A TEORIA DOS TEMPERAMENTOS NA LITERATURA JESUÍTICA, NOS SÉCULOS XVI E XVII
Marina Massimi
Departamento de Psicologia e Educação, FFCL, USP, Ribeirão Preto

Introdução.

O conhecimento da personalidade humana no pensamento e na prática dos jesuítas dos séculos XVI e XVII é elaborado com base na tradicional teoria dos temperamentos. Esta teoria originou-se na interseção entre filosofia natural e patologia médica, a partir das doutrinas dos filósofos gregos Empédocles e Pitagóras e do médico Hipócrates. Fundamentava-se numa classificação quaternária do cosmos, que estabelecia quatro tipos de temperamentos, conforme à predominância no organismo de um entre os quatro componentes líquidos (=humores) que determinam a compleição do mesmo: a bílis amarela, a fleuma, o sangue, a melancolia ou ‘atra bílis’. Por sua vez, haveria uma correspondência entre os quatro humores, os quatro elementos físicos constitutivos da realidade (fogo, água, ar, terra), as estações do ano (verão, inverno, primavera, outono), as idades da vida (maturidade, velhice, juventude, envelhecer), as horas do dia (o meio dia, a noite, a manhã, o entardecer), e os planetas (Vulcano, Netuno, Minerva, Saturno). Nesse quadro, a prevalência da bílis amarela determina o temperamento colérico, a prevalência da fleuma determina o temperamento fleumático, a prevalência do sangue, o sangüíneo, e a prevalência da melancolia, o temperamento melancólico.

Os humores eram considerados como os fatores ‘responsáveis’ seja pela saúde seja pelas doenças do organismo. A “complexio sanguinea” era geralmente considerada pelos médicos como a mais saudável, e por outro lado, a compleição melancólica era julgada como a mais doentia, sendo acompanhada por distúrbios psíquicos em diversos graus (medo, depressão, delírio). Esta caracterização psicológica do melancólico depende da qualidade própria da atra-bilis de influir sobre os estados de ânimo. Os excessos na quantidade e no estado térmico deste humor seriam a causa da loucura, sendo que a genialidade seria devida à predominância moderada do humor e ao seu estado térmico temperado. A ambigüidade dos sintomas psíquicos da melancolia tornara pouco claro o limiar entre doença e normalidade, entre disposição e moléstia, sendo o tipo melancólico cada vez mais retratado pela literatura médica, em termos psicológicos (Klibansky, Panofsky e Saxl, 1983).

Gradualmente, a todos os humores é atribuída a capacidade de determinação psicológica inicialmente reconhecida apenas à melancolia. O médico romano Galeno, no primeiro século depois de Cristo, sistematiza esta visão psicossomática afirmando que os quatro humores contribuem à determinação das qualidades morais e mentais dos indivíduos. Deste modo, ao longo da Idade Média, abriu-se o caminho para a transformação da doutrina dos humores numa teoria psicológica dos caracteres e tipos de personalidades. Todavia, segundo Klibansky, Panofsky e Saxl (1993), agente desta transformação não foi propriamente a Medicina e sim a Filosofia escolástica. Esta relacionara a teoria dos temperamentos ao dogma teológico do pecado original, atribuindo assim aos humores uma significação moral. A Idade Média incumbiu-se também das traduções nos idiomas vulgares e da difusão da teoria dos temperamentos, de forma a incorporá-la no patrimônio da cultura popular e da medicina prática.

A leitura humanista e renascentista da teoria dos humores é exposta no De Vita Triplici de Marsilio Ficino, onde propõe-se uma síntese entre teorias médicas e neoplatonismo. As “receitas” médicas indicadas por Ficino, expressam uma utilização prática da teoria dos temperamentos, objetivo este que reencontraremos também na literatura jesuítica. No Livro II, por exemplo, Ficino (1995) afirma destinar seus conselhos para os homens que queiram ser úteis à humanidade, na vida civil e na vida particular. A novidade principal introduzida por Ficino com relação à teoria dos temperamentos é a valorização da compleição melancólica, enquanto favorável ao cultivo da vida espiritual. Por outro lado, Ficino estabelece uma relação entre a diversidade dos caracteres individuais e as condições internas e externas ao organismo, relação esta reafirmada não apenas por Ficino, mas também por vários autores humanistas (entre outro por Luís Vives, no tratado De Anima Et Vita, 1538).

