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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Açores e Madeira vistos por Marcelo Caetano em 1938
CARLOS ENES

 

Sumário

Summary

Introdução

Visão de Marcelo Caetano

Bibliografia

ANEXOS

Documento 1:
CARTA DE MARCELLO CAETANO AO MINISTRO DO INTERIOR

Documento 2

I - Distrito de Ponta Delgada

II - Distrito de Angra do Heroísmo

III - Distrito da Horta

IV - Distrito do Funchal

V - Considerações finais

Nota dos trabalhos realizados pela Junta Geral do distrito de Ponta Delgada...

III - Distrito da Horta

 

Regime administrativo – Este distrito não pediu a aplicação do regime de autonomia e por isso esteve até aqui na situação dos distritos continentais. A sua Junta Geral foi, até há anos, um corpo apagado, mas veio a caber-lhe uma parte na percentagem para o Estado do rendimento dos cabos submarinos que amarram na Horta (à volta de 100 contos anuais), e, como por lapso tivesse deixado de o receber durante alguns anos, foi-lhe entregue pela Câmara, que indevidamente a cobrara, em três ou quatro prestações anuais. Nos últimos anos, pois, tem a Junta Geral disposto de um milhar de contos, gasto em hospitalização de alienados na Casa de S. Rafael de Angra, subsídios às câmaras para partidos médicos, subsídios a estabelecimentos particulares de assistência, auxílio ao liceu, bôlsas a estudantes pobres, campo agrícola experimental, viveiro florestal, distribuição de plantas e sementes, cobridores e subsídios para viação municipal. A maior parte destas despesas excedia as suas atribuições.

A Junta, até há um ano, não tinha funcionalismo. O secretário e o tesoureiro faziam o serviço gratuitamente ou mediante insignificantes gratificações. Agora, dado o desenvolvimento que o expediente tomou, deliberou contratar um oficial de secretaria, antigo e activo membro de uma comissão executiva, e um contínuo. A sua contabilidade era rudimentar, os serviços pode dizer-se que vão ser montados de novo.

Situação económica – O distrito é constituído por quatro ilhas, formando dois grupos bem distintos: Pico e Faial, Flores e Corvo.

O Pico e o Faial são territórios complementares. Separadas por um canal que se atravessa, com bom tempo e de «gasolina», em três quartos de hora, mantêm relações íntimas , havendo carreiras consecutivas de barcos.

A ilha do Pico é laboriosa e rica, a sua gente, faz lembrar na tenacidade e na iniciativa a de S. Miguel. Cultiva a terra, colhe vinho, produz lacticínios e pesca a baleia – principal riqueza local. São os habitantes do Pico os consumidores do Faial: vêm de manhã à Horta fazer as suas transacções e à uma hora da tarde o comércio da cidade morre, porque a gente do Pico voltou para a sua ilha.

De resto a economia do Faial é dominada pelo Pico: a própria terra está nas mãos dos picoenses.

O Faial é uma pequena ilha. A agricultura e a indústria que possue são pouco ao pé do comércio: vive sobretudo das comunicações – cabos submarinos, estações radiotelegráficas, escala de navios e de aviões com o correspondente fornecimento de víveres e comb us tível –, que fornecem considerável contingente estrangeiro para a população, e do comércio com o Pico e as ilhas de oeste, além, já se vê, das remessas dos emigrantes.

Faial e Pico formam união fiscal: têm a mesma pauta de impostos indirectos e a circulação dos produtos entre elas é livre.

O terramoto da cidade da Horta em 1926 foi um factor de perturbação da economia local: não tanto pela destruïção de riquezas que causou, como pelo mau emprêgo dos socorros que afluíram e pela erradíssima orientação de quem superintendeu nas obras de reconstrução.

Arruinada em grande parte a cidade, não houve o elementar cuidado de levantar uma planta (que ainda hoje não existe) e de marcar as casas atingidas e o grau em que o tinham sido; não se procurou rectificar e melhorar o traçado das ruas, rasgar horizontes para uma cidade nova, corrigir vícios de orientação, fazer urbanismo, nada disso! A reconstrução ao Deus dará, e hoje, dez anos passados, a Horta continua a ser a cidade sinistrada, em parte o antigo restaurado, em parte as ruínas às escâncaras, e os bairros de madeira provisòriamente erguidos para abrigo das famílias persistem, transformados em quarteirões definitivos, onde falta higiene e segurança, e tudo. Há um problema de habitação operária quási aflitivo, mas na terra pensa-se, antes de mais nada, e a instâncias prementes da respectiva Administração Geral, em expropriar uma casa da praça principal para oferecer terreno onde se construa o Palácio do Correios: para tanto contribuem Junta Geral e Câmara. O tino administrativo dos portugueses é assim ...

