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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

MANUEL LOPES, ESCRITOR
– UM CABO-VERDIANO NOS AÇORES
Urbano Bettencourt

INDEX

Sumário
Summary
Manuel Lopes
Bibliografia
Cartas de Manuel Lopes

Manuel Lopes

A 25 de Janeiro de 2005 faleceu em Lisboa o escritor Manuel Lopes. No atabalhoamento da informação diária, os jornais debitaram a apressada nota necrológica adequada a quem não frequentava os círculos da frivolidade literária; e do baú das frases de circunstância saíram coisas como “a Literatura portuguesa ficou mais pobre”, numa confusão despropositada (e vagamente colonial) entre língua e literatura. Mas sempre lá se disse que o escritor vivera alguns anos nos Açores, embora um jornal da capital tivesse especificado “antes de se instalar definitivamente em Cabo Verde”; o facto é que, depois de deixar os Açores, Manuel Lopes ainda viveu em Santo Amaro de Oeiras, antes de se instalar definitivamente em ... Lisboa.

Esta presença do escritor cabo-verdiano nos Açores ficou a dever-se ao facto de a Western Telegraph, companhia de que era funcionário em S. Vicente, o ter transferido para o Faial, aonde chegou no início de 1944; instalado na chamada Colónia Alemã, viveu nesta ilha cerca de onze anos, até ao primeiro trimestre de 1955.

O período açoriano de Manuel Lopes, o seu significado no percurso biográfico e artístico do autor, tem sido objecto de atenção particular por parte de Marie-Christine Hanras; encontram-se ainda referências a ele, embora mais pontuais, tanto em António Cândido Franco como em Carlos M. Ramos da Silveira. O próprio Manuel Lopes em diversas ocasiões se referiu à sua experiência açoriana, em termos que deixam passar a expressão de um duplo sentimento: por um lado, o desconforto perante um novo ambiente, a vários níveis adverso; por outro lado, a constatação daquilo que de positivo esses anos representaram na sua actividade criativa e na sua vivência social. Vistos numa perspectiva algo diferenciada, esses depoimentos ajudam a recuperar uma certa imagem da Horta nas décadas de 40 e de 50 e permitem ainda compreender o modo como o escritor se integrou no meio cultural e literário açoriano, integração a que não é alheio o relacionamento com o poeta Pedro da Silveira.

A um primeiro olhar, a chegada de Manuel Lopes à Horta e a sua estadia fazem-se sob a forte impressão de um meio pouco estimulante intelectualmente e constrangedor do ponto de vista físico, tenham-se em conta as profundas diferenças climáticas entre Cabo Verde e os Açores. Dessa mudança e dos seus efeitos, fala Manuel Lopes na entrevista a Daniel Spínola, tomando como termo de comparação os hábitos desportivos pessoais num e noutro arquipélago: “Eu saí de um clima extremamente seco, saudável, de S. Vicente, mas aquele clima seco que faz de toda a rapaziada um desportista – eu era um homem que andava nas montanhas (...) joguei futebol, joguei ténis, joguei golfe, gostava muito de jogar golfe, fiz natação e, principalmente, corri (...) Ali nos Açores dei a volta à ilha a pé, ainda nos primeiros meses, eu levava ainda genica de Cabo Verde. Mas depois comecei a cair naquela... eu senti-me mesmo pesado. É um clima um pouco deprimente. É uma humidade deprimente. A gente sente a humidade entrar na pele, nos ossos, nas carnes. E eu tornei-me caseiro porque vivi lá onze anos” (L opes , 1998: 16). Noutra ocasião, o escritor não deixaria, no entanto, de reconhecer os aspectos positivos desse pendor caseiro e do sedimentarismo a que o Faial o obrigou, levando-o a desenvolver estratégias para sobreviver num meio que também no domínio cultural se diferenciava do cabo-verdiano: “Não fui encontrar na ilha do Faial a mesma efervescência cultural que deixei em S. Vicente, pela simples razão de não ter encontrado efervescência nenhuma. Foi para mim, em relação ao que tinha deixado em S. Vicente, um handicap considerável” (L opes , 1984: 20).

