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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

IDENTIDADE E AUTONOMIA
DO DISCURSO CONTESTATÁRIO À AFIRMAÇÃO IDENTITÁRIA NOS AÇORES
CARLOS CORDEIRO

Cordeiro, C. (2006), Identidade e autonomia. Do discurso contestatário à afirmação identitária nos Açores. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 237-249.

Cordeiro, C. (2006), Identity and Autonomy. From adversarial discourse to affirmation of identity in the Azores. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 237-249.

Carlos Cordeiro – Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais. Universidade dos Açores. Campus de Ponta Delgada. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada

 

Ao percorrer-se a imprensa açoriana da segunda metade do século XIX, a ideia que ressalta é a de um forte clima de contestação à política seguida pelo poder central relativamente aos anseios de população por condições de vida mais dignas. Com efeito, editoriais, notícias e artigos de opinião insertos em jornais de diversas ilhas defendiam que, injustamente, os Açores se mantinham bastante afastados dos patamares de desenvolvimento económico e social já atingidos pela sociedade continental, destacando, por exemplo, o investimento em obras públicas verificado na “metrópole”, sem correspondência nas ilhas dos Açores (Cordeiro , 1992: 86-115). Veja-se a passagem de uma intervenção, na Câmara dos Deputados, de Mendes Leal, deputado por um dos círculos eleitorais do distrito de Ponta Delgada: “Os povos insulanos, contribuindo há muito tempo para os grandes melhoramentos públicos, participando nos encargos que esses melhoramentos criam, pela sua própria situação geográfica nem os gozam na sua maior parte, nem os podem apreciar. As suas necessidades são outras. A ilha de S. Miguel intentou um grande melhoramento, o seu porto artificial, mas intentou-o à sua custa” ( A Persuasão , Ponta Delgada, 1869, Julho, 28). Alertava-se, ademais, para o excessivo peso da carga fiscal, as injustiças praticadas no recrutamento militar, a insipiência da instrução pública, a ineficácia da administração. A crise económica e social, já bem notória na década de 1850 com as doenças e pragas que destruíram os vinhedos e afectaram a produção da batata (João, 1991: 41-64; M acedo , 1981: 73-74; A Persuasão , Ponta Delgada, 1870, Janeiro, 25), as consequências económicas e sociais da crise, que se agravaria nas décadas seguintes, da produção e comercialização da laranja, esteio essencial da economia açoriana ( Dias, 1995), as dificuldades monetárias no distrito de Angra do Heroísmo ( João, 1991: 140-141; A Persuasão , Ponta Delgada, 1871, Janeiro, 25) reclamava uma actuação pronta e eficaz do Governo, que se considerava ter abandonado à sua sorte a população açoriana. O semanário O Atlântico , da Horta, em editorial de Fevereiro de 1870, não deixava de acusar o governo de haver descurado o apoio às populações açorianas em ocasiões de dramáticas crises de subsistência, lembrando, a propósito que o apoio viera dos Estados Unidos: “Tivemos fome e, enquanto recebíamos esmolas dos Estados Unidos, de Lisboa veio um navio carregado de milho para ser vendido pelo melhor preço do mercado» ( O Atlântico , Horta, 1870, Fevereiro, 24).

Os “clamores do povo” em defesa de melhores condições de vida aumentavam de tom, enquanto o conceito de “pátria madrasta” percorria inúmeras páginas da imprensa insular da época, com intuitos mobilizadores da população, visando a conquista de prerrogativas descentralizadoras. Com efeito, a imprensa constituiu veículo fundamental de difusão dos problemas que entravavam o desenvolvimento dos Açores, de crítica à prática centralizadora do Estado e de reivindicação de um reordenamento político-administrativo dos distritos insulares assente nos princípios da descentralização.

