EM VIAGEM PELA "LITERATURA DE VIAGENS"
Annabela Rita
19-02-2004

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(observações em segundo reconhecimento)
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Observemos, agora, como Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis, um romance de transição entre o Romantismo e o Realismo, aparentemente sem relação com a literatura de viagens, pode convocar o modelo desta pelo modo como conduz o discurso e o leitor em direcção ao objecto da sua narrativa: trata-se de uma paródia - no sentido que Linda Hutcheon propõe (1) - estrategicamente ao serviço, quer da amplificação da curiosidade e da disponibilidade do leitor, quer da verosimilhança da história contada, quer, ainda, da aceitabilidade da “lição” que ela constitui.

Começarei de novo por recordar um exemplo da literatura de viagens, no caso, a Carta de Pero Vaz de Caminha, destacando a narrativa do reconhecimento da terra desconhecida, desde os primeiros sinais do seu vislumbre, à aproximação a ela e ao contacto com ela e com os seus habitantes:

“E assim seguimos por este mar de longo até que, terça-feira de Oitavas de Páscoa, que foram vinte e um dias de Abril, cerca de 660 ou 670 léguas da dita ilha, segundo diziam os pilotos, topámos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que também chamam rabo-de-asno.

E, quarta-feira seguinte pela manhã topámos aves a que chamam fura-buxos.

E neste dia, às horas de véspera, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente dum grande monte mui alto e redondo e doutras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã, com grandes arvoredos, ao qual monte o capitão pôs nome – o Monte Pascoal – e à terra a Terra de Vera Cruz.

Mandou lançar prumo. /.../

E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos diante por dezassete, dezasseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças até meia légua de terra, onde todos lançámos âncoras no enfiamento da boca de um rio. /.../

E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, cerca sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. /.../ E tanto que ele começou a ir para lá acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que quando o batel chegou à boca do rio eram ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham rijos para o batel.” (2).

À medida que os viajantes se aproximavam da terra descoberta, denunciada antes por certos sinais, esta foi crescendo para eles em definição e pormenores (movimento, número, tamanho, cor, forma, modo de uso, etc.). Continuando a leitura do relato, verificamos que eles acabam por descer dos barcos, por circular na praia e por enviar observadores com os nativos. Isso, para já não mencionar o movimento dos índios relativamente àqueles. Em suma, há uma progressão do perceptivo ao convivial, imagisticamente marcada pela sucessão de planos que vão assinalando o movimento perspectivante até à inscrição dos viajantes no novo território, progressão que se duplica no processo cognoscente.

Voltemos, agora, a nossa atenção para Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis (3).

Em trabalho anterior, tive já ocasião de reflectir sobre a estratégia comunicativa que informa o romance e que radica sobre uma dupla restrição de campo de visão realizada pelo próprio título: o da observação, seleccionando o sector do real que lhe interessa e que elabora ficcionalmente, e o da leitura, escolhendo um destinatário priveligiado, em ambos os casos, fidalgos de casas mouriscas (4)...

Mesmo sinteticamente, vale a pena observar o modo como Júlio Dinis nos conduz para o universo ficcional dos fidalgos, nos faz aportar ao seu território ficcional...

Desde a abertura do romance, notei, então, que o descritivo é habilmente instrumentalizado pelo narrativo num trabalho de processamento de informação muito marcado pela selectividade, pela economia: tudo converge para um efeito de maior compreensibilidade do universo ficcional, devendo-se esta ao modo subtil e progressivo como o narrador vai fazendo o leitor visualizar , avaliar e conviver com esse mundo.

