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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

José Guilherme Reis Leite
Anais da Família Dabney no Faial

Roxana Dabney
Anais da Família Dabney no Faial
(Tradução de João C. S. Duarte com assessoria de Ricardo Manuel Madruga da Costa)
Vol. I, s.l., Instituto Açoriano de Cultura, Núcleo Cultural da Horta, 2004

 

Há um ponto em que todos os que se têm debruçado sobre esta obra, desde que na última década ela foi trazida para a convivência cultural açoriana, estão de acordo. Trata-se de um precioso documento com interesses multifacetados e com informações e perspectivas que o tornam aliciante para os curiosos e os estudiosos da história do Atlântico no século XIX.

Tanto Francis Millet Rogers como João Afonso e, agora, Ricardo Madruga da Costa enalteceram esta faceta do livro de Roxana Dabney e enumeraram, de forma mais ou menos exaustiva, as áreas de estudo que ela abrange e além deles outros investigadores se têm servido dos Anais como fonte e inspiração, com êxito assinalável.

Bastaria isto para justificar a sua tradução e a sua publicação nos Açores.

Este primeiro volume, de uma série anunciada de três, abrange o período cronológico de 1806 (com antecedentes que mergulham no final do século XVIII) a 1845.

Mas no fundo o que são os Anais?

É matéria controversa que as opiniões críticas e científicas têm discutido com algum calor e assunto sobre o qual não há unanimidade.

Para mim, um dos grandes interesses destes Anais reside, precisamente, em eles serem uma compilação de memórias familiares para engrandecimento de um nome de clã e para satisfação de orgulhos familiares. Foram, sintomaticamente, escritos a pedido de parentes a um dos membros da família, num período em que se tinha consciência que a áurea passara e que a dispersão era irreversível. Tudo isto lhe dá um redobrado valor documental e um profundo sentido sociológico que devem ser realçados.

Os Dabney não foram únicos nos Açores, como família estrangeira, mas tornaram-se únicos por terem encontrado a sua historiadora e por terem preservado a sua identidade e cultivado o mito. São por isso exemplares como estrangeiros que escolheram os Açores para a concretização de uma estratégia de enriquecimento, mas que nunca se tornaram em açorianos e não se tornaram conscientemente. Isto é, viveram, amaram e trabalharam com açorianos mas sempre se distinguiram deles. Fizeram amizades, recusando sempre, contudo, ligações familiares e quando chegou a hora de abandonarem os Açores, porque eles já não serviam para as suas estratégias familiares, fizeram-no com armas e bagagens e deixaram atrás de si os ingredientes necessários para que se pudesse construir o mito. Basta, ainda hoje, prestar atenção à memória colectiva da Horta para perceber que os Dabney são vistos como os «príncipes» do Faial e que a Horta foi uma coisa com eles e outra sem eles. Os hortenses sentiram-se órfãos quando os Dabney os abandonaram e nunca conseguiram, ou sequer quiseram, empreender uma visão crítica e descomplexada do que foi a Horta, o Faial e os Açores para os Dabney, mas sempre laboraram na construção de um ideal de progresso, civilização e grandeza da sua ilha e da sua cidade por vontade e persistência dos Dabney.

Ora, as páginas deste volume publicado, são, porém, bem expressivas de que os Dabney, na Horta, foram, antes de mais, uma família de estrangeiros, devotada aos seus, aliás, legítimos interesses comerciais, aos desígnios da sua pátria, os Estados Unidos e à construção da sua imagem como elite e como farol exemplar de virtudes, hábitos sociais, elegâncias e tudo o mais que aos faialenses não restava senão admirar, respeitar e, quando muito, tentar copiar.

Esta faceta, que me parece nova na crítica interna a este precioso documento, ressalta em muitas das apreciações íntimas da correspondência que, evidentemente, foi produzida para o recato familiar e não para o grande público e por isso mesmo se torna um testemunho precioso das mentalidades e da compreensão dos mecanismos sociais do século XIX.

Note-se mesmo que o livro é por exemplo decepcionante para aqueles cultores da história local que julgariam encontrar nas suas páginas informações e opiniões políticas ou culturais sobre uma época tão agitada e tão motivadora de alterações sociais como foram as primeiras décadas do século XIX em todo o Atlântico e nos Açores.

A maior parte desses factos passam à margem dos interesses dos Dabney, porque eles eram-lhes realmente laterais e só lhes diziam respeito quando tocavam em pontos que merecessem cuidados redobrados à sua actuação como cônsules dos Estados Unidos ou como comerciantes à espreita de boas ocasiões de negócios ou até como fenómenos sociais que lhes proporcionassem proeminências sociais.

Tenho eu consciência que uma obra tão vasta como esta toca muitas e variadas facetas e cada leitor encontrará nela motivações e leituras que vão de encontro aos seus interesses específicos, mas parece-me também que, para além disso, há um fio condutor da organizadora dos Anais da Família Dabney. Roxana, como já argutamente Madruga da Costa realçou, não foi uma compiladora de correspondência, foi antes a construtora de uma imagem para a posteridade. Antes de mais para a memória familiar, mas, quem sabe, consciente ou inconscientemente, para o público em geral. Os Dabney, pela mão de Roxana, deixaram-nos aquele relato que eles idealizaram de si próprios e em que, certamente, acreditaram. O próprio Charles W. Dabney, o 2. o cônsul que é aqui trazido como a figura charneira e a quem os faialenses cognominaram de «Pai dos Pobres» e o «mais faialense de todos os Dabney», no fundo, visto à luz da pena de Roxana, não é mais do que um yankee, com consciência da sua superioridade e da sua condição e obrigação moral, auto imposta, de ajudar, com alguma distância, os infelizes que não eram como ele.

Por fim, uma palavra de louvor pela coragem do Instituto Açoriano de Cultura, através do seu dinâmico presidente, Dr. Jorge Augusto Paulus Bruno, e do Núcleo Cultural da Horta, em se lançarem neste empreendimento, que parecia enguiçado, de publicação, pela primeira vez para o público, dos Anais da Família Dabney e, também, ao Doutor Ricardo Madruga da Costa pelo seu belo e motivador prefácio.

Ainda que seja matéria em que não tenha competência para me pronunciar, pareceu-me que a tradução ficava aquém daquilo que seria de esperar, mas compreendo as dificuldades de pôr em português actual um texto histórico, com linguagens muito diversas, que vão desde a prosa coloquial de uma carta íntima, à linguagem distante de uma missiva comercial, passando pela elegância social de uma carta de agradecimento pela hospitalidade.

 
José Guilherme Reis Leite – Instituto Histórico da Ilha Terceira, Ladeira de São Francisco. 9700 Angra do Heroísmo