços dos cidadãos elegíveis do distrito.

Economia distrital – O distrito compõe-se apenas de duas ilhas: a de S. Miguel, que é a maior do arquipélago, e a da Santa Maria, pequena e pobre.

A ilha de S. Miguel tem uma economia que pode dizer-se próspera apesar de se ressentir muito da deminuição das remessas dos emigrantes, caudal de ouro que a vivificava. Predomina a grande propriedade, pois a terra está reunida nas mãos de poucos senhores, mas cultivada intensivamente, em regime de pequena exploração. Nas serras existem consideráveis extensões de pastagem, etc. partes baldias, onde se cria o gado. Algumas culturas ricas, como o ananás. Indústrias diversas: lacticínios, chá, fiação e tecelagem, bordados, alcool, tabaco ... Os salários são, no entanto, baixíssimos; empregam-se freqüentemente nas fábricas mulheres e menores; a aprendizagem não tem regra, é por vezes gratuita e sem prazo fixo. Há miséria nalgumas partes da ilha, cuja população aumenta ràpidamente (cêrca de 140:000 habitantes), sem que o excedente possa escoar-se pela emigração.

Situação financeira – A situação financeira da Junta Geral é boa, e boa é também a dos municípios.

Em 1937 as receitas da Junta Geral somaram 8:724:308$04 e as despesas 8:289:602$54, resultando um saldo de 434.705$50, mas êste saldo ficou parcialmente cativo de algumas dívidas passivas, cuja soma é pequena.

As principais receitas são as dos impostos directos gerais, de que se cobraram 7:000 contos, números redondos, sendo a maior parcela a da contribuição predial: 4:133 contos. As matrizes, porém, são as mais altas do País, e por isso os rendimentos colectáveis tendem a baixar.

A Junta Geral não lança adicionais.

A dívida é insignificante: o encargo dos juros e amortização não excede 205 contos, ou sejam 2,3 por cento da despesa total, devendo notar-se que uma parte é recuperada pela Junta, pois se trata de um empréstimo feito na Caixa Geral de Depósitos para socorrer os sinistrados do terramoto dos concelhos de Nordeste e da Povoação. Os socorridos pagam à Junta uma taxa de 2 por cento, que em 1937 rendeu à volta de 48 contos.

A despesa está equilibrada: gasta o distrito com o serviço das obras públicas 36 por cento do total, com o ensino primário 18 por cento, com assistência 7,5 por cento, com o liceu 7 por cento e com a polícia 5 por cento. Todos os outros serviços consomem percentagens muito pequenas.

Agricultura e pecuária – Estes serviços estão montados com excesso de pessoal. Compreendem serviços agronómicos, silvícolas, pecuários e zootécnicos.

Os serviços agronómicos transitaram do Estado e têm exercido no distrito acção profícua. Com êles despende o distrito 123 contos, dos quais 109 em pessoal.

Os serviços silvícolas foram criados pela Junta há uma dezena de anos. É na verdade indispensável proteger a flora lenhosa do distrito e repovoar matas decadentes, tanto mais que a indústria local faz grande consumo de madeiras para a embalagem do ananás. Mas a Junta limitou-se a nomear um engenheiro silvicultor, que nada mais fez que uns estudos iniciais. Já por mais de uma vez a Junta solicitou ao Governo a aplicação do regime florestal às matas da ilha, sem que tivesse sido atendida, e o silvicultor limita-se a tratar da plantação e poda das árvores das estradas!

Parece conveniente que se dê às Juntas Gerais a faculdade de submeter as matas ao regime florestal parcial e de simples polícia, pois estão em condições óptimas para avaliar da sua necessidade. Quanto aos serviços florestais, deve começar-se por uma simples regência, e as Juntas que chamem silvicultores competentes e experimentados para os estudos que haja a fazer, como de resto o ano passado se fez para o povoamento de lagoas. Actualmente a Junta despende 45 contos com os pseudo serviços silvícolas, dos quais 30 contos para pessoal.

Os serviços pecuários constituem a Intendência de Pecuária, que transitou do Estado: custaram 46 contos, dos quais 40 para pessoal.