Os tratados De habitu et constitutione corporis quam Graeci crasis, trivilaes complexionem vocant (1561) e De gli occulti miracoli et varii ammaestramenti delle cose della natura con probabili ragioni e artificiosa congiettura confermati (1563) do médico holandês Levinio Lemnio, documentam a persistência da tradicional teoria dos temperamentos na cultura médico-científica do século XVI.

Lemnio enfatiza que os sujeitos vivificam as paixões com diferente intensidade, dependendo de seus temperamentos: se este fato justifica a necessidade de se conhecer a compleição de cada indivíduo, é porém verdade que a personalidade humana é sujeita a outras e múltiplas influências. A consideração das diversidades humanas e de suas causas abre então a perspectiva para a necessidade da prevenção, por um lado, e para a possibilidade de modificações da personalidade, por outro. Lemnio enfatiza a necessidade de levar em conta todos os fatores que determinam o estado psicofisíco do sujeito e suas combinações. Com efeito, se é verdade que temperamento, fatores astrais e climáticos, alimentação e tipo de atividade, influenciam-se reciprocamente e modificam o estado subjetivo e orgânico da pessoa, é evidente que o conhecimento e uma boa combinação de tais fatores, contribuirão para o bem estar individual e social.

Ainda mais explicitamente aparece a construção deste tipo de saber no tratado de Lemnio De habitu et constitutione de 1561. Trata-se de um tratado de medicina do corpo e do animo, conforme declara o próprio autor no Prefácio da obra. A necessidade de investigar acerca de si mesmo e de considerar e eventualmente modificar as condições internas e externas que influenciam o próprio bem-estar (“ciascuno possi medicare se stesso”, p. 3; “ciascuno investighi con se stesso”, p. 5) é afirmada explicitamente e repetidamente ao longo do tratado. Da mesma maneira, é enfatizado o papel do processo de educação que possibilita a modificação do temperamento.

Observa-se, nesse sentido, uma importante transformação na visão dos temperamentos, não mais concebidos como fatores imutáveis, e uma atenção nova à combinação e modificação das circunstâncias para melhorar as condições de vida.

A teoria dos temperamentos é utilizada também por outro médico muito famoso na Europa quinhentista, Andréa Bacci (1524-1600), que inclusive parece ter influenciado diretamente, o pensamento e a prática dos jesuítas, por ter sido professor do Colégio Romano. Autor de vários tratados médicos, Bacci elaborou, entre outros, três ‘taboas sinópticas’, entre as quais a De ordine universi et de principiis naturae as imitationem Timaei Platonici (Roma, 1585), hoje conservada na Biblioteca Angélica de Roma. Nela é representado o homem enquanto microcosmo e curiosamentre comparece na margem inferior o emblema da Companhia de Jesus. Provavelmente, Bacci desejara fazer desta tábua um instrumento pedagógico para o uso no Colégio Romano da Companhia (Saffrey, 1994). Bacci sintetiza a antropologia aristotélica e a platônica e baseando-se no lema “omnis virtus a coelo influit”, atribui à influência dos planetas a composição dos humores em cada indivíduo.

E’ esta nova mentalidade, toda humanista, que parece permear o uso da noção de temperamentos que aparece na literatura jesuítica elaborada nos séculos XIV e XVII. Trata-se de uma utilização dos conhecimentos médicos, voltados para fins práticos, preventivos e formativos. Aplicar este tipo de conhecimento à vida do indivíduo e da comunidade contribuiria para o bem estar de cada membro e do grupo e melhoraria com certeza a eficácia da ação da Companhia nos diversos ambientes de sua missão. Não nos surpreende, portanto, o fato de que Inácio de Loyola e seus sucessores, tenham introduzido estes recursos na proposta de formação e na organização da vida da Companhia, ainda mais se considerarmos o fato de que esta era destinada a estar presente nos mais diversos contextos geográficos, climáticos e sociais.