Tudo progride através de estratégicos deslizamentos de uma ‘lente' para outras, como em análise laboratorial. Depois de uma panorâmica de Portugal temporal e geograficamente abrangente, a ‘câmara' narrativa suspende-se num pormenor de que se aproxima: a ‘grande angular' histórico-geográfica cede a um ‘zoom' e a um ‘grande plano'(a família dos fidalgos) a que confere aceitabilidade pela consequencialidade discursiva. A ficção surge, assim, inscrita na História em jeito de exemplo (“Era o que sucedia com o solar dos Senhores Negrões de Vilar de Corvos, /.../ conhecidos pelo nome dos Fidalgos da Casa Mourisca.”) (5)

Com a aproximação, o observado vai-se definindo, expandindo, pormenorizando, esclarecendo: à imagem histórica impressionista, que o plural indefinidor torna quase pontilhista, vai sucedendo a imagem clara e rigorosa do mundo ficcional à nossa escala. Esta imagem é a que permanece e, nela, começamos a observar movimento, vida e diferença entre o principal e o secundário, deixando a nossa atenção absorver-se e descontrair-se, alternadamente... Como se, repito, narrador e leitor se fossem aproximando do lugar ficcional. A observação aérea muito distanciada, que microscopiza, planifica e imobiliza o visível (o cartografa e fotografa) deixa-se substituir por uma outra que se move em direcção a esse lugar, restringindo o campo visual ao mesmo tempo que o amplifica, volumetriza e dinamiza (o territorializa). Esse deslizamento perceptivo denuncia, quer uma intelecção sinedóquica e tipificadora do real, quer uma manipulação intelectual do leitor.

Confluindo com esse movimento de aproximação à “época em que vai procurá [-los (aos fidalgos)] a nossa narração” (6), esboça-se e desenvolve-se um outro que parece inscrever o leitor no romance modelando-lhe uma trajectória apetente, curiosa e indagadora, afinal e inequivocamente, a de um viajante:

“/.../ quem , ao dobrar a última curva da estrada irregular por onde se vinha à aldeia, via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquele vulto escuro e sombrio, contrastando com os brancos e risonhos casais disseminados por entre a verdura das colinas próximas, mal podia reter uma exclamação de surpresa e involuntariamente parava a contemplá-lo . /.../

Reparando mais atentamente , outros motivos concorriam para fortalecer esta primeira impressão . /.../ [ E ] sta permanência de estragos, traindo a incúria ou a insuficiência de meios do proprietário actual, iniciava no espírito do observador uma série de melancólicas reflexões .

E se o movesse a curiosidade a indagar na vizinhança informações sobre a família que ali habitava, obtê-la-ia próprias a corroborar-lhe os seus primeiros e espontâneos juízos.” (7)

“Ao viajante, que já supusemos parado a contemplar o vulto denegrido da Casa Mourisca, não passaria ela também despercebida.” (8)

Além de nos sentirmos previstos e inscritos no texto como viajantes-observadores, somos conduzidos, dedutivamente, da “primeira impressão” às “reflexões”, ao ‘trabalho de campo' da indagação/exploração e, por fim, aos “juízos”. Como acontece sempre em viagem... A narração parece moldar-se à nossa subjectividade e ordenar-se de acordo com ela, aparência estratégica e enganadora que intensifica o nosso interesse e que capta a nossa empatia.

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Notas

(1) Cf. Linda Hutcheon. Uma teoria da paródia, Lisboa, Edições 70, s.d. [1989].

(2) Joaquim Veríssimo Serrão (pref.), Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura (ests.e transcr.). op. cit., pp. 59/60.

(3) Júlio Dinis. Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto, Livraria Civilização, 1980.

(4) “Júlio Dinis, ‘um autor menos atrevido'? Os Fidalgos da Casa Mourisca, ou o mapa do tesouro”, Boca do Inferno (nº4), Cascais, Câmara Municipal de Cascais, Julho de 1999, pp. 75/101.

(5) Júlio Dinis. ibidem, p. 6.

(6) Júlio Dinis. ibidem, p. 14.

(7) Júlio Dinis. op. cit., pp. 6/7.

(8) Júlio Dinis. op. cit., p. 16.

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