Mas além da Intendência de Pecuária herdou a Junta uma estação zootécnica que transitou do Estado, com outro veterinário por director. A estação está bem instalada e parece trabalhar, mas não se justificam no distrito dois veterinários a dirigir serviços conexos. Tudo indica a integração dos serviços zootécnicos na Intendência Pecuária. A despesa com estes serviços é de 85 contos, dos quais 33 com pessoal.

Obras públicas – Existe uma Direcção de Obras Públicas, em que estão integrados os serviços da circunscrição industrial. À testa da Direcção encontra-se um engenheiro de grande valor, Francisco Pacheco de Castro, a quem se deve a actividade e o brilho que êste sector da administração revela em Ponta Delgada: boas estradas, obras hidráulicas notáveis (como a da fixação do nivel da Lagoa das Sete Cidades pela construção de um canal de escoamento das águas até ao mar), obras de arte difíceis (túneis e pontes magníficas), edifícios, etc.

Em 1937 a Junta gastou neste serviço 3:132.197$50, mais de um têrço da despesa total, sendo apenas 574 contos em pessoal.

Construções e obras novas: de estradas, 634.093$11; de edifícios, 114.642$58; portos de mar, farolins e muralhas, 13.762$; túnel de esgôto na Lagoa das Sete Cidades, 192.261$86.

Conservação e reparação de estradas, 1:392 contos; de edifícios 50 contos; portos de mar e farolins, 31 contos; ribeiras e lagoas, 16 contos, fora outras pequenas verbas.

Do Estado recebeu a Junta em comparticipações a importância de 182 contos, ou seja pouco mais de 5 por cento do despendido em obras públicas.

Há aqui a resolver dois problemas:

1. o Os portos de pesca não estão a cargo da Junta Geral e as receitas por êles produzidas são arrecadadas pelo Estado; todavia é a Junta que, para os não deixar arruinar, tem cuidado da sua construção e conservação, mas devem passar para a jurisdição da Junta Autónoma dos portos de Ponta Delgada, como sucede nos outros distritos insulares;

2. o Começa a desenvolver-se o turismo para as Furnas e Sete Cidades, embora as actuais estradas sejam impróprias para a circulação de caravanas automóveis, tal é a quantidade de pó que se levanta e que nada deixa ver, tornando a viagem um verdadeiro suplício; é urgente calcetá-las, como na Madeira, mas essa enorme despesa não pode o distrito fazê-la sem especial comparticipação do Estado.

Serviços de viação – Tem sede em Ponta Delgada a Circunscrição Açôres dos serviços de viação. É um erro criar serviços para todo o arquipélago pensando que assim se descentraliza: a dificuldade de comunicações entre a Horta e Ponta Delgada é tam grande ou pouco menor do que entre a Horta e Lisboa. Por outro lado, o automobilismo está pouco desenvolvido nos Açores, nem as ilhas se prestam muito a grande incremento dêsse meio de transporte; nalgumas, como as Flores e o Corvo, não há automóveis, noutras há dois ou três. O chefe dos serviços de viação nos Açôres é um oficial da reserva de engenharia director das obras militares, que a Junta Geral de Ponta Delgada contratou por 500$ mensais. Não me parece que haja vantagem em tal organização. Deve descentralizar-se a competência dêstes serviços nas Juntas Gerais e concentrar apenas a parte técnica (exame de condutores e concessão de cartas). Para o resto chegam os engenheiros ou condutores dos serviços industriais dos diversos distritos, que são diplomados em electricidade ou em máquinas.

Saúde pública – Estes serviços estão montados por forma dispendiosa e sem a eficácia correspondente. A Junta Geral herdou-os do Estado assim. Distinguem-se os serviços de sanidade marítima dos de sanidade terrestre, cada um com seu inspector. O pôrto de Ponta Delgada é estação de saúde de 1. a classe e como tal tem de possuir escrivão-intérprete, remadores, guardas de saúde, pôsto de desinfecção e hospital de isolamento. Tudo isto possue; mas o que não há é navegação que justifique as luxuosas instalações e o abundante pessoal com que o regulamento de saúde de 1901 dotou o distrito. Em 1937 entraram no pôrto de Ponta Delgada 337 navios, dos quais 103 de carga, 113 de passageiros, 44 de guerra, 71 de cabotagem e 6 de recreio. Contam -se aqui as duas entradas (à ida e à volta) dos navios que fazem a carreira das ilhas. De facto, a visita de saúde não é requerida mais de oito ou dez vezes o máximo por mês.

