ANA LUÍSA JANEIRA
A AMAZÓNIA TEM DE SE VER DE AVIÃO!








ENTREVISTA À PROF. ANA LUÍSA JANEIRA
(FACULDADE DE CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA) REALIZADA PELOS DRS.
INÊS BOLINHAS E MIGUEL SANTOS SILVA
(FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA)
Lisboa, 2003-04-09

- Em primeiro lugar, gostaríamos de lhe perguntar quais são as razões que levam uma professora doutorada em Filosofia a leccionar no Departamento de Química e de Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Porventura ajudarão a explicar o espírito do projecto em que nos convidou a participar? Porquê a Filosofia numa Faculdade de Ciências?

A.L.J.- Bem, eu tinha tudo para ter sido medievalista! Gostei muito da Idade Média. Quando fiz a licenciatura, além de Filosofia Medieval, tínhamos ainda a disciplina de Cultura Medieval. Na altura, pensei que eram aquelas temáticas que me iam cativar na vida. Só que depois tive duas disciplinas que mudaram o meu rumo: História da Filosofia Moderna e História da Filosofia Contemporânea. Ambas eram leccionadas pelo Professor Júlio Fragata, que vinha da Faculdade de Filosofia de Braga e que tinha uma forma de dar as aulas muito metódica, muito bem estruturada. Ele já estava habituado a dar aulas há muitos anos! Comecei a achar os temas tão cativantes que «virei o meu barco» para a contemporaneidade. Acabei por decidir que ia fazer a minha tese de licenciatura sobre Simone Weil. Depois, encarreirei-me para o doutoramento sobre Teilhard de Chardin. Foi quando contactei a fundo com este pensamento que comecei a sentir a fundo a problemática das ciências. Apercebi-me de que valia a pena ter um olhar filosófico e uma reflexão crítica sobre as Ciências. E então aproveitei o facto de poder ir para França e Inglaterra como leitora de Português para fazer a minha especialização em Filosofia das Ciências. Quando voltei para Portugal, estava já convencida de que o meu trabalho interventivo era mais necessário junto dos cientistas do que dos filósofos. Pensei que haveria vantagem em que os alunos de Ciências fossem interceptados por professores de Filosofia e que estes últimos fossem interceptados por professores de Ciências. Por isso é que, apesar de ter dado aulas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nunca lá dei Filosofia das Ciências. Quando se proporcionou, tomei a opção de integrar a Faculdade de Ciências. A Química foi uma pura coincidência! Em 1976 os alunos da Secção de Química (nessa altura era secção) mostraram-se interessados.

- E como é que, neste momento, vê essa dupla receptividade? Como é que os alunos de Química recebem Filosofia e como é que, geralmente, alunos de Filosofia recebem as Ciências Exactas?

A.L.J.- Creio que não se pode generalizar. Depende da época, depende do contexto e de certas circunstâncias. Eu penso que estas áreas – que nós, geralmente, chamamos História e Filosofia das Ciências – são muito influenciadas pelos contextos envolventes. Os alunos de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências (antes da reforma recente) tinham que optar entre estas disciplinas: Filosofia das Ciências, História das Ciências Sociologia das Ciências. Todos os anos, há sempre um pequeno grupo de alunos que se interessa muito pela Filosofia. Eu acho que é assim: numa turma de vinte, cinco optavam por Filosofia das Ciências. Quanto ao contexto dos alunos de Filosofia, não tenho informações muito precisas porque não é a minha área de trabalho. No entanto, sei que, felizmente, na Faculdade de Letras estão professores de Ciências Exactas a dar essas áreas. O que é muito bom!

- Pensa que essa permeabilidade interdisciplinar tem vindo a aumentar ou a decrescer?

