GUARAGUÁS, HIPUPIARAS, BALEIAS E ÂMBAR : OS PORTUGUESES E A NATUREZA BRASILEIRA
Carlos Almaça
Museu Bocage, Departamento de Zoologia e Antropologia e Centro de Biologia Ambiental
Rua da Escola Politécnica, 58 - 1250 Lisboa, Portugal

Introdução

Quando os primeiros portugueses penetraram no Brasil e foram contactando com a natureza, imagine-se quanto esta os terá surpreendido. Animais e plantas muito diferentes dos que conheciam da Europa e, para além disso, variando significativamente ao longo do imenso território descoberto. Do contacto com os indígenas terão retirado o saber inicial indispensável à sobrevivência, que só essa natureza lhes consentia, bem como uma nomenclatura que individualizasse as espécies. Cedo, porém, analogias mais ou menos conseguidas lhes permitiriam conceptualizar a diversidade biológica através de um vocabulário mixto ou mesmo exclusivamente português.

Do Reino haviam levado o hábito milenar, imprimido pelo Cristianismo dos primeiros séculos, de não conferir ao estudo da natureza senão a atenção necessária ao utilitário. A sobrevivência implicava o conhecimento daquilo de que dependiam ou de qualquer das suas fases ou partes. Mas, também do que lhes pudesse ser fatal, perigoso ou daninho. Daí terem os relatos de jesuítas e humanistas, a despeito de alguma eventual familiarização com a História natural do seu tempo, todos o mesmo tom informativo do útil e do prejudicial. Para além disso, tais relatos cumpriam uma função essencial dos colonizadores: prevenir os que viessem daquilo com que poderiam contar.

Propõe-se-vos um momentâneo regresso a esse passado longínquo, perspectivado através das descrições e comentários que os mamíferos marinhos sugeriram aos colonizadores e exploradores portugueses.

Iguaraguá, ou vaca-do-mar

São nomes que os portugueses dos séculos XVI e XVII registaram para os sirénios do Brasil, colectivamente designados por ‘manatins’ na linguagem universal. Para além destes nomes, ainda os chamaram ȁpeixes-bois’ e ‘ois-marinhos’. As duas espécies de manatins-americanos, mais o manatim-africano, do Atlântico, e o dugongue, do Índico - que os portugueses sugestivamente designaram por ‘peixe-mulher’ -, constituem a representação actual dos Sirénios. A posição das mamas e o aspecto dos genitais femininos destes animais, fazendo lembrar, ainda que vagamente, a forma humana, deram corpo no imaginário dos homens do mar às sereias. Illiger, em 1811, consagrou zoologicamente este nome, criando o grupo dos Sirénios (do latim, siren, sereia).

Nenhum dos manuscritos ou livro de portugueses do Brasil foi conhecido por Lineu, que, portanto, ignorou os nomes portugueses ao descrever o manatim-caribenho, também conhecido por americano1 , Trichechus manatus, espécie que se distribue pelo litoral brasileiro, atingindo a sul latitude próxima da antiga Capitania do Espírito Santo. Porém, no nordeste brasileiro vive uma outra espécie, que penetra longamente na bacia do Amazonas, o manatim-amazónico, Trichechus inunguis, que Lineu não conheceu. A ambas as espécies, sem distinguirem uma da outra, aplicaram os portugueses os nomes inicialmente referidos.

O padre José de Anchieta (1534-1597) descreveu2 com pormenor o iguaraguá, ou boi-marinho, frequente na Capitania do Espírito Santo e para norte, relevando a sua elevada qualidade na alimentação, embora sem bem se perceber se é carne ou peixe, e a excelência das suas gorduras: a que está sob a pele, mormente em torno da cauda, fornece, depois de fundida, um molho comparável ou talvez de melhor qualidade que a manteiga; e o óleo tempera todas as comidas.