Desta crítica genérica à organização administrativa portuguesa passa-se ao aprofundamento do debate, centrando-o no caso específico açoriano. Assim, sublinhava-se a própria realidade geográfica – a distância relativamente aos centros de decisão sediados em Lisboa – o que exigiria a passagem de competências administrativas para as autoridades locais: “é por isso” – defendia O Atlântico – “que se pedem leis especiais para os Açores: daí vem a pretensão de sairmos fora das regras gerais, porque estas são formuladas e traduzidas em leis e regulamentos por quem ignora completamente as necessidades, hábitos e aspirações dos insulanos” ( O Atlântico , Horta, 1871, Abril, 6). Mas, esta necessidade de encontrar soluções que tivessem em conta as realidades insulares, ou seja, que saíssem “fora das regras gerais” da organização administrativa do País, não devia cingir-se às relações dos órgãos distritais com o Governo, mas estender-se à própria administração distrital: “assim se justifica – defendia o governador civil do distrito da Horta – […] a necessidade de delegar certos actos próprios do Governo Civil nas autoridades administrativas das ilhas das Flores e Corvo, e o retardamento na observância das ordens que dimanam do poder central” ( Relatório do Governador Civil do Distrito da Horta, 1859: 1). No fundo, do afastamento geográfico resultaria o esquecimento, o abandono a que fora votada a população insular que, por sua vez, como dizia o Governador Civil da Horta num relatório de 1869, manifestaria um “feio indiferentismo com relação aos destinos de Portugal”. Este relatório teve significativas repercussões. É que o Governador Civil, António José Vieira Santa Rita, afirmava ainda que o povo do seu distrito nutria grande simpatia pelos Estados Unidos, e que se ia “insinua[n]do lentamente a crença de que os Açores seriam mais felizes se formassem um estado daquela confederação” (“Relatório…”, 1870). A chegada ao porto da Horta de uma esquadra inglesa foi mesmo apontada como uma espécie de resposta a possíveis “apetites” dos Estados Unidos sobre as ilhas ( O Açoriano Oriental , Ponta Delgada, 1870, Março, 19; O Atlântico , Horta, 1870, Abril, 14).

Ora, este tipo de análise, que punha em causa os sentimentos patrióticos do povo açoriano, merecia constantes intervenções nas Cortes por parte de deputados que representavam os círculos eleitorais açorianos. Cândido de Morais, deputado pelo círculo da Horta, sublinhava a “idolatria” dos açorianos pelo seu país (aqui entendido como terra natal, a ilha), rebatendo, simultaneamente, interpretações negativas sobre o “espírito de nacionalidade” da população insular. E adiantava: “posso assegurar [...] que [os açorianos] são tão bons portugueses como os melhores portugueses [...], mas o que pretendem é ser tratados como tais” ( A Persuasão , Ponta Delgada, 1871, Janeiro, 25). Mas este género de intervenção não era suficiente para debelar as constantes críticas dos jornais à prática centralizadora do Estado: “somos um país conquistado e estamos debaixo duma tutela despótica” – proclamava-se n’ O Atlântico ( O Atlântico , Horta, 1870, Fevereiro, 24).

Ora, toda esta azáfama discursiva fora, no entanto, acompanhada por uma forte agitação social que percorrera, em especial, a década de sessenta, mas que já havia sido significativa na anterior, tendo como principais motivações as tentativas de impedimento da exportação de cereais, ou a contestação a medidas legislativas de carácter administrativo, fiscal ou económico que as autoridades pretendiam aplicar nos Açores (C ordeiro , 1992: 121-167). Alguns desses eventos assumiram proporções significativas, como o caso, em especial, dos acontecimentos no conjunto Faial/Pico, em 1862 ( M acedo , 1981: 292-296; C ordeiro , 1992: 137-150) e foram mesmo discutidos na imprensa nacional e internacional ( O Atlântico , Horta, 1869, Setembro, 2) e na Câmara dos Deputados ( A Aurora dos Açores , Ponta Delgada, 1863, Julho, 11). Uma outra questão que sobressai no debate político, nos finais dos anos 60 e inícios dos 70, é a que tem por pano de fundo o iberismo e sua discussão em Portugal. Assim, enquanto o nacionalismo intransigente reclamava o acompanhamento dos Açores nos destinos da Pátria comum, qualquer que fosse o futuro que a aguardasse ( Silva Júnior , 1871: 8), o certo é que a própria discussão, a nível nacional, da hipótese de união ibérica legitimava o surgimento de teses diversas sobre o futuro dos Açores, nessa eventualidade. Ao abrir este debate, alguns órgãos da imprensa açoriana passam, pois, a conceber a população açoriana como povo com identidade própria e, portanto, com capacidade decisória sobre os seus destinos, o que impunha o abandono do “indiferentismo” popular com que eram vividas as grandes questões de interesse regional, numa atitude acrítica de submissão às ordens emanadas do centro político nacional.