A.L.J.- Os interesses gerais da sociedade portuguesa têm vindo progressivamente a centrar-se no material veiculado pelos media, sobretudo pela TV. E isso tem vindo a crescer desde há vinte e cinco anos para cá. As pessoas que me conhecem sabem que eu tenho grande apreço pela interdisciplinaridade; penso que é essa a grande tónica da minha personalidade, do ponto de vista do ensino e também do ponto de vista da investigação. Tenho trabalhado muito para que as diferentes disciplinas – ou, melhor dito, os diferentes enfoques dos problemas – sejam passíveis de se encontrarem, de conversarem, de trocarem impressões; ou seja, de haver uma intercepção dos vários ramos de conhecimento! Acontece que, sobre esse aspecto, não tenho a menor dúvida de dizer que, neste momento, no caso da sociedade portuguesa (pelo menos) há um retrocesso no caminho da interdisciplinaridade e isso, para mim, constitui algo de aterrador. Tenho muita pena de que não estejamos a caminhar para um muito maior encontro entre as várias áreas do conhecimento e, pelo contrário, tenhamos cada vez mais as especialidades muito fechadas sobre si. Na minha óptica, isto equivale a um grande empobrecimento.

- Ainda a respeito do entrecruzamento entre a Filosofia e as Ciências, há um outro pormenor interessante, que é o seguinte: quando actualmente se fala na cooperação entre estas duas áreas de saber, pensamos imediatamente na Bioética. Qual é a sua posição sobre a Bioética? Por que é que não se decidiu a enveredar por este caminho e enveredou por uma conceptualização diferente da conceptualização do estudo científico?

A.L.J.- De facto, a sociedade espera da Filosofia uma resposta para os problemas da Bioética. Por outras palavras, a sociedade quer que a Filosofia tenha uma função legitimadora. Mas eu não a vejo como legitimadora. Para mim, a Filosofia é reflexiva e crítica!

- Pensa, então, que a sociedade procura substituir o dogma teológico pelo dogma filosófico?

A.L.J.- Não. Penso que há sectores na sociedade que esperam que a Filosofia dê razões aos cientistas para fazerem o que quiserem. A Sociedade, neste momento, está receosa e tem razões para isso! A ciência não é neutra! Em face disso, o que é que acontece? Acontece que as pessoas, em determinados momentos, esperam que os filósofos assumam certas posições, com o intuito, não reflexivo nem crítico, mas de legitimação! Ora eu não atribuo à Filosofia essa função. Porque se a sociedade pedisse aos filósofos pareceres críticos e reflexivos, então penso que o filósofo deveria responder! Por outra parte, embora haja tendências no campo da Filosofia, eu não vejo razões para que só se faça Filosofia dentro das tendências existentes. Quando penso numa região como a Amazónia, na forma como foi sujeita aos mais diversos enfoques científicos... parece-me interessantíssimo tratar a conceptualização destas pesquisas!

- Através das suas viagens ao Brasil, o que concluiu acerca da interdisciplinaridade? Pratica-se mais interdisciplinaridade no Brasil do que cá?

A.L.J.- Para mim, é claríssimo que todo o continente americano é mais interdisciplinar do que o europeu! E isto desde o Canadá à Argentina! Noto nos «novos mundos» uma abertura diferente, que não encontramos aqui na Europa. A Europa tem a seu favor determinadas características – é indiscutível – , tem um passado que se justifica certas das suas posições, mas ainda tem muito a descobrir, no sentido de se apontar para o futuro. Neste momento, detecto uma tendência na Europa: a de nós ficarmos muito fechados em todos os sectores das nossas tarefas, das nossas certezas e das nossas «fixidezes».

- Encontra maior abertura ao seu trabalho na Europa ou na América?

A.L.J. - Nunca tive problemas. É igual. Sempre semeei ao vento e sempre encontrei um vento para levar a semente seja para onde for! Desde que voltei a Portugal, em 1974 (já lá vão quase trinta anos), nunca tive problemas. Agora, o facto de não ter tido dificuldades não implica que não haja momentos em que haja maior recpetividade do que noutros....

- Mas como é que surgiu esta ideia específica de investigar a Amazónia (veja os resultados em http://www.amazonia.no.sapo.pt) ?

