MEMÓRIAS DE UMA VIAGEM AO FUNCHAL: ANNABELA RITA
Casa-Museu "Universo de Memórias"
www.triplov.com
03-03-2004

e

 
A visita.

Atravessamos a casa segundo a lógica mnésica mais natural: a temática. Cada divisão é dedicada a um tipo de colecção: os cavalos, as gravatas, as pratas, etc.. Em cada uma, os objectos convivem, aproximando os seus tempos e os seus espaços de origem, em jeito de proustianas madeleines ... Entre essas divisões, tecem a transição as escadas, os corredores, as peças de mobília e os quadros, como ‘separadores' que, em vez de exercerem essa função, se constituem como intervalos preparatórios de uma sequência surpreendente, libertando-nos de uma imagem impressiva e tornando-nos receptivos à seguinte, curiosos e anelantes dela. Ou talvez sejam um discurso imbricado noutro, uma continuidade ‘genológica' numa descontinuidade temática. Complexidade apelando a re-visitações e a marcha lenta, reflexiva.

O gesto apaixonado reuniu os objectos. Um abraço ansiando captar o mundo, deslizando, após cada exaltação de descoberta e posse, para o deceptivo sentimento de impossibilidade da plenitude afectiva. A paixão, por vezes, roça uma dimensão religiosa, aquela que lhe dita a etimologia (re-ligare )...

A exposição evidencia essa origem emocionada: multiplica, acumula quase à exaustão do observador os ícones dessa paixão sempre insatisfeita e plural, unificando a diversidade sob esse efeito de indistinção que domina, por fim, o visitante. Como acontece quando tentamos apreciar perfumes intensos e o nosso olfacto, sobreestimulado, se insensibiliza progressivamente à especificidade de cada um, obstando à pretendida selecção...

Esse critério justifica-se e legitima-se na casa e na sua pessoalidade . A visita é, no fundo, uma visitação à intimidade exposta de quem lhe dá o nome, está vivo e a imagina. Como acontece com o signo estético, gerado na comunicação algo perversa entre autor e o fantasma do seu leitor e sobrevivendo na multiplicação de leituras que lhe fantasmizam a autoria. Aqui, porém, há uma guia que nos conduz através da casa e que nos apresenta as peças, representando esse ausente presentificado na terceira pessoa do discurso oral, no nome da casa e no grande painel à direita do jardim. Sinal do desejo comunicativo do coleccionador e do seu visitante, como também de uma tímida e sedutora coquetterie , desenvolvida na hesitação entre a certeza da cumplicidade e o temor da incompreensão.

O projecto de casa-museu é sempre informado de melancólico pressentimento do fim: o legado à comunidade gera-se no desprendimento das peças, na carícia da despedida a objectos que, acima de tudo, cristalizam para o coleccionador os impulsos emocionais e intelectuais que o moveram à sua aquisição, momentos da sua vida, fragmentos dela, vivências intensas, quantas vezes, também, aquilo de que ele abdicou, preferindo-os a outros interesses. Seguir a cronologia das aquisições desde os seus 16 anos seria esboçar a biografia do homem, descobrir-lhe a intimidade nos interstícios da vida pública, acompanhar o seu amadurecimento, a metamorfose dos gostos e da sensibilidade, as nuances da sua relação com a alteridade cultural (1). O seu museu-vivo, lugar de habitação onde os objectos funcionam (mesmo apenas como ornamentos), esvazia-se dolorosamente deles, subitamente tornados ícones alheios em alheio espaço: a sensorialidade da manipulação cede a uma ascética visualidade, iniciando a velatura do estranhecimento ... No templo comunitário, os objectos adquirem a esfíngica imobilidade da morte e do esquecimento do dono, um brilho inalterável sob a luz imaterial dos focos.

No “Universo de Memórias”, o tempo talvez venha a substituir o actual critério humanizador por critérios mais tipicamente museológicos (o cronológico, o cultural, o representativo), delindo ou dissolvendo mesmo a pessoa do coleccionador. A coreografia reordenará, nesse caso, os objectos em função de uma identidade epocal e cultural, seleccionando os mais representativos, apresentando-os envolvidos por um espaço de respiração que os isola e denuncia o abandono da humanidade, mostrando-os numa relação sem surpresas, de consonância. E a deslocação do visitante lembrar-lhe-á uma viagem no tempo e no espaço, arqueológico-cultural. Escamoteadas ao seu olhar, constituindo o fundo do museu, ficarão as peças de menor valor histórico-cultural, sendo muitas delas as mais expressivas da sensibilidade, do gosto e do critério do coleccionador. O problema de qualquer História de Arte, afinal: o mais representativo de um estilo não é, necessariamente, o mais expressivo de um autor.

Até lá, saboreemos o “Universo de Memórias” como se nos oferece, com a sedutora presença-ausência de João Carlos Nunes de Abreu.

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(1) A casa está intimamente ligada ao percurso de vida do doador, trajectória de aquisições. Como jornalista, viveu em Roma, onde trabalhou no Concílio Vaticano II, depois, em Inglaterra, onde trabalhou na indústria hoteleira. Mais tarde, voltou a Itália, tendo estudado Gestão de Empresas em Bolzano e, daí, partiu para várias viagens de estudo e lazer. Voltou definitivamente à Madeira, sua terra natal, em 1968, trabalhando como jornalista, agente de viagens e director de hotel.