::: ::: :::MARIA AZENHA

é isto o que nos resta, Du Xinjian?

escrevo –Te bilhetes na alma dos espelhos

nem sempre as palavras chegam

há fotografias como punhais

entrarei em minha casa

há fotografias como punhais

há fotografias como punhais

e poemas também

todos os poemas que escreverei já foram escritos

dou-me apenas ao ofício das trevas

de os escrever em pedaços de argila

neles estão impressos a chuva e o vento

e as folhas noviças dos séculos

e o meu pai e a minha mãe que já partiram

esvoaçando num passado remoto

e também a rapariga feia e bela

e desfigurada pela varíola

que nunca fora amada porque não era bela

e que numa noite na taberna de Vladivostoque

se ofereceu derradeiramente a Joseph Kessel

talvez pouca gente saiba deste verso

que nunca foi escrito deste modo

e que foi acontecido durante a guerra sino-japonesa

quase ninguém esteve lá mas eu estive

trouxe-o comigo

é exactamente por isso que os meus poemas

escritos em verso já foram todos escritos

são como chagas alastrando e crescendo

em cristais do fogo

e o recinto do seu destino

está entre a terra e as estrelas

sei apesar de tudo porque li Juan Gelman

que cada lágrima é um problema insolúvel

 

maria azenha

2005,julho,lisboa