EM VIAGEM PELA "LITERATURA DE VIAGENS"
Annabela Rita
19-02-2004

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Partida
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“Pera o mar, melhor é reger-se pela altura do sol, que não por nenhuma estrela, e melhor com astrolábio, que não com quadrante, nem com nenhum outro instrumento.”
João, Bacharel em Arte e Medicina

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Uma tipologia e uma história da viagem, realizada, conceptualizada e tematizada exigiria uma longa pesquisa de equipa. Para começar, o próprio além espacial e o seu desconhecimento geram a ideia e o desejo da viagem, do movimento cognoscente em direcção a, movimento quiçá concretizado fisicamente depois. E as razões da viagem multiplicam-se: as profissionais (comerciais, etc.), as passionais (das cruzadas, das peregrinações religiosas e laicas, etc.) que o turismo acabará por tipificar, as forçadas (exílios, extradições, deportações) e penitentes (através da legião ou da ordem religiosa), as de aprendizagem de juventude, as ditadas por motivos de saúde, etc.. Mas há os viajantes “imóveis”, aqueles que buscam a estranheza na sua própria terra (nos bas-fonds, nos subterrâneos da cidade, na complexidade antropológica do aqui e agora social, etc.) e aqueles que procuram conhecer a sua paisagem interior, que mergulham na reflexão e na memória, que exploram a imaginação, etc.. Infindável matéria!

Na prática, a grande protagonista das viagens que a História consagrou terá sido a que se realizou para territórios despovoados (os arquipélagos atlânticos) ou povoados por civilizações diferentes, consideradas, na altura, “superiores” (Oriente) ou “inferiores” à europeia (1).

O espaço percorrido foi materializando, na sua diversidade e extensão, a passagem do tempo e, com isso, reforçando a consciência da fluência e da vectorialidade deste. Por outro lado, a viagem fez também cartografar a terra com progressivo rigor, substituindo pela observação e pelo registo metódicos a imaginação que pretendia dar conta da geografia do Além e fantasmizar a terrena com ficções da teologia cristã. Exemplo acabado do primeiro caso encontra-se na Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321), onde acompanhamos a viagem do poeta através do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. Do segundo caso, talvez o Jardim do Éden seja o exemplo mais sedutor: Isidoro de Sevilha (560-636) considerava-o o primeiro lugar do Oriente, então acima no mapa, descrevendo-o como cercado de um muro de fogo que chegava ao céu (inacessível por isso) e afirmando-o origem de quatro rios que irrigavam o Mundo. Mais inquietante, na altura, era a problemática localização da terra de Gog e Magog, com a ameaça do apocalipse. Mas os exemplos são inesgotáveis. Avancemos, pois.

Era em função dos objectivos dominantes e/ou exclusivos que a viagem se organizava, se desenvolvia e dava resultados, desde a mais ou menos individual, à expedição de grupo de iniciativa privada com ou sem subsídios, à expedição encomendada, da de descobrimento à de exploração do já descoberto, com objectivo comercial e religioso ou com interesse científico, etc..

Sem pretender referir casos paradigmáticos destas alternativas, não resisto a mencionar uma das chamadas “viagens filosóficas”, de interesse quase exclusivamente científico: a de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), o primeiro brasileiro a chefiar uma expedição à Amazónia sob a égide do governo português, entre 1783 e 1792 (2). Cruzou a bacia amazónica em todos os sentidos, percorrendo cerca de 39.300 Km, protagonizando uma observação sistemática e meticulosa também muito atenta às condições naturais, a problemas da conservação do meio ambiente, chegando a colocar alguns, quer no tocante a espécies animais, quer no respeitante a populações índias.

Doutorado em “Filosofia natural”, teve o cuidado de se aconselhar minuciosamente com Martinho de Mello e Castro, Domingos Vandelli e a Academia das Ciências sobre como organizar e orientar a viagem, o que observar e como. Partiu com todo o equipamento necessário, desde a cozinha de campo, ao laboratório portátil e à biblioteca de cerca de uma dúzia de obras, na sua maior parte, científicas, acompanhado por três assistentes, o jardineiro botânico Agostinho Joaquim do Cabo e os “riscadores” Joaquim Codina e José Joaquim Freire, que só em três anos produziram mais de 400 aguarelas, ilustrando as suas anotações. Rodrigues Ferreira, não apenas redigiu vários relatórios, memórias, estudos monográficos e anotações, como enviou para o Real Museu de História Natural, em Lisboa, 19 remessas com amostras de fauna, flora, minerais e artigos etnográficos.

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Notas

(1) Orlando Ribeiro. Originalidade da Expansão Portuguesa, Lisboa, Edições de João Sá da Costa, 1994, p. 114.

(2) William Simon. Uma esquecida expedição científica à Amazónia no século XVIII /A forgotten eighteenth-century scientific expedition to Amazon in AA.VV.. Viagem Philosophica – Uma redescoberta da Amazónia / Philosophical Journey – a rediscovery of the Amazon – 1792-1992 , Editora Index, Rio de Janeiro, 1992, pp. 29/64.