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ANNABELA RITA
Emergências estéticas
 
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
1.

"A palavra oscila
avança e vibra no vazio"
Sophia de Mello Breyner Andresen. Figura: Fragmento

"Um eco talvez,
Um eco incessante"
António Ramos Rosa. Viagem através duma Nebulosa ("O Grito Claro")

Em "O Silêncio", de Sophia, tudo começa com "um doce silêncio" que, no início, "pairava" e, depois, "percorria a casa" "como um estremecer profundo" (p. 48). Tempo-espaço de "aliança" universal. Templo. Mas onde "as coisas pareciam atentas" (p. 49), anunciando um acontecimento.

Depois, o literário parece cindir-se pela citação e encontrar nela o motivo do efabulatório (não do discurso): a ficção abre literalmente uma "janela". E, através dela, observa outra ficção:

"[ Joana ] Debruçou-se na janela [ que dava para o jardim ] e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.

Foi então que se ouviu o grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.

Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. /.../ Uma voz que de grito em grito se ia deformando /.../." (pp. 50/1)

A meio da estrutura de "O Silêncio", o seu motivo e centro nevrálgico (1) abre "uma fenda" na unidade do universo, mas também nesse universo da unidade que constitui o próprio texto, factor que é de evocação intertextual: "o grito" (atente-se no artigo definido precedendo esta primeira ocorrência do substantivo), "um longo grito agudo, desmedido" (p. 51) e "o rosto torcido e desfigurado" (p. 52) da mulher lembram irresistivelmente os seus correspondentes pictóricos (2). Porque ela "gritava como se quisesse atingir um ausente" e "acordar um adormecido" (p. 54), como que desejando abalar-me a ponto de estimular em mim a memória obrigando-me a recordar O Grito (1893), de E. Munch (3). E "fenda" parece tornar-se também metáfora do procedimento citacional, pelo qual um discurso convoca outro (abre-se-lhe, cria espaço para ele) cuja alteridade faz reconhecer no seu 'tecido'. Isto, mesmo quando o evocado é substancialmente modificado, como acontece neste caso (em vez da ponte, da figura solitária e do rio, p. ex., passamos a ter a rua, o par e a cidade), e desde que o reconhecimento seja possível.

A exterioridade espreitada, assim emoldurada pela "janela" e subjectivada pelo olhar ficcional, não constitui a realidade desse universo e muito menos o real apontado por alguns índices (o tempo anterior ao 25 de Abril de 1974, de silêncio ou grito amordaçado, de prisão, etc.). Ela impõe-nos a objectividade de uma representação pictórica, a de Munch, construindo assim uma perspectiva rigorosamente estética: o ponto de fuga não nos conduz para o real, mas para outro artefacto, o quadro. E, nessa colocação em perspectiva, afirma uma relação cognoscente entre ambos os universos e os cânones de que relevam, ou seja, assume e propõe-me para reflexão um diálogo estético , o seu.

Curiosamente, aqui, a citação faz evocar o quadro, mas assume-lhe um fragmento (o que lhe dá o título) como tema a tratar, a elaborar: o grito torna-se matéria manipulada (deformada, conformada) em novo universo, com um par junto de um edifício prisional, à noite, etc.. A memória fornece, pois, o elemento que o literário assimila e torna inteligível (na verdade, explicita a sua própria compreensão dele) através do discurso: cria-lhe uma história (porque de narrativa se trata) que duplamente o enquadra. Janela, olhar e ficção combinam-se para, a um tempo, impor e esfumar o pictórico. E é nesse jogo entre evidência e diluição da memória, visível no modo como um signo absorve o seu antecedente, que a identidade se tece e que o movimento estético se processa...

Por fim, a mulher calou-se e, amparada pelo homem que a acompanhava, desapareceu, virando a esquina. Tudo termina com o regresso do silêncio, mas diferente: "opaco e sinistro", informado do drama que o invadiu, tornando tudo também diferente.

E, nessa Joana que, então, "atravess[a] como estrangeira a sua casa" (p. 55), creio reconhecer-me eu, leitora, a reler agora o texto, a reinterpretá-lo em função do que evoquei: a paisagem textual alterou-se sob o impacto da de Munch e alterar-se-á para mim sempre que eu for capaz de novas associações...

 

(1) Sobre a pregnância semântica do centro , cf. . Rudolf Arnheim. O Poder do Centro, Lisboa, Edições 70, 1990.

(2) É quase irresistível a evocação de uma passagem do diário de Munch que faz lembrar a cena do quadro:

"Eu estava a passear cá fora com dois amigos e o Sol começava a pôr-se - de repente o céu ficou vermelho, cor de sangue -. Eu parei, sentia-me exausto a apoiei-me a uma cerca - havia sangue e línguas de fogo por cima do fiorde azul-escuro e da cidade - os meus amigos continuaram a andar e eu ali fiquei, em pé, a tremer de medo - e senti um grito infindável a atravessar a Natureza ." . (cit. por Ulrich Bischoff. Munch , Lisboa, Taschen, s.d., p. 53, sublinhados meus)

As descrições de Sophia e de Munch assemelham-se de modo incontornável: "Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro." (p.51) faz ecoar "um grito infindável a atravessar a Natureza".

(3) Referir-me-ei ao quadro de 1893, do qual existem múltiplas versões.