A.L.J.- Aconteceu o seguinte: pediram-me uma colaboração na Universidade Federal do Rio de Janeiro e uma das alunas veio ter comigo – disse-me que estava a trabalhar no MAST (Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro) e que a pessoa com quem ela trabalhava, a Professora Heloísa Domingues, estava muito interessada em me conhecer. Eu então acedi em ir ao MAST. Curiosamente, eu já conhecia a Professora Heloísa Domingues por um artigo que ela tinha escrito sobre o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Quando cheguei, deparei-me com uma secretária com vários livros, mas um tinha uma capa muito bonita. Então eu disse: «Que curioso, acho esta capa muito bonita!». A Professora Heloísa Domingues mostrou-me o livro, que se chama Um outro olhar. Diário da expedição à Serra do Norte, de Luís de Castro Faria (ver Luiz de Castro Faria, Um outro olhar. Diário da Expedição à Serra do Norte. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul Editora, 2001). Eu fui aluna de Claude Lévi-Strauss em Paris e estudei muito os Tristes Tropiques... mas confesso que eu não pensei que este diário da expedição à Serra do Norte, tivesse a ver com essa viagem! Então, a Professora explicou-me que Luiz de Castro Faria tinha sido escolhido como fiscal – dado que sempre que se faz uma viagem científica, ou uma expedição científica ao Brasil, é sempre escolhido alguém como fiscal, por parte do governo brasileiro, representando ainda o Museu Nacional nessa viagem e que, passado uns anos, acedeu a que se publicasse o diário. E ela disse-me assim, «Ah! Se fizer uma resenha» – eu perguntei: «Resenha? Nós não temos esse termo em português». E ela disse: «Pois não!» Depois de me ter explicado, percebi que era uma recensão crítica. Então acrescentou: «Se fizer uma recensão crítica o livro é seu»; e passou-mo para as mãos. Assumi que fazia... porque, realmente, a capa era muito sugestiva. Seduziu-me imediatamente. No caminho comecei a pensar como é que uma filósofa se ia colocar face a um diário de uma expedição a que o próprio Levi-Strauss chama uma expedição etnográfica? Comecei a ler calmamente o livro, a ser cada vez mais enfeitiçada pelas imagens e, naturalmente, comecei a fazer pontes, no meu espírito, com outras viagens – nomeadamente a de Alexandre Rodrigues Ferreira, que foi a grande expedição científica dos finais do século XVIII que Portugal organizou na Amazónia. Dei por mim, a ler muitas coisas. Depois, meti-me num avião e fui para a Amazónia; tinha dez dias livres, entre vários afazeres, no Brasil. Apercebi-me de algo muito interessante: da evolução do modo conceptual que, desde o século XVIII até hoje, tem sofrido a abordagem da realidade amazónica; não só feita por europeus, mas mesmo pelos próprios brasileiros e até outros sul-americanos. Percebi que este era um problema filosófico que me interessava agarrar. E, neste contexto, comecei a pensar se em vez da dita «resenha» ou «recensão crítica» não seria muito mais interessante montar um site. Percebi também que esta parte da investigação devia ser complementada por trabalhos de alunos. Os meus alunos da disciplina de História das Ciências (Departamento de Química e Bioquímica da Universidade de Lisboa) sentiram-se motivados para o tema. E depois, como me propiciaram algumas aulas no Mestrado em Filosofia na Universidade Católica, também anexei os alunos a este projecto. E cá estamos nós!! É esta a situação. E realmente é um percurso.

- A propósito do título do livro Um outro olhar, isso evoca-me uma outra questão, que é a da diferença entre o olhar do norte e o olhar do sul. E com isto estou a referir-me à atitude perante os problemas ecológicos, os atentados à biodiversidade, a relutância de alguns países em assinarem o protocolo de Kyoto... O que é que a Professora pensa sobre estes assuntos?

