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Pedro da Silveira (1922-2003)
– Um breve perfil

ÁLAMO OLIVEIRA

Oliveira, A. (2004), Pedro da Silveira (1922-2003) – um breve perfil. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 13: 75-80.

Sejas tu, assim, amigo Mar,
no fundo, frio das tuas águas cegas,
com algas e pedras e peixes insensíveis
a última cama de paz onde me deite!
Pedro da Silveira

 

A intervenção escrita de Pedro da Silveira é, desde o seu início, demonstradora de um autor que é capaz de olhar o Mundo sob múltiplas abrangências e de entender e interpretar os sinais que os tempos vão debitando. É uma atitude que não coincide com o que se depreende ser um ilhéu nascido numa das ilhas mais insularizadas do arquipélago. No entanto, esta circunstância foi aproveitada por ele para romper, sem abjurar, com uma situação de isolamento que, desde moço, não quis aceitar e, muito menos, assumir.

Aos dezanove anos estava em Angra do Heroísmo, estudando e participando na vida cultural da cidade, sem descurar conhecer o que havia para lá das ilhas. Em entrevista ao suplemento «Quarto Crescente» (1987), Pedro da Silveira refere a forma como pretendeu construir a sua personalidade, quer como cidadão quer como escritor. Disse: «Havia na cidade, pelo menos em certos meios, um culto muito fiel por Jaime Brasil e por Aurélio Quintanilha, ambos terceirenses e ambos anarco-sindicalistas. Para aí me inclinei e ainda agora, se alguma ideologia política é capaz de me dizer alguma coisa, essa é o socialismo acrata ou anarquismo.» E, na mesma entrevista, acrescenta: «O meu primeiro mestre de modernidade e, vá lá, de açorianidade também, foi Jorge Barbosa, com o Ambiente. A realidade que ele transmitia, de um Cabo Verde miserável, em que as pessoas olhavam o mar como um caminho a transpor, de salvação, tinha muito que ver com a nossa nos anos de 1930-1940s. Pelo menos em mim, Nemésio não foi, como poeta, uma influência. Limitou-se a dizer-me que um poeta ou prosador açoriano deve ser isso mesmo e não uma caricatura de lisboeta ou parisiense. Resumindo: Nemésio foi a teoria, Jorge Barbosa (para mim, naquele tempo) o modelo imediatamente aceitável.» Seguiu para Ponta Delgada e logo integrou o grupo d’A Ilha , jornal que deu espaço às vozes de açorianos, como Armando Rocha, Carlos Wallenstein, Fernando Reis, Borges Garcia, entre outros a par de nomes do continente, como Egipto Gonçalves, Silva Duarte, Joel Serrão... Este período, particularmente rico em actividade literária, comprometida com a situação social do meio açoriano e com a necessidade de introduzir as novas correntes de escri­ta, vem, de forma pormenorizada e documentada, no ensaio «Pedro da Silveira - a escrita e o mundo», de Urbano Bettencourt (2003: 121-135), cuja leitura se recomenda vivamente. A colaboração de Pedro da Silveira, neste jornal, tem a sua marca inconfundível. Ele próprio confessou que foi, muitas vezes, intempestivo no que escreveu. Mas era a forma de «sintonizarmos a nossa literatura com os Açores, nossa pátria, sem esquecermos, ao mesmo tempo, uma participante cidadania do mundo.» («Quarto Crescente», 1987).

Após o cumprimento do serviço militar (1943-1944) e de um período curto na Base das Lajes, Pedro da Silveira seguiu, definitivamente, para Lisboa. E foi na Biblioteca Nacional que, profissionalmente, se estabeleceu, sendo funcionário assíduo e competente. Começou, então, a publicar poesia – uma poesia portadora de uma enorme sensibilidade, de conhecimento do que é o acto poético, de domínio dos cânones da escrita e de uma notável modernidade. Títulos: A Ilha e o Mundo (1952), Sinais do Oeste (1962), Corografias (1985) e Poemas Ausentes (1999). Ainda em 1999, fez publicar, através da Direcção Regional da Cultura, o I volume de Fui ao Mar Buscar Laranjas , enformado pelos poemas de A Ilha e o Mundo e Sinais do Oeste , precedidos de Primeira Voz – vinte poemas ainda inéditos, escritos entre 1942 e 1946.

A poesia de Pedro da Silveira está particularmente envolvida por uma insularidade especial. Ela deixa transparecer uma militância que enaltece a condição de se ser ilhéu, enobrecen­do-a com um discurso que heroiciza vivências e situações, não raras vezes dramáticas (A Ilha e o Mundo ), e derivando, depois, para um apelo aos heróis (anti-heróis?), que a sua memória fez emergir e que personalizam o que a insularidade tem de universal (Sinais do Oeste).