Refira-se, aliás, que o discurso “emancipador” assume, nas décadas de 60, 70 e 80 algum relevo em jornais de diversas ilhas, numa demonstração de profundo desencanto para com a política portuguesa relativamente aos grandes problemas insulares. As ideias de decadência da Pátria, de “desprezo” a que eram votados os Açores pela “mãe-pátria” e a expectativa na regeneração açoriana a partir da alteração do seu estatuto político, fundamentada na imagem da “emancipação” de uma “tutela” considerada “aviltante”, percorrem as colunas de diversos jornais açorianos, incluindo vários de cariz republicano. O jornal O Atlântico , da Horta, em diversos editoriais é bem o espelho deste sentimento. Referindo-se ao atraso no início das obras de construção do porto da cidade, escreve, em 1870: “E querem que depois de factos desta ordem o povo insulano tenha pela metrópole a mais acrisolada afeição, quando dela só nos vem encargos pesadíssimos, administração péssima e o maior desprezo pelos interesses das ilhas” ( O Atlântico , Horta, 1870, Novembro, 3).

E a centralização, ou “tutela despótica”, como a classificava o mesmo jornal, manifestava-se nos mais ínfimos pormenores, quer na actividade da administração local, quer no dia-a-dia dos cidadãos. Não se tratava somente da nomeação das autoridades nem tampouco dos mais simples funcionários, que tudo julgavam conhecer sobre as realidades locais. Era a própria essência do regime liberal que estaria em causa: “Da capital até nos vem os nomes dos indivíduos que devem representar os povos deste distrito em cortes!! É mais uma beleza da centralização administrativa, que torna o governo senhor absoluto de tudo, alterando o sufrágio popular por intervenção da magna corte dos seus agentes oficiais e oficiosos, constituindo uma cadeia de ferro, fora da qual não há iniciativa que prospere nem vontade que resista, ainda que tenha um fim de utilidade pública” ( O Atlântico , Horta, 1870, Fevereiro, 24). Na última década do século XIX, esta “noção ressentida da diferença” terá a sua tradução política num movimento autonomista organizado, que alcança êxitos eleitorais significativos. A via seguida por esse movimento não conseguiu alcançar os desígnios dos que propugnavam por uma verdadeira unidade açoriana, que tivesse expressão na organização administrativa dos Açores. Era esta, aliás, a posição de um jornal do Pico, quando reflectia sobre a possibilidade de o projecto descentralizador apresentado pela comissão autonómica do distrito de Ponta Delgada não conseguir suprir as razões de queixa das ilhas onde não se situavam as capitais distritais: “Concedendo-se a autonomia dos distritos e concentrando-se nas respectivas sedes toda a vida administrativa

– quem nos assegura que as capitais não farão connosco partilhas leoninas? Quem nos assevera que não ficaremos, em relação a elas, na mesma situação em que presentemente nos encontramos perante o governo central?” ( O Lajense , Lajes do Pico, 1893, Abril, 29). Meses depois, o jornal é ainda mais crítico: “Até aqui estávamos na exclusiva dependência da metrópole. Agora, além dessa dependência, é-nos imposta a das capitais dos distritos, que não nos hão-de ser madrastas menos cruéis! Simplesmente uma questão de mudança de tutor” ( O Lajense , Lajes do Pico, 1893, Junho, 10).

