EM VIAGEM PELA "LITERATURA DE VIAGENS"
Annabela Rita
19-02-2004

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(observações em reconhecimento)
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Mesmo ressalvando as devidas diferenças, as aberturas de Viagens na Minha Terra e do Itinerário de Linschoten revelam uma coincidência de motivos e da sua ordenação que inscreve ambos os textos no paradigma da literatura de viagens. Nelas, o sujeito do discurso dá-nos conta do modo como iniciou a viagem: fala das suas circunstâncias existenciais, da ideia ou do projecto da viagem, da sua decisão, da partida e do itinerário inicial (onde a enumeração dos locais de passagem e das datas marca o distanciamento e uma anotação sistemática, mas apenas interessada no além espacial).

Seja a escrita projecto inerente à viagem ou seu motivo (Viagens na Minha Terra) ou, então, consequência dela (Itinerário), e impulsionada esta pelo desejo de conhecimento e de aventura, a escrita é sempre selectiva: fala-se do “notável”, do “memorável”, do “pitoresco”, do diferente, do que se destaca pela sua própria natureza, impondo-se ao observador e exigindo ser registado. Tal critério irmana a “pena ambiciosa” de Garrett e a de Linschoten.

Recordemos, então, o incipit de ambos os textos, evitando comentários que nos distraiam dessa leitura.

Comecemos pelo Itinerário de Linschoten .

No “Proémio ou prefácio para o leitor”, diz-nos o seguinte:

“Permanecendo, benévolo leitor, nas Índias Orientais, e mesmo (posso dizer sem fanfarronice) aí convivendo com a gente principal, tanto cristãos como outros, não pude, seja por inclinação natural, estranheza ou espanto, deixar de, de vez em quando, anotar e esboçar ou retratar, o melhor que podia, o que lá me parecia notável ou diferente do carácter, costumes e hábitos do nosso país, e isto apenas por divertimento ou passatempo, para mais tarde o poder mostrar, em privado, como novidade, aos meus amigos. /.../ após o meu regresso /.../, o material que tinha reunido /.../ parecia /.../ inspirar-lhes admiração, prazer e satisfação extraordinários/.../. /... a boa intenção que tive /.../ em apresentar fielmente ao leitor confinado a casa ou escritório, o que por mim passou de notável e memorável durante /.../ viagem /.../ como /.../ permanência /.../.” (“Proémio ou prefácio para o leitor”) (1)

Quanto ao Itinerário propriamente dito, começa assim:

“Encontrando-me na minha terra natal, na minha primeira juventude, e sentindo-me inclinado à leitura de coisas estranhas sobre países e histórias, em que encontrava um prazer e divertimento extraordinários, com um ainda maior despertar do desejo de ver países estranhos e desconhecidos ou viver algumas aventuras, para assim satisfazer um pouco a minha afeição, resolvi deixar por algum tempo a terra natal e a convivência de amigos e familiares. Embora isso me pesasse, a esperança que tinha de satisfazer o meu desejo animou-me finalmente a seguir avante, confiado em que o Senhor me ajudaria a cumprir o meu intento.

Estando com estes pensamentos, e uma vez resolvido a concretizá-los, despedi-me dos meus pais, que então viviam em Enkhuizen; e, estando pronto para partir, embarquei numa frota de navios que, perto da ilha de Texel, estava para navegar para Espanha e Portugal, a bordo de um navio destinado a San Lucar de Barrameda. A minha intenção era viajar até Sevilha, onde dois irmãos meus já viviam há vários anos, para assim melhorar a minha situação e, com a ajuda deles, ganhar experiência do país e da língua espanhola.

A 6 de Dezembro do ano de 1579, largámos da ilha de Texel (sendo a companhia de cerca de 80 navios), tomando rumo a Espanha. A 9 do mesmo mês passámos pelas pontas de Inglaterra e França. A 12 avistámos o cabo chamado Finisterra. A 15 vimos a terra de Sintra, ou seja, o cabo da Roca, onde o rio Tejo, ou Tagus, desagua no mar, na margem do qual fica a célebre cidade de Lisboa, onde alguns navios da nossa frota aportaram, separando-se de nós. A 17 vimos o cabo de São Vicente. A 25, dia de Natal, entrámos no rio de San Lucar de Barrameda, onde permaneci dois ou três dias, viajando depois para Sevilha./.../” (2)

Passemos, agora, às Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett.