Os últimos dois livros (Corografias e Poemas Ausentes ) continuam, de forma mais visível, com o recurso ao cruzamento de vozes e de escritas, deixando uma visão contextualizada do que a sua sensibilidade apreendeu das outras literaturas. Daí, a existência de um outro livro, que conheceu já duas edições, e que é a demonstração eloquente da sua capacidade de entender , profunda e extensivamente, as outras escritas. Mesa de Amigos ( Silveira, 1986) é uma das mais importantes antologias de poesia estrangeira vertida para português. Cerca de seis dezenas de poetas – chineses, italianos, franceses, espanhóis e sul-americanos – figuram nesta antologia com quase duas centenas de poemas, numa tradução que os entendidos afirmam ser exemplar.

Foram muitos os interesses literários de Pedro da Silveira. Colaborou, pontualmente, em vários jornais e revistas. Destas, destacam-se: Colóquio -Letras , Seara Nova e Vértice. Preparou antologias temáticas; recolheu materiais de literatura oral, sobretudo da ilha das Flores; procedeu a várias investigações histórico-literárias. E publicou, em 1977, a Antologia de Poesia Açoriana do Século XVIII a 1975 ( Silveira, 1977), com a finalidade (entre outras) de dizer ao país «que Antero é de facto um grande poeta açoriano, como também o são Roberto de Mesquita ou Vitorino Nemésio, já se sabia. Agora, para quem só isso ou pouco mais alcançava, penso ficará esclarecido que eles não são «ilhas» isoladas, únicas, no «mar» da literatura açoriana.» ( Silveira, 1977: 41).

Esta antologia, de méritos ainda não contabilizados de todo, foi uma das poucas que obedeceu a critérios inteligíveis. Neste género de publicação, é frequente serem anunciados métodos selectivos que logo descambam de acordo com as conveniências. Pedro da Silveira não cede um milímetro dos propósitos que definiu para esta antologia: mostrar, de forma comprovada, a vitalidade e a qualidade da criação literária açoriana. O seu Prefácio tomou-se manifesto – manifesto fundamentado e desassombrado sobre a existência da literatura açoriana. A sua frontalidade buliu com alguns meios intelectuais do continente. A polémica, porém, não colheu melhores argumentos dos que estão enunciados no referido prefácio: «...da minha parte não houve aquele propósito, pela boa razão de a literatura açoriana não precisar de que se aduzam argumentos a favor da sua existência: apenas precisa, o que é diferente, de sair do «guetho» que lhe tem sido a sina, de ser mais conhecida.» ( Silveira, 1977: 1).

Apesar das opiniões discordantes que então surgiram, a antologia foi mesmo a «pedra» que mexeu com as águas estagnadas do «charco» dos meios literários portugueses, os quais, com sinceridade ou com a maldade possível, leram o prefácio sob a óptica política, apontando-lhe um separatismo que o autor nem sequer sugeriu: «Já deixei notado que o separatismo (entendido como corrente que preconizava a independência total dos Açores) não produziu nenhuma doutrina normativa da literatura, isto é, sobre o que deveria ser a literatura açoriana.» ( Silveira, 1977: 11). O que custava era aceitar que os escritores açorianos estivessem a desenvolver uma escrita que se diferenciava da de outros autores de Língua portuguesa. É que, nessa escrita, eram visíveis as especificidades que identificavam o açoriano como ser moldado por elementos atmosféricos e sociológicos diferentes, adaptado a vivências e comportamentos que, ao longo dos séculos, foi assimilando, pois viver numa ilha implica(va) uma outra noção de mundividência. A esta realidade continuam atentos os escritores das ilhas e é inegável a importância do seu contributo para o conhecimento da sociologia da literatura açoriana.

Por tudo isto, é com justificada expectativa que se aguarda a publicação da História da Literatura Açoriana, obra que Pedro da Silveira deixou acabada, a par de outras que, eventualmente, necessitarão de revisão pouco significativa, como uma nova antologia do conto açoriano, o II volume de Fui ao Mar Buscar Laranjas (enformado pela sua produção poéti­ca mais recente), recolhas de rimances, adágios e adivinhas da ilha das Flores, traduções de poesia, etc.. E pergunta-se: Que foi feito a uma antologia de contos com o gato como tema, que preparou para uma editora de Lisboa?

