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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

DESEMPENHO DE POSTOS MILITARES E CARGOS DA ADMINISTRAÇÃO NOS AÇORES EM FINAIS DO REGIME DE CAPITANIA-GERAL . ALGUNS ASPECTOS
RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA

INDEX
Sumário
Summary
Introdução
Uma sociedade de Antigo Regime
Análise de dados
Bibliografia
Documentos

ANÁLISE DE DADOS

A análise abaixo contempla, de um lado os processos de avaliação do desempenho de militares e de magistrados e, de outro, os aspectos que respeitam à qualidade social dos candidatos e detentores dos postos militares para os quais era requerido o estatuto de nobreza. Para cada uma das análises, na secção própria, produzem-se breves conclusões.

1. As questões do desempenho

1.1. Militares. De um mapa de síntese sobre o desempenho dos oficiais de milícias do Faial em 1821, incidindo sobre um universo de 27 oficiais (1), resumem-se no Q uadro I os parâmetros de avaliação, indicando-se com sinal + e sinal – a natureza favorável ou desfavorável da informação. O número de casos no Q uadro I não corresponde, nalgumas situações ao total dos casos observados porque nem todos os parâmetros foram alvo de apreciação para todos os oficiais.

Quadro I

PARÂMETROS DE AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS OFICIAIS DE MILÍCIAS

 

Por “agilidade” era entendido o conjunto de atributos especificamente militares, capacitando o oficial para o exercício das funções. O comportamento tinha a ver com a dupla vertente civil e moral.

No ano anterior, em mapa de avaliação idêntico era considerado também o carácter, em relação ao qual os oficiais recebiam todos informação favorável (BPARAH, 1818-1821: doc. s.n.). Neste último caso o governador completava a informação afirmando que todos os oficiais tinham “boas ideias religiosas e políticas”, como era próprio de bons católicos e leais vassalos. Para as ordenanças, o mapa respectivo pode resumir-se no Quadro II em que a terminologia e os parâmetros variam um pouco em relação ao anterior e que incide sobre um universo de 39 oficiais (3):

Quadro II

PARÂMETROS DE AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS OFICIAIS DE ORDENANÇAS

Complementarmente, temos um oficial acusado de praticar ”rapaziadas” e dois de terem “génio acre”.

1.2. Magistrados. Como empregados civis, designação então comum, de um mapa de 1811 contendo informação sobre os magistrados dos Açores, enviado pelo capitão-general Aires Pinto de Sousa para o Conde das Galveias, o espectro de avaliação é alargado consideravelmente (AHU, 1811, cx. 73: doc. 6). Assim, a par da competência profissional, é considerada a afabilidade no tratamento com as partes, zelo pelo serviço, inteligência e prontidão no despacho, carácter e desinteresse e ainda a limpeza de mãos, ou seja, a honestidade. O capitão-general avaliava os dois corregedores, o provedor dos resíduos e os juízes de fora em efectividade de funções nos Açores, a todos classificando favoravelmente. Apenas o juiz de fora de Ponta Delgada, bacharel Roque Francisco Furtado de Melo, mereceu alguma reserva por haver queixas contra ele. Uma apreciação, mesmo que ligeira, de mapas idênticos para anos próximos daquele agora considerado, leva a crer que se tratava de um exercício de rotina e repetitivo, quer nos termos adoptados quer na natureza das apreciações produzidas.

Observando um mapa de avaliação dos empregados civis da ilha do Faial em 1820 (BPARAH, 1818-1821: doc. s.n.), a bondade dos visados é, em geral, apanágio de todos eles (2). Os vereadores têm todos “inteireza de carácter e desinteresse”; os almotacés têm “boa reputação” e a maioria recebe apreciação favorável com excepção de um dos advogados que é tido por pessoa de talento mas mau carácter. Dos escrivães apenas um será conceituado como pessoa recta, já que os colegas recebem designativos menos lisonjeiros, como “duro com as partes” e “mal conceituado”. Os juízes pedâneos são contemplados, sem excepção, com o reconhecimento de possuírem bom carácter e de serem desinteressados.

Como informação adicional interessante, a avaliação abrange também os cônsules de países estrangeiros aos quais se aplica, indistintamente, o juízo de revelarem o melhor carácter, probidade, religião e boas ideias consentâneas com o sistema político.

Em nota final está registado que o governador não remete informação sobre as ordenanças do Pico mas todas são de “costumes louváveis e dignos de estima”.