A.L.J.- Olhe, eu acho que a Amazónia tem de se ver de avião. Quando sobrevoamos a Amazónia, apercebemo-no de algo tão grande, tão majestoso, tão magnífico, tão de outra escala, que... talvez seja o destino da Amazónia.! É que, com tanta expedição que já houve à Amazónia, o interesse com que seguimos a Eco 92... Depois o texto, por exemplo, de Cristóvão Buarque, em que ele diz que se realmente o Miterrand quer mundializar a Amazónia, mundializemos o Louvre e o British Museum! Acho que a reacção do Cristóvão Buarque foi perfeitamente correcta. Porque é que nós havemos de ir mandar para a Amazónia e os brasileiros não irão mandar noutras situações? Agora, é evidente que há imensos interesses mundiais e mesmo dos próprios brasileiros. Lembro-me perfeitamente de um texto (se não é uma carta, é um texto) que li algures em que se falava do interesse que o Marquês de Pombal demonstrava pela cana caiena – que até terá motivado um Jardim Botânico, muito antigo, em Belém do Pará, porque se sabia que a cana caiena se estava a dar muito bem na Guiana Francesa. Por conseguinte, aquele espaço seduziu desde sempre os nossos olhares: o olhar económico, o olhar financeiro, o olhar científico, o olhar estético... Quando contactamos com a Amazónia, apercebemo-nos de que aquilo é um mundo que todos os nossos sentidos têm que ver. As temperaturas da Amazónia, o cair da tarde na Amazónia... Quando isso, quando acontece, ficamos radiantes porque já estamos fartos de tanto calor... Mas nesta última viagem, a respeito de algo que faz parte de um mundo tão diferente como a Amazónia, mudou uma coisa: a chuva ao final da tarde. Da última vez que tinha ido a Belém do Pará, ainda se contava que a gente tinha que ter cuidado à tarde porque às cinco horas chovia sempre, pelo que tínhamos de ir prevenidos, mesmo que estivesse um sol maravilhoso e um céu muito limpo. Confesso que, na altura, pensei que fosse um exagero, mas às 17:00 choveu. Desta vez, não me esqueci de perguntar: «Então à tarde temos de sair com qualquer coisa que nos proteja da chuva?». Enfim, a pergunta é quase retórica, porque no Brasil não há nada que nos proteja da chuva; o melhor é apanhá-la ou parar! E responderam-me: «Não, não! Isso era antigamente, porque agora houve grandes alterações climáticas.» E acho muito interessante ver também as contribuições que os alunos trazem para compreender este novo mundo. A primeira grande investigação portuguesa na Amazónia foi a de Alexandre Rodrigues Ferreira, nos finais do séc. XVIII, que durou nove anos. Hoje, curiosamente, nós temos a possibilidade de fazer pesquisas espaciais em grandes centros que estão na Alemanha, em S. Paulo e nos E.U.A. !!! – e isso mudou completamente o conceito de pesquisa. É este o enfoque que eu gosto de trabalhar.

- A respeito do conceito de pesquisa, creio que ainda há um outro aspecto a esclarecer: quando aceitou a proposta da Professora Heloísa Domingues e aceitou tratar a Amazónia como objecto filosófico, a sua atenção dirigia-se para a natureza física, para a natureza humana, ou para ambas? E o próprio ângulo de focagem tinha que ver com a História das Ciências ou com a História da História das Ciências sobre a Amazónia?

A.L.J.- Eu achei que era uma coisa tão complexa que eu tinha de ir lá. Já tinha estado duas vezes na Amazónia, mas tinha de voltar. Podia ter-me ficado pelos livros, a minha atitude poderia ter sido a ficar pelas bibliotecas – fosse a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, fosse em São Paulo – e investigar por ali a Amazónia. Mas eu não escolhi esse caminho. Pensei: «Não! Eu... Tudo o que possa acontecer a seguir, tem de passar por eu ir cheirar aqueles odores, passear-me; provavelmente transpirar (porque, de facto, o clima é muito forte) e provavelmente até andar naqueles barcos típicos (nos quais, confesso que não tive coragem de andar); tenho que sentir como é que aquelas pessoas são». Eu senti que era muito complexo, porque todas as pessoas que lá estiveram em expedição acabaram por se deixar envolver por muita coisa. Agora, senti que podia transformar o desafio de uma análise de Um outro olhar numa questão filosófica, que eu não iria abordar como etnólogo, nem como antropólogo, nem como financeiro, nem como um político. Percebi que teria que encarar este livro como uma obra que corresponde a alguns problemas filosóficos; mas problemas que eu mesma teria de ser capaz de descobrir!

- Outro dia apanhei o final de um programa de televisão sobre a Amazónia, brasileiro, que terminava mais ou mesno com estas palavras: «É aqui tão perto, é dentro do nosso país e, provavelmente, conhecemos melhor o temperamento dos nosso vizinhos argentinos do que o do habitante do Amazonas, mesmo que viva na cidade, [portanto, na capital, em Belém]». Também sentiu essa grande diferença de temperamento entre o habitante das cidades da Amazónia e do resto do Brasil? É de facto um lugar único que influencia o carácter das pessoas?