1. A teoria dos temperamentos nos tratados jesuítas.

O conhecimento do homem, na cultura jesuítica, enquadra-se no contexto teórico do referencial aristotélico-tomista. Nos tratados filosóficos elaborados pelos jesuítas, o conhecimento do temperamento é considerado com parte do estudo da alma (“anima”): assim, por exemplo, afirma Pedro Gomez, Vice-Provincial da Companhia no Japão, autor de um Breve Compendium eorum quae ab Aristolele in tribus libris de Anima et in Parvis Naturalis dicta sunt, escrito em 1593 e destinado ao uso das missões no Japão (manuscrito n. 426, Reg. Lat. da Biblioteca Apostólica Vaticana, 134 folhas, capítulo 9); e análoga posição encontra-se nos Commentarii Conimbricensis Societatis Iesu In Tres Libros de Anima (1602), no Livro I capitulo I.

No Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In Libro de Generatione et Corruptione Aristotelis Stagiritae nunc recens omni diligentia recogniti et emendati, (1607), no Livro II, capítulo VIII, Quaestio I, articulo II, discutem-se as teorias dos médicos e dos filósofos acerca da diversidade dos temperamentos (Temperamentorum differentiae quae et quales sint, pp. 661-664). Entre outros, são citados Galeno, Averroés, Avicenas. A primeira diferença a ser estabelecida é entre o temperamento uniforme e o temperamento disforme. No temperamento uniforme, todas as quatro qualidades (calor e frio, úmido e secura) estão presentes em igual proporção. No temperamento disforme não há distribuição equilibrada das quatros qualidades.

Entre os temperamentos disformes, há quatro tipos: o temperamento colérico, onde prevalecem o calor e a secura, o temperamento sangüíneo, onde prevalecem o calor e a umido, o temperamento fleumático, onde há excesso de frio e úmido, o temperamento melancólico, onde predominam o frio e a secura. Além disso, todavia, existe uma grande variedade, conforme a combinação quantitativa das quatro qualidades. Por exemplo, no temperamento colérico onde prevalece a combinação de calor com secura, pode predominar a secura (ter-se-á então o temperamento colérico-melancólico), ou o calor (ter-se-á então o temperamento colérico-sanguíneo). Os autores Conimbricences alertam também acerca do fato de que o sujeito pode não conservar, ao longo de sua existência, o temperamento que herdou de seus pais, devido às mudanças internas ou externas ao próprio organismo.

No Livro II, capítulo VIII, Quaestio III, o texto discute acerca do tipo de temperamento que seria mais propício à excelência do engenho e à perspicácia da mente (Quodnam temperamentum ad excellentiam ingenii et mentis perspicaciam magis idoneum sit, 1607, pp. 685-691). Os Conimbricences afirmam que, apesar do humor melancólico ser considerado por Aristóteles (Problemata, XXX) o mais favorável para o desenvolvimento das atividades intelectuais, o melhor temperamento seria o colérico-melancólico sendo que a constituição colérica favorece o empenho e a velocidade da ação e da percepção o calor do componente colérico temperando assim os efeitos negativos da atrabilis preta.

No mesmo texto, os Conimbricences recusam a teoria da determinação absoluta das diferenças individuais pelos fatores humorais, e nisto os jesuítas parecem distanciar-se da tradição galénica ortodoxa, frisando o papel da responsabilidade do sujeito no que diz respeito ao aperfeiçoamento, ou a correção de suas inclinações.

