EM VIAGEM PELA "LITERATURA DE VIAGENS"
Annabela Rita
19-02-2004

e

Primeiro arquipélago
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Para começar, podemos referir os textos mais directamente vinculados a essas viagens: cartas, relatórios, roteiros, itinerários, tratados, estudos monográficos, etc.. Distingamos alguns em função do momento de escrita.

Antes de mais, há os relatos escritos durante a viagem, como é o caso da Carta de Pero Vaz de Caminha, que ele data de sexta-feira, 1 de Maio de 1500, “deste Porto Seguro da /.../ Ilha de Vera Cruz” (1). Neste caso, o texto é condicionado pela proximidade temporal entre vivido/visto e descrito/narrado: Pêro Vaz de Caminha faz-nos acompanhar a aproximação à terra e os sucessivos contactos com os índios num discurso emocionalmente modalizado que mimetiza a progressão desse acontecer.

Com alguma permanência no novo mundo que permite já um relato em que a informação é veiculada em função da sequência da viagem, mas com sistematicidade e abrangência, temos cartas oficiais como a que o Pe. Fernão Cardim escreveu ao Pe. Provincial Sebastião Morais, para Portugal, a 16 de Outubro de 1585 (2), sobre a sua missão no Brasil como secretário do Visitador, cargo que desempenhou entre 1583 e 1590. A introdução dessa missiva cria desde logo essa expectativa no leitor:

“Nesta com o favor divino darei conta a Vossa Reverência da nossa viagem e missão a esta província do Brasil, e determino contar todo o principal que nos tem sucedido, não somente na viagem, mas também em todo o tempo da visita que Vossa Reverência tenha maior conhecimento das cousas desta província, e para maior consolação minha, porque em tudo desejo comunicar-me com Vossa Reverência e mais padres e irmãos desta Província.” (3)

Frequentemente, as anotações de viagem constituem material para escritos posteriores, a realizar aquando do regresso. Nesse caso, a informação é reelaborada, dando origem a obras do mais diverso tipo, com maior ou menor preocupação estética, científica, etc., e em função do destinatário desejado ou previsto.

Em qualquer dos casos, tratando-se de dar conta do que se viu e se viveu (às vezes, muito ultrapassado pelo que se soube antes e depois da viagem), tal relato pressupõe como destinatário os que ficaram , que não fizeram essa viagem e que têm curiosidade relativamente a ela, o que se reflectirá, naturalmente, na retórica discursiva, como veremos adiante.

P. ex., Jan Huygen van Linschoten (1562/3-1611), no seu regresso de uma expedição à Índia para reconhecimento do caminho em 1594, empreendimento que o celebrizou como grande descobridor e perito de navegação, foi chamado a Haia para relatar pessoalmente a viagem ao príncipe Maurício a ao chefe do governo da República, Oldenbarnevelt (4).

Mas consideremos o caso do Itinerário, Viagem ou Navegação de Linschoten (5), trabalho que podemos consultar.

Durante cerca de treze anos (6 de Dezembro de 1579-3 de Setembro de 1592), Linschoten viajou pela Europa e para além-mar, anotando cuidadosamente as suas observações. No seu regresso a Enkhuizen, dedicou-se a preparar a publicação dessa informação, com a colaboração dos homens de letras e poetas Theodorus Velius (1562-1630) e Petrus Hoogenbeets (1542-1599), ambos doutorados em medicina pela Universidade de Pádua , e de Cornelis Taemsz (1567-1600), viajado administrador. Na edição do Itinerário , Velius apresenta um panegírico em latim, Hoogenbeets, um soneto laudatório em neerlandês, o dístico em latim sob o retrato de Linschoten e várias outras legendas e Taemsz, uma ode e um soneto em neerlandês, além de todos terem colaborado com poemas laudatórios para o Roteiro do mesmo autor (6). No conjunto, portanto, nota-se preocupação estética na elaboração da obra.

A leitura do Itinerário de Linschoten, confronta-nos com um relato em 99 capítulos organizado em função do itinerário da viagem à Índia, com estadia e regresso. Do ponto de vista informativo, além do cuidado posto na organização, o desejo de exaustividade e de esclarecimento, confirmado pela sistemática anotação de Paludanus (7), denuncia a consulta de fontes variadas (incluindo os próprios clássicos), muitas vezes não referidas (8) ou, mesmo, rasuradas em benefício da sugestão de maior novidade dessa experiência assumidamente única, pessoal, facto visível no desenvolvimento do título sumarizante:

