MEMÓRIAS DE UMA VIAGEM AO FUNCHAL: ANNABELA RITA / Casa do Artista
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03-03-2004

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Através de um zoom, como sob o microscópio, a terceira “legenda” amplifica-se, vivifica-se, ficciona-se e oferece-se-nos em livro de grande complexidade genológica: Pátria Sensível (1983).

Esse projecto de aracnídea tapeçaria poética faz-me evocar a dimensão modelar, de representação diagramática de grandes mestres renascentistas (Kepler, da Vinci, Luca Pacioli, etc.).

Depois, progressivamente, começo a pressentir uma outra perspectiva que os inéditos confirmaram: conclusiva, retrospectiva. A monumentalidade da obra assume uma dimensão religiosa (de ligação) e fúnebre: o(s) Livro(s) são, ao mesmo tempo, os seus hinos fúnebres e os blocos da sua pirâmide , lugar onde se encerrará por fim. Suicídio estético longamente preparado e perpetrado de modo a gerar uma imagem autoral rigorosamente desenhada em evanescente máscara funerária:

“/.../ e já fenece o que só pela morte se revela.”
“Uma lápide de água, sem epitáfio — ou esse que for sendo
escrito pelo vento.” (1)

A pirâmide é, pois, edificação de memória reflexiva. Marcada pelo “silêncio rumoroso” da música do mundo, habitado pela arte, fantasmizado pelos mestres. E pela melancolia que atravessa a Arte e o Pensamento ocidentais como o reconhece D ürer, até explodir em paroxístico grito finissecular (Munch) que ecoará através do séc. XX, fragmentado. Na cripta, o sujeito procura definir-se, inscrevendo-se numa linhagem estética que se identificou com a pátria (Camões, Cesário, Pessoa, etc.), tecendo a sua portugalidade de ocidentalidade , recortando o seu perfil no litoral português, sobreimpressão confundindo ambos os rostos, ambos os corpos sensíveis :

“Frente ao mar meu corpo ardente
e posto em sossego
ainda sonha. A memória e o destino.
De, sendo já velho, me sentir menino
para novas aventuras. Europa
é o caminho. Amanhã é agora.” (2)

Mas esse espaço é, também, lugar de uma confluência estética e filosófica entre Oriente e Ocidente que fantasmiza definitivamente o signo britiano, assumido Na Via do Mestre (2000), dos Mestres (Ode & Ceia, 1985), e exibido na sua expressão mais sintética: o fragmento. No interior deste, cenário de dramático ballet, a imagem volatiliza-se e fascina-me, protagonizando a ars moriendi :

“Animal andrógino que dança
até à morte, a mais volátil, a do jardim
das delícias.” (3)

E a Arte torna-se Arte da Respiração (1988), de Intensidades (1995) e de Frágil Sabedoria ( Da Frágil Sabedoria , 2001), da mesma forma que a obra se reivindica Opus Affettuoso (1997).

Transfigurados de modo calculado pela morte consubstancial à escrita, o autor e a sua imagem, fénixes renascidas, revelam-se figuras crísticas , no sentido estético e retórico da expressão.

Entre esses dois pontos focais, uma perspectiva em movimento ou múltipla: a do Livro das Quedas , do Livro das Obsessões , etc., obras inéditas que o acompanham e antologiam. Por novo zoom , um ano recorta-se, amplifica-se e dá-se a ler em diário que em si acolhe a diversidade genológica e uma antologia pessoal da Literatura universal: Na Barca do Coração (diário de um ano) (2001).

 
As visitas terminaram. As vozes elevam-se em efusão, confundindo-se. E aquele anjo de D ürer persiste apenas nesta página da minha memória.
.

(1) Casimiro de Brito. Livro das Obsessões cit . ibidem , p. 162.

(2) Casimiro de Brito. “Portugal” in Hans van de Waarsenburg (org.). Hotel Europa. 12 Europese dichters over de euro , Maastricht, 2001, p. 5.

(3) Casimiro de Brito e Rosa Alice Branco. ibidem , p. 9.