MARIA AZENHA
abria o peito e via o mar
 
trazia nos cabelos uma estrela
abria o peito e via o mar
era um país feito de cidra e vento
enquanto na boca trincava rosas
era um país de luar

um país de lábios cortados
dentro da sua própria voz
era um país da mais negra solidão do mar
era um país sem asas
um país sob o fio duma espada
um país que não voava
que não cantava
não cantava
trazia a boca em silêncio amordaçada
a boca de Inês cheia de rosas

não era um pássaro não era nada
era o vento que assobiava fora das janelas
que enchia a tarde de palavras carregadas
e ardia ardia no ar imenso
trazendo pela mão a teia das rosas
feitas com o sal das lágrimas

era um país sem sol um país doente
cantava no fundo do mar
cantava
cantava
cantava a acordar dum pesadelo

um dia este país ele viu nas ruas
todos de mãos dadas como um rio
poemas nascerem dos cravos
dos autocarros
era um país de abril
um país novo
um país sem pesadelos

hoje voltaram os velhos do Restelo
primeiro eles nada disseram
foram crescendo entre as ervas
pouco a pouco sem ninguém dar conta
começaram a esconder certas palavras
abril foi-se perdendo

é preciso cantar cantar
cantar para para não adormecer
escrever as palavras sem medo
com o sonho bem aberto
com o sonho bem concreto
escrever a palavra amor liberdade luz
em todo o lado na boca nos tectos
nos quartos
nas mãos nos espelhos nos autocarros
escrever escrever e não esquecer

voar como uma ave

maria azenha
2005, fev. 18, lisboa