O estado sanitário do distrito é bom. Há mais de uma dezena de anos que se não produzem casos de peste bubónica, não tem havido epidemias e a varíola, por exemplo, não é endémica, produzindo-se casos de vez em quando. O hospital de isolamento está pois quási sempre desocupado e o pôsto de desinfecção inactivo.

Quando estive em Ponta Delgada o inspector de sanidade terrestre acumulava sem esforço a sanidade marítima, vaga pela aposentação do respectivo funcionário. Por isso proponho uma organização mais simples e económica para estes serviços.

Quanto a hospitais gerais, há-os em todos os concelhos, sustentados pelas Misericórdias, embora vivendo com dificuldades. A Junta Geral gasta, em subsídios que lhes dá, 110 contos anuais.

Assistência – O melhor estabelecimento é a Casa de Saúde do Egipto, para loucos do sexo masculino, montado pelos irmãos de S. João de Deus e onde são internados os alienados pobres, cuja diária – hoje 9$ – é paga pela Junta Geral. Está instalada em bons edifícios construídos pelos irmãos e o tratamento é excelente. A Junta adquiriu agora uma casa para instalar o manicómio das mulheres, que actualmente estão internadas, em condições deficientes, no Hospital da Misericórdia de Ponta Delgada. A Junta subsidia ainda as famílias pobres a cujo cargo estejam loucos inofensivos. Gasto: com diárias pagas ao Egipto, 157 contos; diárias à Misericórdia. 81 contos; subsídios a alienados a cargo das famílias, 47 contos; total na assistência a alienados, 285 contos.

A assistência em Ponta Delgada não me pareceu adiantada. A Junta Geral, em obediência ao artigo 10. o, n. o 4. o, do decreto n. o 15:035, distribue subsídios individuais periódicos a menores expostos, desvalidos ou abandonados com mais de dez e menos de dezóito anos, tendo gasto em 1937 mais de 47 contos; esta esmola parece-me inconveniente e seria preferível gastar essa quantia em subsidiar uma obra de assistência e educação de menores. Visitei um único asilo, fundado por iniciativa particular, na Ribeira Grande; pretende ser uma escola prática agrícola, mas afigurou-se-me mal organizado e pior dirigido, embora entregue a um sacerdote digno e inteligente.

Algumas senhoras dedicam-se a uma obra interessante de assistência infantil, que bem merece acarinhada e desenvolvida.

Polícia – A polícia nas ilhas adjacentes tem ainda, a antiga organização: um comando distrital, com atribuições de administração do concelho, uma secretaria e um corpo de guardas, acumulando as funções de polícia de segurança pública, polícia administrativa, polícia de investigação criminal, polícia de viação, polícia de vigilância e defesa social, polícia internacional, tudo subordinado ao governador civil.

A polícia de Ponta. Delgada, entregue há anos a um oficial inteligente, estudioso e trabalhador, é, na complexidade das suas funções, modelar. Dispõe de excelentes ficheiros, bom material de identificação e investigação, está bem armada, com pistolas, espingardas e armas automáticas, bem adestrada e com pessoal novo e forte, parte do qual possuidor de transportes mecânicos próprios.

Há vantagem todavia em, numa futura organização, dispor que parte, pelo menos, dos guardas sejam de fora dos distritos onde servem, pois a familiaridade com que todos são tratados pela população não pode deixar de tolher-lhes a autoridade.

O efectivo da polícia é insuficientíssimo, pois não chega para mais de três ou quatro postos de guarda na cidade, em regime de serviço intensivo.

Ora em toda a parte rural da ilha me falaram na necessidade de guardas destacados para os municípios, dada a deficiência da polícia feita pelos zeladores.

A Junta Geral tem gasto bastante na instalação e apetrechamento da polícia, que em 1937 lhe custou 400 contos (pessoal incluído). Mas ser-lhe-á difícil suportar um aumento de despesa, quando tanto carece do dinheiro para outros fins produtivos.