O conhecimento da teoria dos temperamentos insere-se no contexto do saber jesuítico, baseado numa epistemologia realista e na interseção profunda entre metafísica, “physica” (ou seja, filosofia natural), matemática e teologia. A concepção da “natureza” que fundamenta a ciência jesuítica é de inspiração escolástica, -uma escolástica renovada, de matriz ibérica- incluindo-se nela as dimensões qualitativas e quantitativas, físicas e psicológicas, as substâncias e as relações. Ao mesmo tempo, porém, trata-se de uma concepção aberta que integra e absorve conquistas e contrastes do mundo intelectual laico da época.

3. A utilização da teoria dos temperamentos no contexto da psicologia prática dos jesuítas.

A doutrina da unidade psicossomática do ser humano não se limita apenas à conceituação teórica mas permeia também a “psicologia prática” dos jesuítas.

Já Inácio de Loyola, em suas cartas, mostra-se atento á subjetividade humana, por um lado, e à saúde do corpo, por outro, consciente das influências recíprocas entre os dois (vide carta ao Senhor Jerónimo Vignes, em: Obras Completas, n. 86, 1982, p. 989).

Um grande realismo transparece também nos critérios que Inácio aponta para a admissão de novos membros na Companhia, critérios formulados nas Constituciones (idem, Parte Primeira, Capítulo 2). Tendo como premissa o fato de que a condição melhor para receber os postulantes é ter quanto possível “experiência” deles, Inácio recomenda que as funções devam ser distribuídas entre os membros da Companhia conforme as inclinações de cada um. Evidencia-se, no pensamento de Inácio, uma atenção especial ao perfil psicológico dos candidatos, para cujo conhecimento faz-se necessário elaborar métodos e instrumentos adequados.

Além disso, o realismo de Inácio, no que diz respeito ao conhecimento da subjetividade humana, evidencia-se no cuidado com que alerta acerca da oportunidade do “discernimento dos espíritos”. Frente a um certo “misticismo” difundido no contexto religioso e cultural da época, Inácio alerta acerca dos enganos da imaginação humana que, interpretados em muitos casos como profecias ou revelações divinas, na realidade originam-se do “entendimiento confuso”, de “alguna passión que les ciega”, ou de praticas que “con indiscretos exercicios corporales y mentales tienen mal tratado el cuerpo” de forma a estragar o “órgão da imaginação”, sendo que em tais indivíduos haveria excesso de humor melancólico (Judicium de Quibusdam Opinionibus, em: Loyola, 1911, p. 641).

É muito clara aqui a visão da unidade psicossomática que constitui o ser humano. Nesse sentido, é utilizada a tradicional teoria dos temperamentos enquanto fatores predisponentes para distúrbios psicológicos, tais como os delírios da imaginação.

Desse modo, desenvolve-se, no interior da Companhia, um tipo de conhecimento psicológico que pode-se definir inovador, pois apesar de apoiar-se na tradição da psicologia humoralista, assume porém novo sentido e função sendo permeado pela matriz cultural do humanismo e visando proporcionar o bem estar do indivíduo e do grupo. Tal conhecimento tenciona alcançar uma “experiência” do outro o mais possível fidedigna, por um lado, e uma capacidade de auto-análise cuidadosa, por outro.

O Padre Geral Cláudio Acquaviva, na Instructio as reddendam rationem conscientiae iuxta morem Societatis Iesu (manuscrito n. 429, da Opera Nostrorum, ARSI, folhas 33-42) institui oficialmente (como “perpetua praxe Societatis”, em: Institutum, 1893, vol 2, p. 257) a prática do exame de consciência, tendo função de autoconhecimento, de prevenção e cuidado de si mesmo.

Neste exercício, descobrem-se as diferenças individuais:

Perché sono diversi i moti interiori dell’huomo, chi sará timido, chi audace, chi colerico, etc...peró si deve ció dire, cioé da quale passione si sente piú affliggere, et darsi fastidio, (...) se si sente essere colerico, et che per ogni picciola cosa dettali si risente et perturba, se é timido, che per ogni picciola cosa resta spaventato, etc. (folha 34).

