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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

"O FALAR MICAELENSE"
José Bettencourt Gonçalves

Maria Clara Rolão Bernardo e Helena Mateus Montenegro
O Falar Micaelense: Fonética e Léxico
S.l., João Azevedo Editor, 2003

Este livro, uno na sua unidade física e na sua temática - o falar micaelense – é, no entanto, dúplice: na sua autoria, e na separação nítida entre os aspectos fonéticos e os aspectos lexicais desse mesmo falar. Apesar de as vertentes fonética e lexical apresentarem idêntico peso, de certo modo complementar, na variação linguística, quer a nível geogáfico, quer a nível sociológico, esses dois aspectos não devem, contudo, confundir-se. Nesta obra, a distinção clara entre estes dois pólos da variação merece ser realçada desde já, porquanto, frequentemente, nas monografias deste género, é frequente confundirem-se meros fenómenos fonéticos com aspectos lexicais. Os exemplos desta confusão abundam. Sem querer identificar autores, mas querendo tornar claro o conteúdo da minha afirmação ,cito dois exemplos, retirados de monografias sobre falares açorianos: Incinho por ancinho ou home em vez de homem, que configuram aspectos do âmbito da variação fonética, mas de modo algum correspondem a uma variação de âmbito lexical.

Seguindo a ordem da obra, comecemos pela parte da fonética. Antes de qualquer apreciação do seu conteúdo, merece destaque o trabalho imenso, mas de pouca visibilidade para o leitor leigo nestas matérias, da recolha dum corpus deste tipo, merecendo especial realce as seguintes etapas: estabelecimento do questionário a aplicar, estabelecimento duma rede vasta e equilibrada de pontos de inquérito, aplicação do inquérito, transcrição das respostas e tratamento dos dados. Só então começa a descrição rigorosa do sistema fonético do falar micaelense. Nesta parte do trabalho ressalta, por um lado, a vasta experiência e competência da autora neste campo de actividade científica, e por outro, a vantagem de ser falante nativa dessa variedade, o que se reflecte na acuidade com que arquitectou e desenvolveu o seu trabalho e, ao mesmo tempo, numa certa ternura que nele perpassa, quase sempre ausente deste tipo de estudos. Relativamente a trabalhos congéneres sobre os falares açorianos, este beneficia ainda dos progressos no âmbito das novas tecnologias: espectogramas feitos com programas de grande precisão que vêm esclarecer mesmo certas dúvidas que subsistem quando se faz uma avaliação meramente empírica, a «ouvido desarmado» e o CD-rom que acompanha o livro e que permite ao leitor especializado o acesso directo aos materiais e, assim a possibilidade de ele próprio fazer a verificação dos fenómenos descritos. Para o leitor leigo nestas matérias, a audição dos textos orais constitui um delicioso documento linguístico e etnográfico, uma evocação de um mundo misterioso e, em muitos aspectos, em vias de desaparecimento. A transcrição ortográfica dos textos vem dar um precioso auxílio a todos que menos familiarizados com a fonética do micaelense, poderiam ter algumas dificuldades na compreensão dos textos.

E, lendo os textos, neles vamos encontrar termos desconhecidos, denominações diferentes para actividades e objectos nossos conhecidos, o que constituem fonte de apetência e ponte para a segunda parte da obra: o léxico.

Também aqui, merece menção o espírito que preside à organização do trabalho: espírito de continuidade que se traduz no aproveitamento criterioso do que havia já sido feito na área; o esforço de actualização, pelo recurso a fontes, nomeadamente à entrevista a falantes nativos e recolha de discursos livres e conversas informais. Este último aspecto é de grande importância, porquanto permite captar as palavras integradas no seu contexto de uso, isto é, como unidades de um sistema de comunicação que se actualizam em determinadas contextos. Não poderá deixar-se de frisar também o esforço de estabelecimento da etimologia da palavra e o recurso à abonação e ao exemplo, fulcrais para o leitor não familiarizado com o falar micaelense poder captar a verdadeira dimensão de uso dos vocábulos.

É também significativa a diversidade de informação bibliográfica que o trabalho fornece, tanto na área da fonética, como na área da lexicologia dialectais, contributo importantíssimo para todos aqueles que se queiram iniciar nesta área de estudos linguísticos.

Em conclusão:

Esta obra, pelo seu rigor, pela sua actualidade e pelos recursos técnicos de que lançou mão, constitui um marco no estudo de um dos muitos falares açorianos e esperemos que constitua um incentivo para que idênticos trabalhos se façam para as outras ilhas. No que se reporta aos estudos sobre os falares das outras oito ilhas, o panorama dos estudos realizados é muito díspar, tanto no que respeita à quantidade como no que respeita à qualidade. Enquanto que, para o falar da Terceira, por exemplo, sejam conhecidos diversos trabalhos, para o falar da Graciosa nada existe. Tenha-se em conta que muitas das monografias existentes para alguns dos falares açorianos serem trabalhos académicos, teses de licenciatura, feitas numa época em que a experiência dos autores, assim como o seu espírito crítico ainda, muitas vezes, não serem muito desenvolvidos, e de os recursos técnicos de que se dispunha na época de elaboração de tais trabalhos serem muito incipientes. Tal não obsta que alguns deles sejam excelentes trabalhos, ainda hoje de referência.

Estudos do cariz do agora publicado por Maria Clara Rolão Bernardo e Helena Mateus Montenegro, feitos para as restantes ilhas, permitiriam, por um lado, estabelecer o que constitui a unidade do falar açoriano, e por outro lado, destacar as especificidades de cada ilha e até de determinada localidade.

 

José Bettencourt Gonçalves – Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL). Av. Prof. Gama Pinto, 2. 1649-003 Lisboa.