A palavra de ordem “livre administração dos Açores pelos Açorianos”, lançada pelos autonomistas de Ponta Delgada, quedou-se pela possibilidade de administração autónoma, muito limitada, de cada um dos distritos insulares que solicitassem a aplicação do Decreto de 2 de Março de 1895. E se os distritos de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo solicitaram, ainda que desfasados no tempo, a aplicação das faculdades administrativas previstas naquele decreto, o certo é que o da Horta o não fez. Segundo o editorialista do jornal O Açoriano , da Horta, ao analisar o projecto de 1893 da Comissão Autonomista de Ponta Delgada, ainda que a perspectiva da descentralização e da consequente maior liberdade fosse considerada positiva, a crise económica e social que assolava as ilhas do distrito impunha um olhar muito pragmático sobre as reformas necessárias visando a melhoria das condições de vida das populações, de modo a diminuir drasticamente a emigração: os direitos alfandegários sobre os géneros de primeira necessidade, a lei de recrutamento militar, os impostos. Ora, a autonomia distrital, como fora concebida pela Comissão Autonomista de Ponta Delgada, em nada contribuiria para solucionar estas questões, além de não permitir desenvolvimento das obras públicas, pela exiguidade das receitas locais ( O Açoriano , Horta, 1893, Junho, 11).

A confraternização açoriana, exaltada como fundamental para a construção e consolidação da unidade açoriana, havia falhado nos seus objectivos, gorando expectativas, como as expressas num jornal do Pico, de 1892: “Os continentais não vêem, indubitavelmente, com bons olhos a atitude patriótica dos Açores. Estimariam imenso ver-nos separados, para nos continuarem a explorar. É bom, pois, que todos se compenetrem disso e inspirem os seus actos no mais acrisolado patriotismo, dando força e protecção a tudo quanto for açoriano e sabendo, ao mesmo tempo, ser superior às perfídias dos nossos inimigos” ( O Lajense , Lajes do Pico, 1892, Novembro, 12).

O jornal O Atlântico , da Horta, em Março de 1895, encontrava na unidade açoriana um desígnio verdadeiramente patriótico: “Sim, no dia em que os açorianos se entenderem, Portugal receberá um concurso de forças bem mais valioso do que até agora, e com ele mais cedo reassumirá o seu papel de nação honrada” ( O Atlântico , Horta, 1895, Março, 31).

Entretanto, o discurso autonomista foi sendo aperfeiçoado e aprofundado. O seu carácter negativo, ou seja, a fundamentação com base, sobretudo, na ideia de tratamento desigual e injusto da população açoriana relativamente à do Continente foi, então, sendo acompanhada e enriquecida por argumentos colhidos na Filosofia Política e no Direito Comparado, mas, também, por alegações que já apelam às noções de “insularismo” e de identidade.

Esta identidade, ou a emergência de “interesses, tradições, costumes, aspirações próprias e peculiares” ( M ota , 1903: 84) exigia tradução num sistema político-administrativo autónomo, consubstanciado na palavra de ordem “livre administração dos Açores pelos açorianos”. Os autonomistas defendiam que a descentralização garantiria o reforço da unidade nacional, a igualdade entre todos os cidadãos portugueses e o desenvolvimento sustentado do arquipélago.

E se, naturalmente, eram as questões de natureza pragmática que concitavam as atenções gerais, não deixa também de ser significativo o facto de o movimento autonomista ter sido acompanhado por debates culturais, nomeadamente, sobre a problemática da literatura açoriana. Armando da Silva, ainda que reconhecesse que os Açores não possuíam uma literatura “propriamente sua”, porque, lhes “faltava ainda o indispensável vínculo moral de um espírito nacional”, não deixava de defender a importância da literatura no processo identificador dos povos, considerando que via já, no caso dos Açores, alguns indícios de que a literatura enveredaria pela caracterização social e histórica do povo açoriano ( S ilva , 1893 a ). Três anos depois, analisa a situação da literatura açoriana em tom bastante crítico: “Porque não cantam os poetas açorianos as paisagens das suas terras encantadoras, o mar que bate e geme ao longo de todas essas abruptas costas? (...) Sejam os poetas açorianos, em vez de pasticheurs sem imaginação nem originalidade, poetas dos Açores. Serão maiores desse feitio, apesar do Arquipélago ser muito pequeno” ( S ilva , 1893 b ).