Cabe ressaltar também o valor preventivo e terapêutico atribuído por Acquaviva a este exercício, definido num quadro comparativo com a ciência médica:

Si che l’istesso effetto faccia all’anima la confessione che al corpo la medicina. (folhas 35-35v).

Ao justificar esta prática, Acquaviva retoma então uma discussão bastante comum no ambiente humanistico e renascentista, acerca da necessidade de se estabelecer uma “medicina do ânimo”, análoga à medicina do corpo.

Exemplos da aplicação deste conhecimento, ao longo dos séculos XVII e XVIII, no que diz respeito ao carisma missionário da Companhia, encontram-se em três tipos de documentação: por um lado, as cartas chamadas de “Litterae Indipetae”, escritas por jovens religiosos solicitando ao Padre Geral o envio nas missões do além-mar, contendo expressões muito significativas do trabalho de investigação acerca de si mesmos; por outro, as autobiografias dos jesuítas, nas quais, em vários casos, os autores fazem referência aos seus temperamentos (entre outros, J. Nadal). Em terceiro lugar, as biografias dos jesuítas ilustres, descrevem os temperamentos deles e apontam pelo fato de que o próprio Inácio de Loyola teria um temperamento colérico (Blecua, 1991; Mateo, 1991), e o mesmo é dito de outra figura marcante da Companhia, Francisco Xavier. (Padre Manuel Teixeira, Liber de Vita Sancti Francisci Xaverii, em: Monumenta Xaveriana, vol 1, p. 895), o modelo ideal dos missionários da Companhia.

Os catálogos trianuais dos jesuítas em missão.

Desde 1556, no âmbito da Companhia de Jesus, eram elaboradas “listas” dos membros da Companhia em missão na Província do Brasil, conforme a normativa da Ordem. A partir de 1598, nos Catálogos consta uma caracterização mais detalhada dos jesuítas, sobretudo no que diz respeito a aspectos que são indicados sob o rotulo de “complexio”. Por “complexio”, ou compleição, entende-se, na cultura da época, o conjunto das características somáticas e das disposições psíquicas do sujeito, conforme o referencial da tradicional teoria dos humores.

O primeiro Catálogo deste tipo elaborado em 1598 pelo Padre Provincial Pedro Rodrigues e enviado em Roma pelo Visitador Fernão Cardim, é dividido em duas partes distintas, uma intitulada “Primus Catalogus sociorum qui in Brasilia vivunt missus per Patrem Fernandum Cardim procuratorem, anno 1598” (fols. 36-43), outra intitulada “Secundus Catalogus sociorum qui in Brasilia vivunt missus per Patrem Fernandum Cardim procuratorem anno 1598” (fols 44-46v). Trata-se, com efeito, de um Catálogo Trianual. Este tipo de Catálogo, enviado periodicamente à Cúria Geral pelos Padres Provinciais, consta normalmente de três partes, conforme aponta Lamalle (1981): o “catalogus primus”, que constitui-se no elemento base, retoma a lista dos jesuítas distribuídos por casas, fornecendo uma ficha biográfica de cada um: naturalidade, idade, estado de saúde, função na Companhia, estudos realizados. O “Catálogus secundus” (ou “secretus”, pois não contem os nomes mas refere-se à lista dos nomes do catálogo anterior), é um informe complementar e reservado acerca das atitudes subjetivas dos mesmos: poderia-se defini-lo uma espécie de perfil psicológico. Por fim, o “Catalogus Tertius” retrata a situação econômica das casas.

Seguindo este modelo, o documento elaborado por Pedro Rodrigues retrata os 163 jesuítas presentes no Brasil no ano de 1598. No “Secundus Catalogus”, observa-se que, no que diz respeito à descrição da compleição, ou temperamento dos sujeitos, há uma prevalência quantitativamente significativa de “coléricos”. Com efeito, dos 163 sujeitos, 103 são definidos como “coléricos”, 3 como “colericos adustos”, 18 como “coléricos-sanguineos”, 18 como “coléricos-melancólicos”, 1 como “melancólico”, 10 como “flegmaticos”, 10 não receberam definição, ou por serem muito velhos em idade ou por serem novícios recém-chegados na Companhia.