Além disso houve, depois do terramoto, a especulação com os géneros alimentícios e os materiais de construção, o abuso dos créditos aos sinistrados, concedidos sem garantias e aproveitados sem fiscalização, e ficou, até hoje, o problema da recuperação pelo Estado do dinheiro que tam prodigamente se dissipou.

Assim, ao tremor de terra seguiu-se um abalo moral, que ainda se repercutiu em conhecidas crises da banca local.

O outro grupo do distrito é o constituído pelas ilhas das Flores e do Corvo, que constituem também uma só circunscrição fiscal para o efeito de lançamento e cobrança dos impostos indirectos municipais.

A ilha das Flores não chega a ter 4:000 habitantes que vivem da agricultura e dos lacticínios. Te m duas vilas sede de concelho, com comunicações fáceis apenas por mar; a estrada interior é um caminho de carro, que o mau tempo torna intransitável. Compreende-se por isso que na ilha não haja automóveis. É servida por uma visita mensal de algumas horas de um dos paquetes da Insulana.

A ilha do Corvo tema uma povoação única, sede do concelho, a Vila do Corvo, com 701 habitantes, que cultivam a terra, exportam queijo, manteiga, gado ... e gente. Também o navio só lá vai uma vez por mês, no bom tempo; de inverno a ilha não tem comunicações marítimas com o continente.

Muito se tem escrito sobre a vida primitiva do Corvo, a simplicidade e ingenuidade dos corvinos. A vila é uma aldeia como qualquer das nossas aldeias serranas, e a gente talvez seja um pouco mais polida e culta (efeito da emigração) que os lapuzes do continente. Quando lá estive reinava grande agitação devid o à substituição da comissão administrativa da Câmara, interessando-se no assunto todas as organizações cívicas possíveis, que a insensatez das gentes tem introduzido ali, desde a União Nacional ate à Legião Portuguesa, pois de tudo lá existe para escarmento do povo. E na ilha do Corvo, divididos os corvinos em dois partidos, uns aos outros se lançavam o apôdo de bolchevistas etc.

Num meio assim, pequeno, rude, fechado, sem escol, tudo indica uma concentração máxima de serviços e autoridade, até porque, a multiplicá-los num arremêdo dos concelhos a sério, acaba o funcionalismo por absorver a receita local toda e excedê-la ainda. Não vou até ao extremo de propor uma única repartição em que se reunisse tudo, fisco, tribunal, registo civil, delegação marítima, etc., tendo à testa uma espécie de «capitão de navio ancorado no oceano», como os americanos adoptam para os seus ilhéus povoados da costa: a ousadia da innovação decerto levantaria hesitações. Mas que o regime administrativo seja o mais simples e concentrado possível.

Organização da autonomia distrital – Como o distrito da Horta não era autónomo, o problema principal a resolver com a minha visita consistia em lhe aplicar o regime da lei n. o 1:967, doseando as atribuições da Junta Geral de harmonia com as suas possibilidades financeiras.

As receitas que vão passar para a Junta são, calculado o seu rendimento pelo de 1937:

Custo de alguns serviços que deveriam transitar para a Junta Geral, conforme a conta dos pagamentos efectuados em 1937 na Agência do Banco de Portugal na Horta:
.....................................................Contos

Há ainda a considerar o Liceu provincial Manuel de Arriaga, que custa 200 contos e tem de rendimento uns 70 contos.

Quanto aos serviços de obras públicas, não se pode pensar em transferi-los para a Junta, pois que só êles em 1937 importaram em 1:900 contos (incluídos 900 gastos por conta da Junta Autónoma de Estradas).

Ora o distrito esteve longo tempo abandonado; é preciso reconstruir quási todas as estradas, acabar outras, construir algumas, fazer portos, cais e paredões de defesa das povoações marítimas (a começar pela cidade da Horta, que o mar está a minar, a ponto de ter derrocado um bairro quási completo), emfim, uma vasta tarefa a dividir por quatro ilhas e a que nem se pode pensar em ocorrer com as receitas do distrito autónomo.

