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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

A Alta Educação do Padre
ANTÓNIO DE ARAÚJO

P. Sena Freitas, Mons. John Lancaster Spalding
A Alta Educação do Padre
Prefácio de D. Manuel Clemente
Nova edição coordenada por José Eduardo Franco
Lisboa, Roma Editora, 2003

 

Ao publicar em 1909, poucos antes da sua morte, o livro a Alta Educação do Padre, Sena Freitas (1840-1913) não pretendeu apenas transpor para a realidade portuguesa dois discursos de Mons. John Lancaster Spalding, bispo de Peoria, no Illinois (E.U.A.) – ou, para usar expressões do subtítulo da edição original, proceder a uma «nacionalisação» e a uma «commentação» das intervenções do prelado norte-americano. A longa e densa introdução da sua autoria, que antecede a tradução portuguesa (adaptada) daqueles discursos, constitui, só por si, um texto que merece estudo e leitura atenta. Como diz D. Manuel Clemente no prefácio a esta nova edição, «a introdução de Sena Freitas é outro livro também». E, sem quaisquer nacionalismos, pode dizer-se que é um texto que não só não desmerece como em muitos aspectos ultrapassa os discursos de Mons. Spalding.

Bastaria isso para justificar – e saudar – a reedição desta obra. Temos, no entanto, razões suplementares para o fazer. Num livro graficamente muito cuidado, esta nova edição da obra de Sena Freitas é acompanhada de um magnífico estudo introdutório da autoria de José Eduardo Franco, Elísio Gala e Paula Borges Santos, que permite contextualizar a obra de um dos mais notáveis pensadores católicos da sua época. Por outro lado, este livro insere-se no «projecto Sena Freitas», iniciativa do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira da Universidade Católica que em boa hora surgiu para resgatar de um relativo, mas sempre injusto, esquecimento um autor que urge ser recuperado para o nosso convívio. Espera-se, pois, que sejam publicados brevemente outros títulos de Sena Freitas, especialmente os menos conhecidos, mas não menos importantes, como A Palavra do Semeador (1905-1906) ou Ao Veio do Tempo (1908). Para que Sena Freitas não seja apenas recordado pela sua faceta polemista, que o levou a escrever obras como Os Lazaristas pelo «lazarista» snr. Enes (1875), Quem são os verdadeiros reaccionários (1901) ou Autópsia da «Velhice do Padre Eterno» (1900).

Essa faceta polemista é, certo, constitui uma das marcas características do publicismo de Sena Freitas. De resto, o livro agora reeditado não foge a esse perfil. Ainda que não seja um livro de polémica em sentido próprio – nem Spalding, nem Sena Freitas procuram responder a qualquer «provocação» – representa uma tentativa de resposta à denúncia do atraso intelectual do clero, nomeadamente do clero secular, que constituía um dos temas clássicos da literatura anticlerical na viragem do século XIX para o século XX. Numa obra de propaganda da época, ao recordar os tempos dos jesuítas em Portugal, dizia-se que se haviam «apoderado do ensino, não para ensinar a seu modo, mas precisamente para não ensinar. Que importava o não saber ler? Os padres, os jesuítas, os fidalgos tinham pela leitura o mais absoluto desprezo» (Cf. Da Monarquia para a República. Edição popular. Crónica duma existência dissoluta e dum movimento nacional que redime, Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1915: 6). Em 1873, Magalhães Lima dirá que «o padre que, educando, devia ensinar e morigerar, pelo contrário, preparara a ignorância geral e a universal estupidez» (Magalhães Lima, Padres e Reis, Porto, Imprensa Portugueza, 1873: 40). Como afirmava outro adversário da Igreja, Eurico de Seabra, o clero «não se educa, não trabalha, não compra um livro».

Sem admitir essas críticas, sobretudo nos contornos mais «vulgares» que assumiram em poemas ou folhetos para consumo popular, Sena Freitas – e aqui reside um sinal da abertura e profundidade do seu pensamento – percebeu que os novos tempos exigiam um novo paradigma de clero e, nesse sentido, um novo tipo de formação sacerdotal. Clérigos militantes, independentes, socialmente interventivos e não «sacerdotes funcionários» de acordo com o modelo liberal. Nesse sentido, a Alta Educação do Padre pode ser perspectivada também como uma crítica, por antecipação, à instituição dos padres pensionistas durante a I República. O ideal sacerdotal de Freitas coloca-se nos antípodas do padre pensionista. O programa pedagógico que desenvolve na sua obra aponta para um modelo de padre exemplar, pela cultura e pela virtude, capaz de se impor nos confrontos que a intelligentsia laicista promovia. «Se as armas dos nossos adversários variaram, não podem deixar de variar as nossas», escreveria o Padre Sena Freitas em 1900. A ciência não poderia continuar a ser uma coutada de elites laicas e materialistas ou de radicais empenhados na «cruzada anárquica e comunista de Karl Marx» (p. 77). A ciência, a ser transmitida ao povo, o «querido povo de grenha empastada», convinha que o fosse através de sacerdotes admirados pelo seu saber e exemplo de vida, pois só assim se garantiria o devido «enquadramento» das novas descobertas e progressos do século. Como escreverá Sena Freitas: «Vivermos com o nosso tempo não quer dizer denegri-lo e maldizê-lo; é compreendê-lo e conformar os nossos métodos ao seu espírito» (p. 76)