Mais tarde3, sublinharia que, se cozinhado com couves sabe a carne de vaca, se com especiarias a carneiro e também a porco. Referiu as boas chacinas que se faziam destes animais com 20 a 30 arrobas, que se encontravam ȁnos rios caudais que entram no mar”. Referiu ainda que 𠇍ntro do cérebro ... se acha uma pedra4 mui medicinal para quem tem dor de pedra”. Em ambos os relatos, o de 1560 e o de 1585, considerou o boi-marinho um peixe. Anchieta escrevia da Capitania de São Vicente, cujo litoral se inclue na área de distribuição de Trichechus manatus.

Também Pêro de Magalhães de Gândavo ( ? - ?) se ocupou do peixe-boi5 , mas a ele este ‘peixe’ parecia totalmente carne, tanto ȁna semelhança, como no sabor: e assado não tem nenhuma diferença do lombo de porco ... e assim não há pessoa que o coma, que o julgue por peixe salvo se o conhecer primeiro.” Curiosamente, Gândavo referia que “s fêmeas têm duas tetas com o leite das quais se criam os filhos ... [e] ... não têm feição alguma de nenhum peixe somente na pele quer-se parecer com toninha [que é um mamífero]“. Devia referir-se a Trichechus manatus, pois, em manuscrito anterior, também de sua autoria6, Gândavo mencionou a grande abundância de peixes-bois na Capitania de Espírito Santo.

Frei Cristóvão de Lisboa (1583-1652), que viveu no nordeste brasileiro entre 1624 e 1627, descreveu e desenhou, ou encarregou alguém de o fazer, a fauna e árvores do Maranhão. Entre muitas espécies animais, referiu-se ao peixe-boi, a que chamou guaraguá, ou vaca-do-mar, que atnge 2-2,5 m e é grande como uma vaca. ȁO rabo tudo é gordura”, havendo animais que proporcionavam, com essa gordura, 150 quilos ou mais de manteiga e ȁ..tudo se come até às tripas e a pele serve para fazer sola”. Anos houve em que se mataram mais de trezentos, ao que parece quando, no mês de Março, se dirigiam da costa aos lagos e rios onde havia ervas e folhas em abundância para comer. A grande originalidade do manuscrito de Frei Cristóvão, publicado7 cerca de 340 anos depois de escrito (!), é a de apresentar desenhos, os quais permitem a identificação da sua vaca-do-mar com Trichechus manatus8 .

O peixe-boi-amazónico, Trichechus inunguis, sem unhas nos dedos, foi generosamente colhido por Alexandre Rodrigues Ferreira em finais do século XVIII. A tal ponto que, em 1794, havia sete exemplares em pele mais dois esqueletos desta espécie no Real Museu da Ajuda9 . Em 1795 foi enviado um exemplar para o Museu da Academia das Ciências10 e, em 1806, outro, que ainda aí se encontra, para o Museu de Zoologia da Universidade de Coimbra11 . A fidelidade de A.R.Ferreira (e de muitos outros naturalistas da época) a Lineu era tal que nem sequer pôs em questão de se tratar de espécie diferente da descrita por Lineu - Trichechus manatus -, a despeito de ser bem conspícua a diferença entre esta e T. inunguis - presença ou ausência de unhas, respectivamente.

As quatro espécies de Sirénios que ainda hoje existem encontram-se bastante ameaçadas na maior parte das suas áreas de distribuição. Intensamente perseguidas no passado pela carne, gordura, óleos, ossos, pele - como escreveu Frei Cristóvão, no Maranhão ? ... houve ano que se matariam trezentos peixes[-bois] ou mais ...” -, foram reduzidos a efectivos escassos. As duas espécies brasileiras são actualmente protegidas, esperando-se que tão interessantes mamíferos aquáticos, cuja maior proximidade genealógica é com os elefantes e os hiraxes, possam persistir no futuro.