“ITINERÁRIO, VIAGEM OU NAVEGAÇÃO DE JAN VAN LINSCHOTEN PARA AS ÍNDIAS ORIENTAIS OU PORTUGUESAS, incluindo uma breve descrição desses países e costas marítimas, com indicação de todos os principais portos, rios, cabos e lugares até agora descobertos e conhecidos pelos portugueses; ao que se juntam, não só os retratos dos vestidos, trajes e aspecto, tanto dos portugueses aí residentes como dos indianos naturais, e seus templos, ídolos e casas, e igualmente as principais árvores, frutas ervas e especiarias e materiais afins, mas também os costumes destes povos, tanto nas suas religiões, como na política e administração, e ainda um breve relato dos tráficos, de onde e como são tratados e encontrados, com as histórias mais memoráveis que aconteceram aí durante a sua residência, tudo descrito e reunido pelo próprio. Muito proveitoso, apropriado e também divertido para todos os curiosos e amadores de coisas estranhas.” (9).

O último período deste título, aliás, revela a consciência ou, talvez, o desejo do viajante de ir ao encontro do gosto e da curiosidade pelo exótico do público, essa expectativa do insólito, do quase fabuloso, radicada na admissão de que o mundo visitado se regia por outras leis naturais e não apenas sociais. Consciência e/ou desejo que também dominavam ou tinham dominado o seu próprio olhar aquando da viagem. É essa perspectiva maravilhada e/ou que quer maravilhar, ingénua ou sedutora, que se concretiza exemplarmente num momento da Dedicatória do Itinerário que parece anunciar um relato fabuloso:

“Sem dúvida, é digno de espanto que a árvore-triste (como é chamada pelos portugueses nas Índias Orientais) floresça a noite inteira e ao amanhecer deixe cair apressadamente a sua flor, de cheiro suavíssimo, começando pelo ano inteiro a florir de novo com o pôr do sol. Ou também (o que é mais raro) que, num certo lugar do reino Anhalt, a terra produza por si própria chavenas tão perfeitas como se fossem formadas na roda do oleiro e as asas colocadas à mão.” (10).

Apesar desse deslumbramento experimentado e assim partilhado, aquilo que Linschoten se propõe fazer é dar conta do mundo sob domínio ibérico, nos seus diversos aspectos (geográfico, social, cultural, etc.), para o “leitor comum”, apelando com alguma falsa modéstia à benevolência do “leitor douto”, esperando que ele interprete a sua “pouca inteligência”, o seu “modesto trabalho” e o “modo de escrever sem estilo” “mais de acordo com a boa intenção que [ teve ] em agradar aos [ seus ] ditos amigos, e também em apresentar fielmente ao leitor confinado a casa ou escritório, o que por [ si ] passou de notável e memorável durante treze anos, tanto de viagem como de permanência nos países /.../ referidos” (11). Trata-se de um projecto de “trazer à luz de maneira simples e fiel”, “apenas uma representação natural e fiel” do que tivesse sido “notável ou memorável”, rejeitando “juntar-lhe algo de inventado, por conveniência ou conjectura racional” (12), e tudo “para divertimento e eventual proveito” do leitor. Em suma: reivindica-se objectividade, verdade e fidelidade de relato. Verdade, “a pura verdade” (13), nada mais do que a verdade...

Essa noção de um mundo outro para além do conhecido, basicamente europeu, está informada por uma mundividência e mundivivência religiosa cristã que fractura o real, tendendo a povoar de seres fantásticos e assustadores o espaço que excede as suas fronteiras. A experiência da viagem vai fazendo recuar progressivamente esse lugar caótico de dragões e seres malignos, mas também vai reelaborando e recuperando o novo e diferente em nome da surpreendente e infinita diversidade da criação divina, ou seja, como maravilha que também prova a existência de Deus.

Notas

(1) Joaquim Veríssimo Serrão (pref.), Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura (ests.e transcr.). A Carta de Pero Vaz de Caminha , Ericeira, Mar de Letras, 2000, p. 75.

(2) Fernão Cardim. Tratados da Terra e Gente do Brasil, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp. 211/278.

(3) Idem. Idem, p.211.

(4) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). Itinerário, Viagem ou Navegação de Jan Huygen van Linschoten para as Índias Orientais ou Portuguesas , Lisboa, Comissão Nacional para os Descobrimentos Portugueses, 1998.

(5) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). ibidem, p. 19.

(6) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). ibidem, p. 17.

(7) Bernardus Paludanus é o nome latinizado de Berent tem Broecke (1550-1633), cientista de renome internacional que colaborou no Itinerário de Linschoten, anotando-o.

(8) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). ibidem, pp. 32/34.

(9) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 69.

(10) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 63.

(11) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 65.

(12) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 64.

(13) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 65.

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