Já a propósito de Angra disse qual o meu modo de ver a respeito das despesas com polícia cívica. A polícia interessa à segurança geral; não é pois serviço que se deixe ao sabor das possibilidades locais. Aqui na Horta tem de se escolher: ou transferir para a Junta a polícia ou o liceu. Voto por que fique a polícia a cargo do Estado, como até aqui, e se descentralize o liceu provincial.

Teremos então a cargo da Junta, e pela nova organização proposta:

...............................................Contos

Para uma receita de 1:900 contos impõe-se à Junta a despesa de 1:847 contos; a diferença é para subsídios à assistência privada e desenvolvimento de serviços. Parece ser esta a melhor forma de resolver o problema.

A Escola Agrícola Móvel Matos Souto – Actualmente os serviços agrários d o distrito da Horta estão a cargo da Escola Agrícola Móvel Matos Souto, cuja história revela um dos mais espantosos bluffs da administração pública portuguesa.

Em 1 9 08 faleceu no Rio de Janeiro Manuel Matos de Sousa e Souto, que deixou testamento, de onde constava a seguinte deixa:

«De uma quinta parte, meu testamenteiro remeterá para a ilha do Pico para instituição, património ou manutenção de uma escola na freguesia do meu nascimento.»

De facto, veio a ser entregue o legado, na importância de 105 contos insulanos, ou 84 contos fortes, à Junta de Freguesia da Piedade, do concelho das Lajes do Pico, que, em sessão de 21 de Novembro de 1909, deliberou criar uma escola de agricultura denominada Matos Souto.

Adquiriu-se uma granja, construiu-se nela um vasto edifício, tudo em lugar ermo e sem comunicações, e passou depois a escola para o Ministério do Fomento, por não poder a Junta sustentá-la, tendo o decreto de 17 de Maio de 1913 organizado a Escola Profissional de Policultura e Viticultura Matos Souto, ao depois transformada em escola móvel agrícola.

Pois bem: até hoje nem um só aluno passou por esta escola, regularmente dotada e tomada a sério nos orçamentos do Estado. Há trinta anos que foi instituída, há vinte cinco que está instalada e regulamentada e nunca ninguém lá ensinou nem aprendeu. Sucessivos directores são nomeados, to m am posse, visitam a escola e voltam para a Horta a ocupar-se dos labores burocráticos dos serviços agronómicos distritais.

Creio que é tempo de acabar com isto. Proponho a transferência da escola para a Junta Geral; a autorizaçã o para alienação da quinta e casa do Pico, pois se encontram em local contra-indicado para o fim visado, e a sua transferência para o Faial, possível à luz da doutrina e da lei, visto estar verificada a impossibilidade da realização da vontade do fundador emquanto a escola permanecer na Piedade, do Pico.

Instrução pública – Como se viu, as despesas com instrução primária absorvem a maior parte das receitas que do Estado transitam para a Junta Geral. O distrito da Horta é, nas estatísticas, o que apresenta menor percentagem de analfabetos: os próprios corvinos sabem quási todos, senão todos, ler e escrever. A razão disto parece estar na emigração para a América, intensíssima destas ilhas, ainda mais que das outras.

Existem 130 escolas, com 145 lugares, frequëntadas por 4:998 alunos, numa população de cêrca de 50:000 habitantes. Mas a maior parte dessas escolas estão instaladas em casas alugadas; os edifícios escolares existentes estão mal conservados, exceptuando os da cidade, que foram construídos depois do terramoto, e por sinal custaram caríssimos, ao que me informaram; falta-lhes mobiliário e material didáctico, e as câmaras muito pobres quási todas, e com exce p ção da do conselho da Horta, não pagam as despesas de expediente e limpeza aos professores.

Por emquanto foi criado apenas um pôsto de ensino em Santa Cruz das Flores; é conveniente transformar bastantes lugares de professor em postos. E seria para desejar também que, aceitando a sugestão do director escolar do distrito, nas escolas de mais de 45 alunos houvesse, em vez de dois lugares, o professor e um regente adjunto, que assim poderia praticar antes de dirigir um pôsto de ensino isolado.

Conclusões:

1. o A autonomia do distrito da Horta deve ficar restrita ao fomento agrícola, florestal e pecuário, saúde, assistência e educação;

2. o Não convém impor à Junta Geral do novo distrito autónomo grandes encargos com pessoal burocrático, que até há pouco dispensou absolutamente.