Nas segunda e terceira décadas do século XX, o movimento regionalista açoriano alarga o âmbito do debate sobre as realidades políticas, económicas, sociais e, dum modo muito especial, culturais insulares. Encetava-se, no fundo, um projecto de “introspecção açoriana”, que envolveu intelectuais, políticos, jornalistas, empresários, elementos do clero, entre outros, que almejavam a “construção” de uma verdadeira consciência açoriana , entendida, em linhas gerais, como a substituição dos interesses particularistas de cada uma das ilhas pelos valores da unidade e solidariedade açorianas.

Com efeito, a ideia de realização de um congresso açoriano é retomada periodicamente, no seguimento de um primeiro projecto lançado pelo jornal A Persuasão , em 1881 ( A Persuasão , Ponta Delgada, 1881, Fevereiro, 16), que espelhava a necessidade de estudo e reflexão sobre o clima de crise económica e social que assolava a sociedade açoriana da época ( F lores , 1991: 83-85). Em 1908, como em 1912-13, 1916, ou 1920-21, alarga-se o âmbito do dos temas a debater, com uma preocupação sempre presente: a da construção da unidade e solidariedade açorianas. Assim, para Luís Ribeiro, que relançara, em 1920, a questão da possibilidade de reunião de um congresso açoriano, a unidade do povo açoriano, ou, ao menos, a aproximação das populações das diversas ilhas, seria atingida através do estreitamento dos afectos mas, sobretudo, pela actuação sobre os interesses. Só assim o “espírito açoriano” seria duradoiro. Havia, pois, que estudar o modo de defender os interesses comuns a todas as ilhas, por exemplo, sobre a possibilidade de criação de empresas exclusivamente açorianas, que conseguissem envolver os interesses das populações das diversas ilhas. Criticava, fortemente, a tendência para a monocultura e defendia, ao invés, a diversificação da produção, com vista a haver resposta ao mercado regional. Assumindo uma posição pessimista sobre a evolução da situação a nível nacional e internacional, e não vislumbrando indícios de regeneração da pátria, Luís Ribeiro acreditava, todavia, que a unidade açoriana propiciaria a possibilidade de os Açores virem a influenciar a construção das grandes opções nacionais e internacionais. Isto passava pela prévia construção de um verdadeiro “espírito colectivo”, quanto mais não fosse, por uma questão de “consciente solidariedade” entre as populações das diversas ilhas ( Correio dos Açores , Ponta Delgada, 1920, Novembro, 11). Também da Horta, a propósito da visita do Fayal Sport a S. Miguel, se reiterava a opinião de que a unidade e solidariedade açorianas só seriam possíveis a partir de projectos e realizações que aproximassem os açorianos, cimentando laços afectivos entre as populações das diversas ilhas: “Nós, açorianos, isolados, perdidos entre o Velho e o Novo Mundo, vivendo tão próximo uns dos outros e uns dos outros quase ignorados, devíamos tornar mais íntimas as nossas relações para que, conhecendo-nos melhor, nos estimássemos mais. Que sejam, pois, os novos que, pelos meios ao seu alcance – os desportos – consigam o que até hoje pouco mais tem sido do que uma aspiração nunca realizada de quase todos os açorianos” ( O Telégrafo , Horta, cit. em Correio dos Açores , Ponta Delgada, 1924, Abril, 9).

Em todo este movimento regionalista avulta, como se referiu, o interesse pelas questões culturais, enquanto elementos fundamentais de definição da identidade açoriana.

Ao invés, porém, de a temática “identificadora” assumir contornos de índole antipatriótica, a generalidade dos textos apresenta uma feição profundamente nacionalista, ao defender que a “peculiaridade” do povo açoriano, a alma açoriana , constituía uma espécie de particularidade da raça . Com efeito, a raça – concebida como as características próprias e específicas do povo português, formadas e cimentadas ao longo da História e que lhe conferiam um modo de ser e uma missão especial no contexto das nações – tivera nos Açores condições especiais para manter uma genuinidade que se teria esbatido no Continente. O povo açoriano, nesta perspectiva, era apontado como o mais autêntico representante da raça , ainda que se não deixasse de reconhecer, na definição da identidade açoriana, a influência do ambiente específico insular e da evolução da História da sociedade açoriana. Luís da Silva Ribeiro, na importante conferência proferida em 1919, em Angra do Heroísmo, numa cruzada contra os ideais separatistas, destacava que o isolamento não permitira “o cruzamento de indivíduos de raças diferentes, limitando, assim, a assimilação de costumes, ideias e sentimentos estrangeiros”. Assim, os habitantes teriam mantido os seus caracteres próprios, sofrendo o influxo do meio e sobre ele reagindo, num processo evolutivo que, todavia, não conduzira à “desnacionalização”. Assim, Luís Ribeiro não tem dúvidas em concluir que o açoriano era o “português puro”, “mais e melhor português” do que o povo continental (R ibeiro , 1983: 5-6).