Instrução – Tem o distrito um liceu nacional, instalado num velho palácio com vasta cêrca. É exteriormente um bom edifício, mas por dentro oferece toda a espécie de defeitos pedagógicos: salas pequenas e recebendo má luz, corredores numerosos e estreitos, laboratórios deficientes, o gimnásio no antigo celeiro térreo, péssimo material didáctico, etc. Carece absolutamente de obras radicais de adaptação.

A escola de magistério primário estava encerrada. Visitei as escolas primárias anexas e uma escola infantil, que me pareceu verdadeiramente modelar.

O distrito tem grande percentagem de analfabetos e dispõe de 183 lugares em escolas primárias e dois postos escolares, tendo sid o recentemente criados mais dezóito. Todavia torna-se difícil à Junta fazer o esfôrço necessário para dar ensino a todos os que dêle carecem; apenas o estão recebendo 40 por cento das crianças em idade escolar!

A Escola Industrial Velho Cabral é um valor nulo. Carece de urgente reforma, feita com senso realista: talvez conversão em escola prática de agricultura, com ensino anexo de artes e ofícios; porque neste distrito, que vive sobretudo da agricultura, não há ensino elementar agrícola!

As câmaras dispensam atenção à instrução, tendo-se ultimamente construído alguns edifícios escolares com comparticipação da Junta Geral.

Biblioteca Pública e Museu Carlos Machado – A Biblioteca de Ponta Delgada pertence ao Estado e está sob a orientação técnica e na dependência administrativa e disciplinar da Inspecção Geral das Bibliotecas e Arquivos, de modo que a Junta Geral só paga as despesas.

A referida Inspecção nada orienta nem inspecciona: a organização e catalogação da biblioteca são caóticas e a disciplina deixa a desejar. A Junta Geral olha resignada para esta desordem visível ... paga. Cremos que tal estado de cousas não deve continuar.

O Museu Carlos Machado, com secções de arte e de história natural, é um bom núcleo que oferece já muito interêsse, tendo merecido liberalidades do Príncipe de Mónaco e de vários naturalistas locais. Parece-me digna de estímulo esta criação.

Laboratório Químico-Bacteriológico – Instalado em edifício próprio, reúne duas secções, onde se trabalha com aparente actividade.

Turismo – A ilha de S. Miguel é toda ela digna de interêsse, mas possue dois lugares privilegiados para o turismo: a Lagoa das Sete Cidades e as Furnas, que são visitadas já por muitos nacionais e numerosos estrangeiros, sobretudo os que vão em trânsito nos navios italianos que fazem escala, para ou da América do Norte, em Ponta Delgada. Em 1937 registaram-se 11:504 turistas estrangeiros. Há uma emprêsa de turismo micaelense – a Terra Nostra – que tem um confortável hotel em Ponta Delgada e outro, que é excelente, nas Furnas.

Não me parece que haja vantagem em criar um organismo oficial especial para o turismo mas acho conveniente que sejam concentradas na Junta Geral as atribuições sôbre turismo que o Código Administrativo confere às câmaras, facultando-se-lhe também as receitas das zonas turísticas; será a forma de se poder exigir à Junta, sem prejuízo da sua obra normal, a comparticipação condigna com o Estado no calcetamento das estradas de turismo, que é trabalho urgentíssimo.

Conclusões – A impressão que me deixou o exame minucioso que fiz da administração distrital em Ponta Delgada levou-me às seguintes conclusões:

1. o A autonomia, administrativa e financeira é necessária e útil nos distritos insulares;

2. o O distrito de Ponta Delgada tem sabido usar e aproveitar essa autonomia (veja-se o mapa I, com as obras públicas realizadas neste regime);

3. o Há um escol administrativo na ilha de S. Miguel capaz de exercer o govêrno local;

4. o A situação financeira da Junta Geral é boa; esta não carece de mais receitas e sabe empregar as que tem;

5. o Para as obras de grande envergadura, porém, a Junta Geral precisa da comparticipação do Estado, sobretudo para a construção e adaptação de edifícios escolares e calcetamento das estradas de turismo.