A pintura foi uma das formas encontradas para escapar à “inapetência literária” experimentada no Faial (L opes , 1990: 7); embora já em Cabo Verde Manuel Lopes se dedicasse esporadicamente ao desenho, foi nos Açores que se entregou de forma continuada à pintura, compensando deste modo a “situação de solidão da linguagem” (L opes , 2001: 83). Assim, entre 28 de Novembro e 2 de Dezembro de 1953, os faialenses puderam contactar com o resultado desse trabalho, um conjunto de quarenta e três quadros expostos no Gabinete de Leitura da Sociedade Amor da Pátria; lançando mão de diversos meios de expressão, entre o guache, o carvão, a aguarela, a tinta-da-china e o óleo, o pintor dava mostras de uma variedade de registos temáticos, onde predominava o paisagístico, fosse ele o imediato açoriano, fruto de uma observação directa, fosse ainda a “memória” do espaço cabo-verdiano.

Realizada no período final da sua permanência na Horta, a exposição de Manuel Lopes, a que a imprensa local deu o devido relevo, assinalava já o grau de integração do escritor na sociedade faialense, em particular, e na vida cultural do arquipélago, em geral. Como também o assinalava o facto de Manuel Lopes se encontrar entre os catorze elementos que, em 1954, apuseram os seus nomes aos Estatutos do Núcleo Cultural da Horta (NCH): Osório Goulart, Manuel Linhares de Andrade, P.e Júlio da Rosa, Constantino Amaral, Tomás da Rosa, Manuel Alexandre Madruga e José Benarús, para citar apenas alguns. Essa ligação ao NCH manter-se-ia pelo tempo fora, mesmo depois da saída de Manuel Lopes, quer pela atenção com que Tomás da Rosa foi seguindo e recenseando a sua obra, quer mesmo pela colaboração que o escritor cabo-verdiano prestaria ao Boletim do NCH (Vol. I, n.º 3, 1958) com um artigo sobre o artista Euclides da Rosa e os seus trabalhos em miolo de figueira. E convém não esquecer que em Março de 1950 Manuel Lopes proferira no Salão do Sporting Club da Horta uma conferência intitulada “Os meios pequenos e a cultura”, editada logo no ano seguinte e que ficaria a constituir um dos principais textos teóricos do autor. Trata-se de uma demorada análise dos problemas e dos constrangimentos que afectam a cultura em virtude da natureza peculiar dos meios pequenos, entre outras coisas a sua propensão para conservarem os velhos figurinos e, num movimento inverso, se abrirem de forma acrítica e fácil às manifestações que lhes chegam do exterior sob aquela fachada vistosa e sugestiva que dá uma ilusão de “grandeza tentadora”. Mas o ponto de partida para a análise e posteriores “sugestões” (não “soluções”) para uma “libertação pela cultura” é a distinção por ele estabelecida entre meios pequenos e meios acanhados – estes juntam à limitação do espaço a redução das oportunidades e das possibilidades de realização individual e colectiva.

Numa outra vertente, registe-se a participação de Manuel Lopes na imprensa açoriana, com estreia a 15 de Setembro de 1945 no jornal A Ilha , de Ponta Delgada, e sem dúvida pela mão de Pedro da Silveira que precisamente nesse ano aí começara a divulgar a nova literatura de Cabo Verde. Diga-se, porém, que a “descoberta” desta pelo poeta açoriano se verificara três anos, antes através do contacto com a poesia de Jorge Barbosa; mas a aproximação ao arquipélago africano acentuou-se com a intervenção de João de Deus Lopes da Silva, irmão do escritor Baltasar Lopes e Comandante da marinha mercante que viajava com alguma frequência até aos Açores. Leitor informado e ele mesmo autor de algumas tentativas literárias publicadas n’ A Ilha , o Comandante Lopes da Silva foi um autêntico elo de ligação entre os dois arquipélagos e trouxe até às páginas do jornal micaelense os modernos escritores cabo-verdianos, alguns dos quais aqui se estrearam literariamente (B ettencourt , 1999: 85-111); e terá sido ele quem pôs Pedro da Silveira em contacto com Manuel Lopes – apesar de ambos se encontrarem no mesmo arquipélago, não era fácil a comunicação inter-ilhas, dadas as restrições existentes no pós-guerra, como referiu Pedro da Silveira ( Franco , 1996: 112).

Depois dessa estreia n’A Ilha , Manuel Lopes aparecerá com alguma regularidade n’ O Telégrafo , da Horta. Em 1959, ao escrever sobre a imprensa periódica cabo-verdiana, o escritor registará como facto positivo a existência dos dois jornais faialenses (o Correio da Horta e O Telégrafo , de que foi assinante), e, depois de reconhecer a superioridade da imprensa açoriana sobre a cabo-verdiana, há-de concluir pela “incapacidade jornalística” do seu arquipélago, onde a «literatura » estrangula o jornalismo.