Ora, este tipo de argumentação, fundamentado na ancestralidade e “pureza” da herança, mantida intacta, da alma portuguesa , sobrelevada nas suas virtudes mais nobres e demonstrada em episódios dramáticos da história nacional – em especial, a resistência ao domínio filipino e a defesa dos princípios liberais – constituiu, ao longo dos anos 20, como o fora em finais do século XIX, uma espécie de “modelo” do discurso a que os regionalistas e os autonomistas recorriam na crítica às tendências centralizadoras do Estado e, por outro lado, na afirmação da identidade açoriana.

É neste contexto que se pode compreender a passagem do discurso impressionista de exaltação das qualidades particulares do povo açoriano, à defesa da urgência do estudo e preservação dos traços fundamentais da cultura popular, pois só assim seria possível definir e fundamentar a verdadeira alma açoriana .

Seguindo, aliás, a tendência geral europeia, segundo a qual a essência profunda da identidade nacional se encontraria na cultura popular, e inserindo-se no contexto do desenvolvimento dos estudos etnográficos que se verificava a nível nacional, intelectuais, políticos e jornalistas açorianos sobrelevam a importância do isolamento insular como dique de contenção da “onda desnacionalizadora” que se estaria a verificar no País. Mesmo assim, Armando Côrtes-Rodrigues, por exemplo, demonstrava já preocupações relativamente ao que designava por americanismo que grassara a partir da emigração para os Estados Unidos. O americanismo , na sua opinião, invadira aspectos essenciais da vida açoriana, descaracterizando-a na linguagem, no vestuário, na mobília e utensílios domésticos, na utilização de símbolos como a bandeira e, sobretudo, no próprio sentimento popular, “tornado egoísta, feito de desconfiança e de vaidade pela longa permanência no meio hostil do estrangeiro, onde mais duramente pesa a solidão do exílio” – em todos esses aspectos procurava-se descortinar a influência do americanismo . A cultura popular sofrera, pois, amputações de vulto, tanto mais importantes quanto depositária e veiculadora do legado de um passado verdadeiramente lusitano que, pelo isolamento, se havia conseguido manter nos Açores. À perda da tradição correspondia a perda da personalidade , ou seja, da alma do povo que, desenraizado, caminharia para o aniquilamento ( C ortes -R odrigues , 1922).

A “questão da literatura açoriana”, ainda que provinda já de finais do século XIX, assume, nesse período, grande destaque no debate cultural, na medida em que os regionalistas a concebiam como instrumento essencial de divulgação dos valores dessa alma do povo açoriano, muito mais do que simples repertório da paisagem ou descritiva dos costumes açorianos. Luís Ribeiro, por exemplo, apresenta uma visão dupla do modo de conceber a “arte regionalista”. De um lado, o modo “objectivo”: a paisagem, os costumes, os trajes das ilhas. Do outro, o “subjectivo”, ou seja, a interpretação artística da “psicologia popular” e da “alma açoriana”. A verdadeira literatura açoriana seria aquela que expressasse equilibradamente estas duas vertentes da realidade insular. Ora, isso exigia a convivência constante do escritor com o povo e um grande poder de observação, de modo a compreender os sentimentos do povo e a expressá-los literariamente ( Correio dos Açores , Ponta Delgada, 1923, Maio, 6).