Demónio-d’água, ou hipupiára

Em tal imensidão desconhecida não podiam faltar os monstros: “ assim também deve haver outros muitos monstros de diversos pareceres, que no abismo desse largo e espantoso mar se escondem, de não menos estranheza e admiração: e tudo se pode crer, por difícil que pareça: porque os segredos da natureza não foram revelados todos ao homem, para que com razão possa negar, e ter por impossível as cousas que não viu, nem de que nunca teve notícia”

Desta forma terminou Gândavo o capítulo IX do seu livro12 , capítulo que intitulou “o monstro marinho que se matou na Capitania de Sam Vicente no anno de 1564”. Nele conta como Baltasar Ferreira matou à espadeirada um grande animal marinho que errava à noite pela praia. Tinha quinze palmos (cerca de 3 m) de comprimento, era peludo e exibia bigodes longos no focinho. Gândavo desenhou-o, publicando a figura no seu livro.

Os Índios denominavam-no hipupiára, que quer dizer ‘demónio-d’água’, e, conforme relata Gândavo, outros exemplares se haviam observado, ainda que raramente, naquelas paragens. Talvez se tratasse do leão-marinho, Otaria byronia, ou da foca das Falkland, Arctocephalus australis, espécies que atingem dimensões consideráveis e ambas se distribuem pela costa atlântica da América do Sul.

Âmbar e azeite-de-peixe

Gândavo também relata14 a arribação de muitas baleias à costa brasileira. O âmbar ȁque o mar de si lança fora em diversas partes desta província” era tido por muitos como “sterco de baleias”. Para outros, seria o esperma do mesmo animal. Mas, o que se tinha por certo é que este ‘licor’ [o âmbar] nasce do fundo de algumas partes do mar, afirmando-se que as baleias tanto dele comem que se embebedam. Então, o que aparece nas praias ȁé o sobejo que elas arremessam”. Em muitas que deram à costa encontrou-se muito âmbar nas tripas “uja virtude iam já digerindo por haver algum espaço que o tinham comido”. E noutras, acharam-no, ainda fresco e perfeito, no estômago; de tal modo que parecia terem-no acabado de comer antes de morrerem.

O âmbar, escreve Gândavo, não tem nenhuma semelhança com as fezes do animal, nem é o seu esperma; este existia no mar em grande quantidade e chamavam-lhe ‘balso’. E há âmbar de dois tipos: um pardo, a que chamavam gris, e outro preto: ȁo pardo é mui fino e estimado em grande preço em todas as partes do mundo; o preto é mais baixo nos quilates do cheiro, e presta para muito pouco ...” De um e outro saía muito do Brasil, de tal forma que alguns moradores “nriqueceram e enriquecem cada hora como é notório.”

O âmbar é, de facto, uma concreção intestinal, que envolve as maxilas dos cefalópodes gigantes de que os cachalotes se alimentam e não, como pensava Gândavo, um ‘licor’ formado em certos fundos marinhos que as ‘baleias’ deglutiriam.

Anchieta também se referiu15 às baleias, ȁtantas e tão grandes que é para ver ... aqui na Baía das janelas dos cubículos as vemos andar saltando e por toda a costa há muitas.”

A indústria baleeira no Brasil só começaria, porém, mais tarde, logo no princípio do século XVII. Um grupo de biscaínhos mandado vir para o Recôncavo baiano iniciou portugueses e brasileiros na caça da baleia. Até então, o óleo de baleia, chamado ‘azeite-de-peixe’, era importado da Biscaia e de Cabo Verde ou obtido dos cetáceos encalhados nas praias. Utilizava-se na iluminação, calafetagem de barcos e confecção de argamassa para construção.