Não propunha o Padre Sena Freitas a instituição de um clero «moderno» e, muito menos, «modernista». Propunha, isso sim, um ideal de sacerdócio atento aos problemas do seu tempo, que, sem contemporizar com o cientismo positivista, conhecia os desenvolvimentos da cultura e da ciência pois só assim se conseguiria integrar numa sociedade que já não poderia ser concebida a partir do modelo da ordem divina. Freitas compreende que, nesse particular, a mudança era irreversível e, como tal, a formação dos sacerdotes deveria fazer-se à luz do magistério de Leão XIII sobre o catolicismo integral, o ralliement e a doutrina social da Igreja. No domínio pedagógico, o ralliement de Freitas – que chega a falar na «belíssima obra da democracia cristã» (p. 77) – exprime um compromisso com a ciência e com a acção social, domínios que os sacerdotes deveriam estar preparados para enfrentar. No fundo, para que a vanguarda da educação do povo não fosse ocupada por intelectuais laicos mas por sacerdotes empenhados e militantes. O padre burocrata, acomodado na sua ignorância e nos pequenos privilégios de estatuto social, era uma espécie em vias de extinção. O autor de A Alta Educação do Padre percebeu-o antes de muitos outros. Por isso, a visão que tinha da sociedade portuguesa da sua época não poderia ser optimista, na perspectiva da defesa dos interesses da Igreja. A instauração da República e as perseguições religiosas a ela associadas acabariam por dar-lhe razão. O próprio Sena Freitas, aliás, será forçado a abandonar o País, acabando por falecer no Brasil .

Sena Freitas viveu num tempo de combates e, por isso, não admira que os textos que escreveu sejam quase sempre textos de combate. Não por acaso, um dos livros que deu à estampa denomina-se Crítica à Crítica (1879) e outro Lutas da Pena (1901-1902), expressões que bem poderiam servir de epítome da sua obra. Mas, como todas as epítomes, seriam fatalmente redutoras. Sena Freitas não foi um mero «crítico dos críticos», nem um simples «lutador da pena». Foi um distinto sacerdote lazarista, que personificou a «alta educação do padre» de que fala este seu livro ora reeditado. Nascido em Ponta Delgada, foi condiscípulo de Antero, conheceu Camilo, encontrou-se com Pio IX. Estudou em Paris, dedicou-se fervorosamente à acção missionária no Brasil, viajou por Inglaterra, pela Europa continental, pelo Médio Oriente e pela Ásia. Homem do seu tempo, acompanhava os debates intelectuais da época, com destaque para as questões da historicidade de Cristo e do positivismo. Envolver-se-ia em polémicas célebres, verberando o drama anticlerical Os Lazaristas, de António Enes, ou A Velhice do Padre Eterno, de Junqueiro. Participou no Congresso Antoniano de 1895 e, no ano seguinte, tornou-se cónego da Sé de Lisboa. Envolveu-se na batalha anticongreganista de 1901 – que, como se sabe, teve por epicentro a «questão Calmon» – tendo a este propósito publicado dois escritos panfletários que, é forçoso reconhecê-lo, não têm a elevação de A Alta Educação do Padre.

A publicação deste livro é um bom augúrio para uma redescoberta do publicismo católico fin de siècle. Muitos autores desse tempo merecem ser revisitados, quer membros do clero, quer leigos. O que escreveram homens como Fernando de Sousa, Manuel Abúndio da Silva ou Quirino Avelino de Jesus é indispensável para conhecer o que foi o século XX português. Muitos dos seus textos estão hoje claramente datados mas, mesmo nesse caso, possuem um interesse histórico que bem justifica a sua publicação. Esperemos, pois, que este «projecto Sena Freitas» se desenvolva a bom ritmo, de modo a que os seus responsáveis, investigadores com créditos firmados na história religiosa e das ideias, se aventurem em novas (re)descobertas do pensamento católico. Quanto a José Joaquim Sena Freitas, só restará dizer que foi, ele próprio, a encarnação viva do modelo formativo que propôs neste A Alta Educação do Padre.

 
António de Araújo – Tribunal Constitucional – Palácio Ratton. Rua de “O Século”, 111. 1249-117 Lisboa