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VITORINO NEMÉSIO
E A CIDADE DA HORTA (3)
VICTOR RUI DORES

Nemésio fixa a geografia humana, fisica e afectiva da Horta, capta esse "espírito do lugar". O seu olhar arguto vai surpreender as meninas da boa roda faialense a praticarem remo e vela na baía da Horta, a jogarem ténis no Fayal Sport e nos courts das Companhias, ou a tomarem banho em fato de malha na praia de Porto Pim, práticas que eram então muito pouco vulgares nas cidades de Angra do Heroísmo e de Ponta Delgada. Não lhe é indiferente as estrangeiras do Cabo, a galope de cavalo, com os cabelos ao vento... O jovem escritor ficará impressionado com esta "Horta desportiva e inglesada", onde as mulheres fumavam nos cafés... Assiste às manobras do oficialato casadoiro, está atento à "fala cantada e doce do Faial" e, em Mau Tempo no Canal falará, várias vezes, sobre a beleza das raparigas faialenses: "Há tanta rapariga bonita nesse Faial".

Em 1928, em Coimbra, Vitorino Nemésio recordará, em Sob os Signos de Agora, a sociedade da Horta, dedicando especial atenção às referidas jovens faialenses desembaraçadas, desportistas e independentes que ele conhecera dez anos antes:

"Na Horta a vida de sociedade é talvez menos discreta, menos passada a fieira da compostura e da pragmática. Por isso mesmo, toma as formas desembaraçadas do sport e da dança: e é afoita porque sacrifica ligeiramente à .forte nudez da verdade os tropeços da fantasia... Uma menina faialense de boa roda não se peja de mergulhar de maillot ou percorrer a Rua do Mar dando o braço a um inglês. Verdade seja que se expõe ao escárnio dos demais. Não importa. Está no seu papel de civilizada: cumpre as leis da sua raça magnífica" (NEMÉSIO, 1932).

Segundo Heraldo Gregório da Silva (SILVA, 1985), deriva provavelmente de tal apreço por esse ideal de mulher a tendência artística de Nemésio representar o Faial e a sua capital sob as formas femininas de "menina" e "donzela", "cara fêmea", "banhista de maillot" e até na forma latina de insula puellarum, isto é, ilha das meninas, conforme nos é dito em Mau Tempo no Canal. Assim, para Nemésio, "o Faial é discreto e feminino" [...] e "a Horta sempre teve na sua imaginação uma espécie de cara fêmea: não sei quê de donzela, de amor que não se teve, de adolescência sumida" (NEMÉSIO, 1956).

Porém, diferente é a atitude de Nemésio em relação aos progenitores das famílias smart do Faial. No primeiro capítulo de Mau Tempo no Canal, Margarida, após ter sentido na pele as verdascadas que lhe foram infligidas pelo pai (por ter estado à conversa com João Garcia), desabafa com a criada Maria das Angústias: "Namoro porque quero! Tanta proa, tanta presunção de serem as primeiras famílias do.Faial, quando não passam de uns brutos".

E será ainda pela boca de Margarida que Nemésio denunciará os pruridos de casta e classe dessas famílias: "O tio creia que estas senhoras da Horta não sabem que estão neste mundo senão quando a vida corre mal. Foram criadas com tolices: não vivem senão para o Real Clube Faialense e para as festas a bordo, quando vem uma esquadra à Doca". E denuncia que "O meio é mesquinho, é ... Uma gente fechada" e que, na Horta, vigora uma "moral extremamente chique" e "um vasto sistema mexeriquelro ...".

É ainda nesta sua obra maior que Nemésio há-de escrever esta lapidar descrição: "A Horta é um camarote de frente para o Pico, palco de todo o ano". E há-de também cometer uma ou outra imprecisão geográfica, um ou outro erro de palmatória que qualquer faialense ou picaroto dificilmente perdoará. Alguns exemplos:

I. Do Pasteleiro é impossível avistar-se a Doca, porque de permeio está lá o Monte da Guia.

2. Do Campo Raso, na ilha do Pico, é impossível ver-se um incêndio na Rua de Jesus, cidade da Horta (curiosamente foi na casa nº1 dessa mesma rua onde Nemésio ficou hospedado enquanto se preparava para os exames de Liceu).

3. Erradamente, Nemésio situa os baleeiros num lugar onde raramente se arriou à baleia: S. Mateus do Pico. Na ilha montanha, os baleeiros abundavam sobretudo nas Lajes, Calheta de Nesquim e Cais do Pico.

4. Nemésio põe, na boca de baleeiros picarotos, pronúncias, sotaques e variantes dialectais que, na realidade, pertencem a falantes da ilha Terceira e de que é exemplo a palatalização das consoantes seguidas de vogal tónica, característica da pronúncia tercelrense:

"Quem põe navalha na cara nã dá oividos a um velho canoco com' a (i)este".

"Os oitros bem que se chegam".

"Está uma mulher feita, com aquele feitio destoiçiado".

"Ai Sinhor Santo Amaro! qu'ele nem siquer le passa a barba do harpão polo toicinho"...

" A Gazela aparelhou p'ra nossa (i)arte e eu que estava casado e cheio de meninos"...

"... a beber vuinho"... (vinho)

(NEMÉSIO, 1944).