O reconhecimento da identidade açoriana, ainda que essencial, não garantiria, todavia, um futuro de desenvolvimento harmónico dos Açores. Isto implicava a “construção” de uma verdadeira consciência açoriana que substituísse ao particularismo a defesa da unidade do Arquipélago; aos interesses de cada ilha a prática da solidariedade interinsular; às rivalidades ancestrais a confraternidade açoriana . Compreende-se, assim, a primazia conferida a iniciativas que contribuíssem para o estreitamento dos laços afectivos que deviam unir os açorianos das nove ilhas. Aqui se enquadra o movimento da confraternidade açoriana , provindo já de finais do séc. XIX. Intercâmbios desportivos, visitas turísticas, embaixadas culturais enquadravam-se num esquema geral de actuação a favor da unidade e solidariedade açorianas – “a convivência que conduz ao conhecimento, o conhecimento que impele à amizade, a amizade que leva à união e a união que [...] trará a força” como referia, em 1924, um jornal faialense, ao propor a realização de um congresso da imprensa açoriana ( A Democracia , Horta, 1924, Maio, 20). Assim, os regionalistas viam neste tipo de actividades não um fim em si mesmas, mas instrumentos eficazes de reforço da unidade açoriana, condição essencial para o desenvolvimento das ilhas e melhoria das condições de vida da sua população. Procurava-se, pois, esbater rivalidades de toda a ordem que entravavam a conjugação de esforços de elementos de elites políticas, culturais e empresariais de diversas ilhas, visando o desenvolvimento integral dos Açores. Isto só seria possível se a população passasse a conceber os Açores como “expressão duma identidade ou comunidade de interesses e sentimentos” – nas palavras de José Bruno Carreiro – e não só como uma unidade geográfica ( Jornal dos Açores , Ponta Delgada, 1926, Outubro, 2). Neste sentido, não deixa também de se salientar a importância das questões económicas. A transformação da sociedade açoriana no caminho do progresso teria de se verificar, na opinião de alguns intervenientes no debate, antes de mais, na componente económica e, concomitantemente, nas condições de vida da população.

Se, na definição de Claude-Gilbert Dubois, identidade regional é «a consciência que os homens têm de partilhar um certo número de bens, recordações e valores comuns, de maneiras de viver, de referências a um discurso que reenvia a imagens familiares» ( D ubois , 1991: 16), o movimento fraternidade açoriana poderá, pois, ser entendido precisamente nessa perspectiva de construção dum sentimento de corregionalidade que forja a identidade regional.

Já nos anos 20, o jornal Correio dos Açores conjugava nas suas colunas o vigor da reivindicação administrativa com a divulgação de temas ligados à cultura e à questão da identidade açoriana , da autoria de alguns dos mais destacados intelectuais da época.

O regionalismo, inserindo-se num vasto movimento que remete para as ideologias nacionalistas, procura desenvolver na sociedade açoriana um tipo de comportamento, uma espécie de “visão do mundo”, assentes na ideia base “a região em primeiro lugar”. Nesta perspectiva, o regionalismo, procura abarcar todas as vertentes da vivência açoriana, ao nível social, etnocultural, económico, político, propondo a “introspecção” como condição essencial para “regeneração” da sociedade açoriana. As propostas em torno da realização do Congresso Açoriano, que percorrem os anos 10 e 20, mas cuja concretização só se verificou em Lisboa, em 1938, são bem o exemplo desse afã em busca do auto-conhecimento da sociedade insular para a construção da unidade e solidariedade açorianas.

O recurso à História e o apelo ao regresso à tradição; as preocupações pela preservação do património etnográfico e artístico; a exaltação dos valores patrióticos integra esse discurso regionalista que, na sua vertente mais conservadora, invoca os valores da ordem e da disciplina sociais.

Nem sempre as posições regionalistas objectivam a fundamentação e legitimação de reivindicações descentralizadoras. Descentralizadores, autonomistas, federalistas não deixarão, porém, de aproveitar muita da argumentação regionalista na fundamentação das suas propostas, acrescentando o cimento da “identidade” às “evidências vivas e indestrutíveis” impostas pela natureza. Mesmo assim, quando as circunstâncias o impuseram, o discurso pragmático da eficácia administrativa chegou a omitir referências à questão da identidade, tão laboriosamente debatida ao nível das elites intelectuais.

Horta, 14/10/05

 
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