Entre esta documentação formal de circulação obrigatória e periódica para as instâncias da corte, em observância da lei régia, e o teor da burocracia que enxameava os circuitos ligando os governantes e magistrados insulares aos vários níveis – esta certamente mais realista e espelhando o dia a dia de uma administração incapaz e quezilenta – há uma diferença insanável. Em tese que analisa o desempenho da estrutura militar e da administração insular nas duas primeiras décadas do séc. XIX ( Costa , 2003), conclui-se que a avaliação se situa nos antípodas daquela a que a documentação que se utiliza neste estudo pode inculcar. De facto, nestes mapas de avaliação, não estão: (a) os corruptos, os incompetentes e os prepotentes; (b) os corregedores e juízes que os capitães-generais admoestavam frequentemente; (c) os magistrados a quem o capitão-general manda instaurar processos por peculato e contrabando e que, no desfecho, expulsa para o Brasil; (d) os vereadores faltosos e absentistas que em tempo de vindima inviabilizavam por meses o funcionamento municipal; (e) os juízes de fora, inconformados com a sorte que lhes cabia quando atirados para os confins de uma ilha, reincidentes nas ausências indevidas das suas respectivas jurisdições. Mas, na verdade, estavam presentes e activos na administração açoriana de Oitocentos.

Passando ao plano das coisas do mundo castrense, ocorre idêntica situação de desajustamento entre o quadro de uma avaliação formal e imposta, destinada à apreciação da corte e a realidade do quotidiano. Para exemplificar o fosso que separa o teor das informações comentadas e a realidade com que as autoridades se confrontavam, segue transcrição de parte de um longo ofício do capitão-general para o Visconde de Anadia, no ano de 1807, a propósito das ordenanças e das medidas que propõe:

“… mas o mal ficará sem cura perfeita se o dito Corpo [as ordenanças] não tiver Officiaes idóneos. Os actuaes são pela mayor parte incapacíssimos, e nomeadamente o Capitão Mor, e o Sargento Mor. Todos elles, ou quazi estão incursos na pena de perdimento dos Postos, huns porque entrarão para elles por meios illegaes, e sem as circunstancias que a Ley requer, outros porque por negligentes, e ignorantes desmerecem a honra de os servir” (BPARAH, 18 Julho 1806 - 8 Maio 1808: 117).

E noutro passo do mesmo ofício, referindo-se às condições indispensáveis dos que substituirão os que considera incapazes, acrescenta:

“…que unão á Nobreza bens sufficientes para decentemente se manterem, e o requisito de terem servido com prestimo nas Praças de Cadetes, ou de subalternos no batalhão que guarnece o Castello de S João Baptista desta Cidade, ou nas Guarnições dos castellos de S. Braz de Ponta Delgada, e de Santa Cruz da Vila da Horta” (BPARAH, 18 Julho 1806 - 8 Maio 1808: 117).

De novo, um quadro contrastante sobre o qual não se torna difícil fazer uma opção quanto ao que era, de facto, a realidade.

2. Rigor das normas e realismo das práticas

Nas considerações que seguem é tida em conta apenas a situação na tropa de milícias e ordenanças. Em trabalho anterior (C osta , 2003, I: 153 ss.) sobre os Açores no período final do governo de capitania-geral, ficou evidente a falta de qualidade destes corpos militares, nomeadamente quanto à oficialidade. Nesse trabalho está referido um ofício de 1807 do capitão-general, D. Miguel António de Melo, no qual informa ter dirigido ordens de natureza militar aos juízes de fora de Santa Maria, Graciosa e Flores, porque os capitães-mores não revelavam capacidade de as entender sem explicação verbal e circunstanciada. Em 1811, num registo consonante com o que acima está afirmado, o governador-militar de S. Miguel remetia ao general um requerimento do capitão de ordenanças da Ribeira Grande, Cosme Pimentel, informando sobre a incapacidade deste para ocupar aquele posto em virtude de não saber ler nem escrever, sublinhando tratar-se de alguém proveniente do ofício de cardador e que, por isso, não teria o respeito dos seus homens. Sobre este graduado da tropa de ordenanças, o governador acrescenta este pormenor: “é um grulha impertinente”.

Outro caso. Quando Alexandre Gamboa Loureiro, juiz de fora de Santa Maria no ano de 1800, diligencia no sentido de prover o posto de capitão-mor da ilha devido ao facto do titular de então estar incapacitado por doença, são as seguintes as candidaturas que submete ao capitão-general (C osta , 2003, I: 153):

– António Coelho, com cerca de 80 anos, por ser o capitão mais antigo mas que é “um pobre rústico que apenas sabe escrever o seu nome”;

– Luís Manuel de Figueiredo, também capitão de ordenanças, o qual, devido a “demência” está sob curadoria da esposa;

– Manuel José da Câmara Coutinho, com 28 anos de idade, igualmente com o posto de capitão e filho-família ainda sob o tecto paterno;

– Bernardo José Monteiro, outro capitão de ordenanças, que o juiz considera ser homem sério mas destituído de inteligência e incapaz de desempenhar cargos públicos “de consequência”. Residiria longe da vila vivendo de bens modestos e, no dizer do juiz, “com pouco esplendor”.