De resto, em Julho de 1960, Vitorino Nemésio (que haveria ainda de visitar a ilha do Faial por mais duas vezes: 1963 e 1971) confessou a José Martins Garcia, a bordo do Carvalho Araújo, que as personagens de Mau Tempo no Canal eram decalcadas de gente da ilha Terceira. "Claro que toda essa gente é da Terceira... O Faial e o Pico deram-me apenas um habitat" ( cf. GARCIA, 1978). E acrescentou que o enredo familiar e amoroso de Margarida Clark Dulmo e dos diversos pretendentes não derivava de nenhum facto ocorrido no seio de qualquer família faialense. Nemésio operara a transposição do enredo, na realidade próximo de famílias terceirenses, para o ambiente da cidade da Horta que lhe foi dado conhecer na juventude. Por conseguinte, a Horta funciona, no romance, como uma projecção e como um disfarce de Angra do Heroísmo.

Mas deixemo-nos de petites histoires, sabido que é próprio do escritor criar, inventar, transpor, distorcer. Mau Tempo no Canal é, segundo Martins Garcia, "a síntese de todas as ficções de Nemésio e o remate de toda a idiossincrasia açoriana", avançando com a ideia de que toda a ficção nemesiana é um percurso em direcção a uma ilha perdida, funcionando esta como um mito. Por isso as ilhas do Faial, Pico, S. Jorge e Terceira (ilhas reais) serão recriadas e transfiguradas pela pena magistral de Nemésio em ilhas ideais, sonhadas ou pressentidas. Uma coisa é certa: a Horta fará parte do imaginário nemesiano, a par de outras cidades como Praia da Vitória, Angra do Heroísmo, Coimbra, Lisboa, Montpelier, Paris, Bruxelas, Rio de Janeiro, Bahia, S. Paulo, Ceará, Pemambuco, Pará, entre outras. Em artigo publicado no Diário Popular, intitulado Asas nas Ilhas e datado de 24 de Agosto de 1971, Nemésio confessa-se "ilhéu adoptivo da Horta por um romanesco que escrevi dos meses que lá estive em moço, escuso jurar o que sinto".

"Um homem que transporta uma ilha", disse dele Ortega e Gasset.

No dia 27 de Agosto de 1944, Nemésio concede uma entrevista ao Correio dos Açores, na qual afirma:

"Parece-me que fiz realmente um romance das ilhas - a nossa gente, a nossa lava, o nosso mar" [...]

"escrevi um livro de atmosferas, de sonho, de ilhas" [...]

"Os Açores estão mais ou menos na raiz de tudo quanto faço. A tartaruga puxa sempre para o mar".

Ora, sendo um livro sobre ilhas, Mau Tempo no Canal é hoje considerado não apenas um dos melhores romances portugueses do século XX, como uma obra já pertencente à literatura universal.

Este livro é a saga, é a epopeia e é o grande romance da açorianidade, termo e conceito criado, em 1932, pelo próprio Nemésio em artigo publicado na revista insulana (ao que parece, por decalque de hispanidad, de Unamuno). Trata-se, como é sabido, de uma obra-prima. Que o é por três tipos de razões: pela densidade e perfeição da sua forma e estrutura; pela riqueza psicológica das suas personagens, ou seja, pela expressão dos sentimentos humanos; e pela maneira como o autor desenvolve aspectos históricos, culturais, sociais, míticos, etnográficos e científicos relacionados com as nove ilhas dos Açores.

Nemésio soube ser universal a partir das ilhas. Aspirou à universalidade a partir das suas raízes insulares.

Quando, em Março de 1974, recebeu o Prémio Montaigne, ao proceder ao balanço da sua vida e obra, afirma categoricamente:

"Sou ao mesmo tempo e, acima de tudo, português, açoriano, europeu, americano, brasileiro e, por tudo isto, românico, hispânico e ocidental e gostava de ser homem de todo o mundo".

A escrita de Nemésio é um mundo e a sua obra é uma apetecível viagem pelos saberes. Porque este ilhéu de quatro costados e açoriano de 14 gerações foi tudo: poeta, romancista, professor, filólogo, investigador, crítico, jornalista, cronista, intelectual, historiador da literatura e da cultura, comunicador televisivo (Se bem me
lembro
, transmitido na RTP entre 1969 e 1975), biógrafo e epistológrafo. Só é pena que, neste tempo em que vivemos saturados de comunicação, informação e imagem, continue a obra nemesiana a ser mais conhecida do que lida... Mas foi o próprio Nemésio que, muito antes do advento da Internet, do CD-Rom e da imagem virtual, já nos havia avisado: "A literatura requer despreocupação e disponibilidade"...

Horta,7/10/2002

BIBLIOGRAFIA
 

GARCIA, J. M. (1978), Vitorino Nemésio, a obra e o homem. Lisboa, Arcádia.

NEMÉSIO, V. (1932), Sob os Signos de Agora. Temas portugueses e brasileiros. Coimbra, Imprensa da Universidade.

IDEM (1944), Mau Tempo no Canal. Lisboa, Bertrand.

IDEM ( 1956), Corsário das Ilhas. Lisboa, Livraria Bertrand.

SILVA, H. O. (1985), Açorianidade na prosa de Vitorino Nemésio - Realidade, Poesia e Mito. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

VALDEMAR, A. (2002), Vitorino Nemésio, sem limite de idade. Lisboa, CTT, Correios de Portugal.