Um quadro semelhante apresenta-se nos demais Catálogos: no Catalogo de 1607, assinado por Fernão Cardim , no Catálogo de 1610 , no Catálogo de 1613 , no Catálogo de 1631 , no Catálogo de 1642 , no Catálogo de 1646 , no Catálogo de 1654 , no Catálogo de 1657 , no Catálogo de 1660 .

Há uma evidente constância nos Catálogos no que diz respeito ao prevalecer consistente dos sujeitos coléricos. O que isto significa? Por que os coléricos seriam tão numerosos? qual era a significação desta categorização na cultura da época e mais especificamente na cultura jesuítica? em base a quais critérios e a partir de que tipo de conhecimentos eram elaboradas estas classificações?

A descrição que o já referido médico Lemnio fornece acerca dos diversos temperamentos poderá introduzir-nos na solução destas da questões. Lemnio(1561), citando Galeno, afirma que enquanto os indivíduos de temperamento sangüíneo são inconstantes e volúveis e por conseguintes pouco aptos para a vida religiosa, a perseverança e a diligência do animo procedem do humor bilioso sendo que este humor determina a velocidade, o ímpeto e a inquietação, bem como a fluência do discurso. A constância e a firmeza são conseqüências do humor melancólico combinado com um moderado calor. O indivíduo fleumático não é apto para obras de entendimento e memória e para os estudos, pois o calor que estimula o engenho neste temperamento é inibido ou diminuído pela presença da qualidade úmida.

A partir deste referencial, pode-se explicar o porque os temperamentos definidos como colérico-melancólico, ou colérico-sanguineo, ou simplesmente colérico sejam maiormente aptos para a atividade missionária, pois dotados daquele ímpeto, capacidade de comunicação, e inteligência necessários para empreender ações num campo social e natural difícil e novo. Da mesma forma, os indivíduos fleumáticos são destinados, na organização da Companhia, aos ofícios domésticos; os melancólicos, em pequena quantidade, trabalham nos colégios como professores e desenvolvem atividades intelectuais.

Inclusive isto nos permite formular uma hipótese explicativa acerca da natureza e da função dos perfis psicossomáticos elaborados nos Catálogos. Assim como no corpo humano, em diversas condições ambientais, a boa distribuição dos humores, é condição de saúde, da mesma forma no ‘corpo’ social que é a Companhia, e no contexto ambiental que é o Brasil, uma distribuição dos temperamentos onde os coléricos prevaleçam (sendo que pelas suas características são mais adequados às circunstâncias), e um controle constante desta distribuição de modo a manter o equilíbrio, parecem constituir-se na receita do bem estar e da eficácia individual e do grupo. Desse modo, os catálogos trianuais dos jesuítas em missão no Brasil são indicadores muito significativos de um tipo de saber existente na Companhia e derivado da ciência médica da época, saber inserido numa tradição médico-filosófica secular, mas cuja aplicação visa objetivos novos e apropriados às circunstâncias ambientais que definem a presença da Companhia em seus primórdios.

Conclusão.

A construção de um conhecimento psicológico baseado em teorias próprias da tradição ocidental, assume na literatura jesuítica dos séculos XVI e XVII uma nova função de controle, prevenção e formação dos indivíduos, visando o bem estar individual e social. Assim, a composição dos Catalogus Secundus através da elaboração do ‘perfil psicossomático’ de cada um dos sujeitos membros da Companhia, e sua utilização no contexto de um registro funcional ao controle social e organizacional do grupo, além de documentar a vitalidade da teoria dos temperamentos ao longo dos séculos XVI e XVII, assinala para a gestação de uma nova forma de conhecimento psicológico. Deste conhecimento, os jesuítas parecem ter sido, se não parte ativa na elaboração, pelo menos eficazes e prontos ‘consumidores’.

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