A obra abre com uma epígrafe que exprime o desejo autoral de surpreender, inovando literariamente num território que é o das “descobertas”, das viagens, incluindo o da viagem intimista que o citado paradigmatiza:

“Qu'il est glorieux d'ouvrir une nouvelle carrière et de paraître tout-à-coup dans le monde savant, un livre de découvertes à la main, comme une comète inattendue étincelle dans l'espace!”
X. de Maistre

E o texto começa com uma reflexão sobre a adequação entre o modelo literário e as circunstâncias existenciais do seu autor, critério em nome do qual Garrett rejeita o modelo intimista convocado pela epígrafe e propõe o que se concretizará no texto que está a começar:

“Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica.

Era uma ideia vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me as instãncias de um amigo, decidem-me as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político a minha visita.

Pois por isso mesmo vou: - pronunciei-me.

São 17 deste mês de Julho, ano de graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estreia. Seis horas da manhã a dar em S.Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço. Chego muito a horas /.../.

Também são chegados os outros companheiros: o sino dá o último rebate. Partimos. /.../

Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica /.../. /.../ /.../

Já saudámos Alhandra, a toireira; Vila Franca, a que foi de Xira, e depois da Restauração, e depois outra vez de Xira /.../. /.../

Era com efeito notável e interessante o grupo a que tínhamos chegado, e destacava pitorescamente do resto dos passageiros /.../” (3)

Creio que estes excertos bastam para confirmar que ambas as narrativas são informadas pelo mesmo modelo textual que actualizam diversamente e de que Viagens na Minha Terra tende a afastar-se modelando um exercício de ‘fuga' com nova proposta, em função das também novas circunstâncias.

Mas vejamos ainda um outro aspecto em que estes dois tipos de narrativa se assemelham.

Como escrita que se fundamenta no sujeito que alegadamente protagonizou a experiência da viagem, esses textos tendem a desenvolver-se de modo assumidamente controlado por ele.

Recorrendo a um exemplo mais expressivo, lembro que quase todas as secções d' A Descrição do Mundo de Marco Polo terminam com uma afirmação do tipo de “Nous vous avons donc parlé de ..., nous allons vous parler d'autres choses aussi nouvelles.” (4), signos demarcativos que vão orientando e concretizando (com anúncios mais especificadores) a curiosidade do leitor.

Ora, também nas Viagens o narrador nos faz acompanhá-lo, ver e sentir com e como ele (o presente compacta, sobrepõe, o tempo da leitura, o da escrita e o da viagem) numa sequência marcada pela viagem. Do mesmo modo, n' Os Fidalgos, o narrador conduz-nos à ficção e, nela , aos seus lugares, acontecimentos, personagens, etc..

Curioso, às vezes, parece ser a escrita e a relação comunicativa determinarem o movimento da viagem (em rigor, do discurso sobre ela), o que, além de inverter paradoxalmente a relação de implicação e dependência entre a viagem e a sua escrita, intensifica a cumplicidade entre os sujeitos de escrita e de leitura, com um efeito de redução da distância espacio-temporal e da diferença experiencial entre ambos. Vejamos um exemplo disso em Marco Polo:

“Je vous ai donc parlé de cette organisation et nous partirons de la cité de Pékin et entrerons en Chine pour vous parler des choses grandes et magnifiques qu'on y trouve .” (5)

Confrontemo-lo com um passo das Viagens :

“Mas basta de vale, que é tarde. Oh lá! Venham as mulinhas e montemos. Picar para Santarém /.../.

-“Porquê? já se acabou a história de Carlos e de Joaninha?” diz talvez a amável leitora.

-“Não, minha senhora,” responde o autor mui lisonjeado da pergunta: “não, minha senhora, a história não acabou, /.../ mas houve mutação de cena. Vamos a Santarém, que lá se passa o segundo acto .”” (6).

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Notas

(1) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 65.

(2) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., pp. 69/70.

(3) Almeida Garrett. Viagens na Minha Terra, Porto, Porto Editora, s.d., pp. 14/18.

(4) Op. cit., p. 257.

(5) Op. cit., pp. 256/257 (sublinhados meus).

(6) Op. cit., p.172 (sublinhados meus).

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