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MARIA AZENHA
A chuva nos espelhos
A CHUVA NOS ESPELHOS - INDEX

e de tudo os espelhos são a invenção mais impura”

( H. Hélder)

vai chover.
São quatro ou cinco da tarde.
Sentada, na saleta, o relógio de parede não pára de ir lendo em voz alta

o tempo...em vozes, rezas ritmadas, talvez, quem sabe, a Santa Bárbara...

- Já chegaram?, pergunta Perpétua, encostada à tábua de passar a ferro.
Não respondo.
Levanto-me, dou uma volta pela sala, e penso que nunca terei tempo para responder a Perpétua, oscilante intervalo entre a roupa branca e o céu...

Ouço as batidas do relógio, agora, mais fortes.
Sento-me, no sofá, novamente.
Verdi consola- me, o céu frio está prestes a desabar.
O espaço vazio deixado , lá dentro, por Lília, é ocupado pela professora de Secretariado, que veio estagiar para Lisboa- uma cabeça cheia de demoras, melindrosas pálpebras, ou talvez uma actriz trágica, com a irmã dependente de drogas e a mãe, que lhe deixara por herança cuidar de todos no fulgor de cada instante...
Um pouco perturbada , pela cor do céu, e por Lília, ausente,

deixo-me escorregar pelos símbolos da sala, que me protegem da indiferença, quase anónima, do mundo.

Aconchego, um pouco mais, ao colo, a " Carta ao Futuro" de Vergílio, que pousa entre as minhas mãos, e estou a ler.
Perpétua, como uma tempestade, interrompe este silêncio e interroga-me:

- Acredita, mesmo, que há morte?

Fecho os olhos para ver.
Às vezes pousa em mim uma nuvem vagarosa ou uma palavra que não sei dizer...

A voz de Perpétua não se distingue mais da minha.
Há momentos no relógio em que as horas ou as perguntas ficam sem corda.
E o silêncio instala-se como um mistério da rotina.


Perpétua habita as minhas roupas, perfuma-as com as suas perguntas sem respostas, respira a minha vida, fazedora de chuvas com borrifos d'água…
Sobre elas repousa a pele de um bébé, que abrigo dentro , engelhada, a quem ela acaricia com o calor das mãos do ferro quente.

Ela conhece as estrelas da tristeza,
o fio de luz que conduz o poema ao vento,
a simplicidade das papoilas

as lágrimas das pombas,

no palácio dos campos.

Continuo a ler, de Vergílio, " Carta ao Futuro"…
”e de tudo os espelhos são a invenção mais impura”…