Textos de circunstância sobre o quotidiano, poemas, notas de divulgação da Literatura cabo-verdiana ou recensões a autores açorianos – tudo isso compõe a colaboração de Manuel Lopes n’ A Ilha e n’ O Telégrafo entre 1945 e 1954. Mais tarde, ao referir-se ainda às suas relações com a imprensa do Faial, o escritor afirmará, não sem alguma ironia de permeio: “Também colaborei num jornal. Havia dois jornais. Um da situação, nunca mandei nada! Fui um ingrato. Aquele jornal publicou um número especial quando publiquei o meu livrinho de poemas, mas nunca tive coragem para mandar alguma coisa” ( L opes , 1998: 17). Efectivamente, a 8 de Outubro de 1949, o Correio da Horta , o jornal “da situação”, assinalara a edição de Poemas de quem ficou , publicando uma sequência de poemas de Manuel Lopes e, através de Silva Peixoto, viria ainda a recensear o ensaio Os Meios Pequenos e a Cultura . Daí, a sensação de injustiça por parte do escritor.

Apesar de tudo, e no domínio da criação literária, o período açoriano não foi totalmente estéril e o escritor ultrapassaria a “inapetência literária” inicial. Atesta-o a publicação de Poemas de quem ficou , em 1949, estreia poética em livro, graças ainda à intervenção de Pedro da Silveira, que pôs o escritor cabo-verdiano em contacto com Manuel Joaquim de Andrade, editor angrense que viria a constituir um catálogo editorial impressionante, atendendo às condições do tempo e do meio. É certo que o livro não foi totalmente escrito nos Açores, mas, como confessou o autor, uma boa parte da sua génese ocorreu neste arquipélago.

E as breves cartas enviadas em 1954 a Fernando de Lima (1) (e pertencentes ao espólio deste) lançam luz sobre o tempo faialense da escrita de Chuva Braba e mesmo de O Galo que cantou na baía (o título definitivo ficaria reduzido a O Galo cantou na baía ). Se bem que nelas se dê por terminada a escrita do romance, a verdade é que a comparação dos excertos publicados n’ A Ilha com a versão em livro revela diferenças significativas, sinal de que o texto foi posteriormente submetido a um processo de revisão e aperfeiçoamento. De resto, essas cartas fornecem ainda elementos importantes sobre a rede de cumplicidades que permitia a circulação dos livros dentro do arquipélago e assegurava o contacto com o exterior, ao mesmo tempo que revela o papel de Fernando de Lima como interlocutor micaelense de Manuel Lopes (a esta data, já Pedro da Silveira se fixara em Lisboa) e a sua intervenção nos bastidores literários, numa altura em que a sua actividade de ficcionista se encontrava encerrada.

De tudo isto, que concluir da experiência açoriana de Manuel Lopes? A resposta do autor seria ainda ambígua: “Eu gostei de estar nos Açores, mas ao mesmo tempo não gostava, porque lá não havia aquele movimento intelectual que nós tínhamos em S. Vicente” ( Lopes , 2001: 62). Mas olhando as coisas pelo lado exterior, sem atender ao sentido individual do desajustamento físico e pensando apenas na intervenção pública do autor, ela acaba por revelar-se mais positiva do que ele poderia crer. Integrando-se perfeitamente na dinâmica cultural que nas décadas de 40 e 50 teve em Ponta Delgada o seu foco de irradiação, Manuel Lopes deixou aí as marcas da sua presença, tentando ainda projectar em seu redor o rasto do movimento intelectual que deixara em S. Vicente. E tornou-se uma voz mais no conjunto das que tentavam pôr os Açores em sintonia com o modernismo, partindo ao mesmo tempo à procura do seu próprio chão.

 
(1) Membro fundador, em 1946, do Círculo Literário Antero de Quental (CLAQ). Contista e cronista. Deixou uma obra narrativa de qualidade, apesar de curta e escrita por volta dos vinte anos de idade; foi reunida por Filomena Medeiros no livro Dez contos e outros escritos, publicado pouco antes da morte do autor em Dezembro de 2004.
Urbano Bettencourt – Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, Universidade dos Açores. Rua da Mãe de Deus. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada Codex.