É mais que óbvia a importância da obra de Pedro da Silveira. Mas há outro aspecto que deve ser sublinhado e que resulta dos interesses e da dinâmica emprestados aos seus múltiplos trabalhos, os quais partilhava com desusada generosidade. Que se saiba, nunca deixou de servir quantos recorreram ao seu conhecimento, verdadeiramente, enciclopédico. O que lhe interessava era que tudo fosse feito com rigor e perfeição, mesmo que fossem outros a colher os louros. Exemplo da sua generosidade são as informações dadas por escrito, à Direcção Regional da Cultura, num total de nove páginas, de formato A/4, dactilografadas a dois espaços, sob o título de NOTAS SOBRE AUTORES AÇORIANOS CUJAS OBRAS DEVEM MERECER EDIÇÃO, AS INÉDITAS, OU SEREM REEDITADAS CONDIGNAMENTE.

Este documento é um manancial de informação sobre a produção literária açoriana, com referência a nomes, datas possíveis e títulos de obras, que começa no século XV e se estende até ao século XX. São citados mais de seis dezenas de autores, com mais de oitenta títulos recomendados para publicação, parte deles ainda inéditos. Deixa elaborado um verdadeiro programa editorial que, uma vez concretizado, revelaria o percurso histórico da literatura açoriana. Este documento não é, apenas, uma listagem de autores e das suas obras. Traz também informações que, só aparentemente, parecem marginais, mas que logo se revelam como complementos informativos preciosos: locais onde podem ser encontrados os exemplares raros de algumas obras; fontes para os textos a pesquisar ou a recolher; sugestões de nomes para a realização dos trabalhos de recolha e de pesquisa; informações de quem trabalha já sobre as obras de alguns autores. E sempre a recomendação explícita de que todas sejam publicadas de «forma condigna». E há mais ensinamentos neste documento que começa assim: «Os dois mais antigos escritores açorianos de que tenho notícia são o terceirense D. Frei João Estaço (Angra, c. 1490 – Valladolid, Espanha, 1553), que foi bispo de Puebla, no México, e só escreveu em castelhano, e o micaelense Rui Gonçalves, que foi lente da Universidade.»

E as revelações sucedem-se, como a indicação de quem foi «a nossa pri­meira mulher de letras», uma tal Sóror Catarina de Cristo, terceirense, «autora inédita cuja obra de poetisa e prosadora foi referida elogiosamente por Barbosa Machado.» Porém, acrescenta: «...não sei se restam ma­nuscritos do que escreveu, ao gosto do Barroco.» Poesias Líricas, de José Augusto Cabral de Meio, vem referido como sendo o primeiro livro de um poeta que se imprimiu nos Açores. Estava-se no ano de 1834. Por sua vez, Miguel Street de Arriaga (n. 1827) é referido como comediógrafo. A sua peça Uma Lição de Guitarra mereceu, de Pedro da Silveira, o seguinte comentário: «Com a poesia «O Canto do Baleeiro», esta comédia coloca o seu autor na primeira linha dos escritores açorianos atentos à realidade do meio.»

São muitas as referências, as opiniões e as sugestões deixadas. Transcreva-se mais esta sobre Manuel Zerbone: «Impõe-se publicá-las (as crónicas) na totalidade e, à parte, os seus contos e os poemas em prosa. Discípulo, nos poemas em prosa de Aloysius Bertrand e de Baudelaire, é uma das figuras mais interessantes da literatura açoriana do seu tempo.» Com este documento, Pedro da Silveira proporciona uma fonna eficaz de ler o percurso da literatura açoriana, corrigindo erros, abolindo preconceitos académicos e dando maior objectividade à criação literária de Língua portuguesa.

Fica evidente a afirmação de que, com o desaparecimento de Pedro da Silveira, a Cultura açoriana ficou mais pobre, e que tal afirmação não repete um mero chavão de circunstância. Ele foi a fonte mais activa sobre muitas das vertentes culturais dos Açores. O seu espólio não deixará de comprovar isto mesmo. Além disso, deixa uma produção poética notável e um exemplo, sadio e forte, do que é ser-se açoriano no Mundo.

 

Bibliografia

Bettencourt , U. (2003), Ilhas conforme as circunstâncias. Lisboa, Edições Salamandra, Colecção Garajau, n° 101.

«Quarto Crescente» – suplemento de Artes e Letras do jornal A União (1987), n° 164, de 17.7. Angra do Heroísmo.

Silveira , P. (1977), Antologia de Poesia Açoriana do Século XVIII a 1975. Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora.

Idem (1986), Mesa de Amigos. Angra do Heroísmo, Ed. Direcção Regional dos Assuntos Culturais, Colecção Gaivota, n° 46. (2 a edição: Assírio & Alvim, Lisboa, 2001).

 
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