De Maio a Julho, as baleias afluíam em grandes quantidades às baías da costa brasileira. Muitas encalhavam, sendo então desmanchadas para obtenção do toucinho, outras eram arpoadas e rebocadas até aos estabelecimentos próprios. Chegaram a capturar-se cetáceos com 22 m e mais de comprimento, que forneciam 10.000 litros de óleo. Separava-se a carne, o toucinho e os ossos. A carne era consumida fresca ou salgada e embarrilada para alimentação dos escravos. O toucinho fundia-se em caldeiras para obtenção do óleo.

A caça da baleia cresceu durante a primeira metade do século XVIII, atingindo a captura anual, só na Baía, os 200 cetáceos. Aqui continuou no século XIX, embora se extinguisse no Brasil meridional16 .

É difícil dizer quais as espécies em que esta caça incidia, mas, dadas as grandes dimensões apontadas, muito provavelmente em espécies de Balaenoptera. Quanto ao âmbar a que se referiu Gândavo, a sua presença indica a existência do cachalote no litoral brasileiro.

Notas

1 - Systema naturae, 10ª.ed., 1758, 34. Reproduzido em fac-simile, em 1939, pelo British Museum (Natural History), London.
2 - ‘Ao Padre Geral, de São Vicente, ao último de Maio de 1560’ in Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões do Padre Joseph de Anchieta, S.J. (1554-1594), Cartas Jesuíticas III, 1933, 103-143, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
3 - ȁInformação da província do Brasil para o nosso Padre - 1585’, Cartas Jesuíticas III, 409-447 (ver nota 2).
4 - As pedras do cérebro a que Anchieta e outros se referem serão, talvez, os ossos timpânico e periótico, que se separam muito facilmente dos outros ossos cranianos. Os ossos dos Sirénios são duríssimos, pelo que não será de estranhar que Anchieta se referisse a ‘pedras do cérebro’.
5 - ‘História da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil’ (1576), Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1958, 21, 329-388.
6 - Tratado da província do Brasil (manuscrito de data anterior a 1576), 1965, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro.
7 - Frei Cristóvão de Lisboa, História dos animais e árvores do Maranhão (1625-1631), 1967, Arquivo Histórico Ultramarino, IICT, Lisboa.
8 - A identificação é de F.Frade. Ver ‘Comentário zoológico relativo à História dos animais e árvores do Maranhão (1625-1631), de Frei Cristóvão de Lisboa’, Garcia de Orta (Lisboa), 1966, 14: 343-350. A presença de unhas nos dedos é característica do manatim-caribenho, Trichechus manatus.
9 - A.R.Ferreira, ȁInventário geral, e particular de todos os productos naturáes, e artificiáes, instrumentos, livros, utensiz, e moveis, pertencentes ao Real Gabinete de Historia Natural, Jardim Botanico, e suas cazas anexas: como são Gabinete da Bibliotéca, Caza do Desenho; Dita do Laboratorio; Dita das Preparaçoens, Armazem de Resérva, etc.’, Manuscrito, 1794.
10 - ‘Lista das produções zoologicas recebidas por ordem de S.Mag.do Real Museu d’Ajuda em Junho, Julho, Setembro, e Outubro de 1795. Apresentadas à Academia Real das Sciencias. Dispostas conforme o sistema de Carlos Lineu por L.M.P.S.C.’ Manuscrito, Museu Bocage, Rem.435.
11 - ‘Relação dos produtos naturaes e industriaes que deste Real Museu se remetterão para a Universidade de Coimbra em 1806’. Manuscrito, Museu Bocage, ARF-26.
12 - Gândavo, (1576) 1958, 370 (v.n.5).
13 - Ver H.Nomura, História da Zoologia no Brasil: século XVI, 1996, 61, Mossoró, Fundação Vingt-un Rosado; J.E.King, Seals of the world, 1964, London, British Museum.
14 - Gândavo, (1576) 1958, 367-368 (v.n.5).
15 - Anchieta, Cartas Jesuíticas, III, 421 (v.n.3).
16 - Ver M.Ellis, A baleia no Brasil colonial, 1969, São Paulo, Ed.Melhoramento.

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