Mesmo numa ilha de maior importância no quadro da época, o Faial, no ano de 1807, dos 65 oficiais de ordenanças da ilha, apenas dois têm foro da Casa Real, 16 dedicam-se à vinicultura e os demais são detentores de terra, oficiais mecânicos e de outros ofícios.

Mais esclarecedores são os casos das vilas picoense das Lajes e da Madalena, em que os seus 56 e 33 oficiais de ordenanças, respectivamente, são quase todos lavradores de terras e vinhas, conforme a terminologia então usada (C OSTA , 2003).

Tudo isto pressupunha um processamento irregular na nomeação dos candidatos, envolvendo interesses e esquemas fraudulentos visando a obtenção de privilégios impeditivos do exercício de funções implicando maior responsabilidade e esforço, para além de propiciar uma verdadeira cadeia de perpetuação das elites locais, independentemente de ostentarem, ou não, estatuto de nobreza. Será, talvez, por este conjunto de motivações estranhas ao verdadeiro interesse da coisa pública, que o capitão-general Aires Pinto de Sousa, em correspondência de 1811 para o capitão-mor de Santa Maria, denuncia o facto de serem em maior número os postos de oficiais, sargentos e cabos do que os de soldados.

Aliás, não é surpreendente a clara transgressão das normas tão zelosamente estabelecidas pela corte quanto aos requisitos indispensáveis ao preenchimento dos postos de comando das ordenanças. Embora em termos meramente especulativos, seja possível admitir que a base de recrutamento seria efectivamente restrita. De um mapa do “Estado actual das Ordenanças da Ilha do Pico nas tres Capitanias Mores em que se devidem, Anno de 1803”, conclui-se que das 19 companhias de ordenanças apenas 9 têm preenchido o posto de capitão. É óbvio que à data da elaboração do mapa diversas circunstâncias poderiam concorrer para explicar o facto. Entre elas, não é de afastar a que foi apontada.

Esclarecedor quanto à qualificação social requerida, ou relativamente aos seus desvios, é o conteúdo de uma informação do governador do Faial datada do ano de 1821 em que, dos 27 oficiais de milícias, 13 não gozam do estatuto de nobreza. Note-se que os oficiais, que não são nobres, não têm ocupação, excepto o quartel-mestre que é negociante.

Dos dados apresentados podem ser formuladas algumas conclusões. A ideia de uma sociedade típica de Antigo Regime como modelo imediatamente extrapolável para o contexto açoriano, parece dever merecer alguma reserva. Se é certo que a ordem social vigente no arquipélago se conforma, em termos gerais, com o ordenamento jurídico da nação, não será menos ajustado pensar que as condicionantes locais moldam a realidade de cada ilha ou comunidade, impondo constrangimentos inelutáveis que a força dos normativos não logrará anular. A sociedade açoriana deste período é, por isso, e deste ponto de vista, algo atípica. O isolamento e a fraca atracção que algumas ilhas exercem na fixação das elites; a fragilidade demográfica inerente à sua própria dimensão; a distância a que alguns núcleos populacionais se situam dos centros urbanos mais atractivos – tudo isto pode impedir a estruturação de um tecido social compaginável com o modelo social em questão. Segundo este raciocínio, a base de recrutamento baseada nas elites rarefaz-se, inviabilizando a fidelidade preconizada em relação à pureza dos normativos emanados da coroa. A sociedade açoriana, deste ponto de vista, será uma sociedade híbrida, tolerando a este nível uma verdadeira promiscuidade social, certamente indesejada pelos governantes e pelos estratos de uma nobreza urbana mais ciosa dos seus privilégios e condição.

Notas

(1) 1 coronel, 1 tenente-coronel, 2 ajudantes, 1 quartel-mestre, 7 capitães, 9 tenentes e 6 alferes.

(2) 1 capitão-mor, 1 sargento-mor, 1 ajudante, 17 capitães e 19 alferes.

(3) Os avaliados são: 3 vereadores, 1 procurador do concelho, 1 tesoureiro, 1 escrivão da câmara, 2 almotacés, 2 guardas-mores da saúde, 1 distribuidor, contador, 4 escrivães do judicial, 1 escrivão dos órfãos, 3 advogados não bacharéis, 2 procuradores, 1 alcaide, 1 escrivão do alcaide, 1 porteiro e 12 juízes pedâneos.