A.L.J.- Por acaso, no Rio de Janeiro houve dois prenúncios, digamos assim, da relação que iria ter com a Amazónia. Uma, foi quando passou pelo Rio uma amiga de um amigo meu, que é jornalista em Belém do Pará. Eu tive apenas um dia de contacto com ela, mas a forma dela falar era muito mais descontraída. Eu logo me lembrei, no Rio, de que iria estar face a pessoas com um ritmo de vida muito diferente, porque se trata de toda uma outra forma de estar! E, efectivamente, nos climas quentes temos uma forma de estar um pouco diferente, não é? Porque há realmente um peso da temperatura. Ouvindo-a a falar, eu dizia assim: «Ai! É verdade, eu lembro-me de que quando estava na Amazónia as pessoas eram mais lentas, andavam assim calmamente e falavam mais calmamente.» O outro prenúncio aconteceu quando contactei com o projecto «Saúde e Alegria». É um projecto extremamente curioso. Foi lançado por um jovem médico que, ao terminar o curso de Medicina, foi para a Amazónia. Chama-se «Saúde e Alegria» , porque a mensagem para os habitantes amazónicos passa, fundamentalmente, por uma estratégia que acho muito interessante, um circo. Quer dizer, em vez do grupo que anima este projecto chegar a uma aldeia e começar o médico a falar, a dizer que é preciso fazer vacinas, que é preciso isto, que é preciso aquilo, a mensagem passa através de um circo. Esse circo chama-se «Circo Mocorombo», há um jornal que também tem o mesmo nome e há um barco que se chama «Saúde e Alegria». A sede do projecto é em Santarém – curiosamente a população com quem falei dizia-me logo que Cabral tinha nascido em Santarém, cá em Portugal. Sentiam muito orgulho de terem o mesmo nome da terra de Pedro Álvares Cabral! Mas, voltando ao projecto, a ideia do jornal também é muito interessante. Porque o trabalho deles é, de facto, muito difícil. Um dos problemas é que todas as pessoas que vivem na Amazónia se apercebam que precisam de pôr umas gotinhas na água para que a água não mate. Quer dizer, basta ensinar a pôr umas gotas de um desinfectante na água para que aquela criança, que tinha, por exemplo, uma previsibilidade de vida reduzida possa vir a ser um adulto. Isto é estranho para nós, que estamos habituados às águas canalizadas! Mas é preciso ensinar estas pequenas coisas, como também a respeito de muitas outras questões, como a gravidez, a do aleitamento, das próprias mulheres relativamente ao artesanato, o problema dos preservativos, tudo isso, então, é ensinado, é apresentado às aldeias como algo que faz parte de um circo. Eu acho a ideia extremamente interessante. Tive a sorte de antes de chegar a Santarém, ver no SESC de Pompea, em S. Paulo, uma exposição sobre a Amazónia. Isso também foi uma forma de me inteirar de certas situações. Por exemplo, há muitas povoações que só estão acessíveis por rio, por água. Em Santarém, eu ia ter ao cais e via partir os barcos à noite. Basta pensar que o rio e os seus afluentes é que dão acesso ao resto do mundo! Embora as cidades como Santarém tenham outros acessos, havia sempre imensa coisa junta ao cais... Aquele rio tem uma função mítica; nunca estive em nenhum sítio em que me apercebesse que um rio tem o peso que tem por lá! Quando um barco chega... é uma festa!

- Vou procurar fazer uma pergunta que talvez tenha uma aparência um bocado provocatória... e que procura ter uma função crítica relativamente ao projecto em que estamos a trabalhar. Será que colocar este rio, esta «alteridade» relativa ao rio Amazonas, na Internet, não faz correr o risco de reduzir aquilo que é o Outro a uma imagem que nós fazemos dele? E digo isto porque a maioria de nós não teve ainda disponibilidade para lá ir!. E lembro-me também de Alberto Caeiro quando dizia que não havia rio mais bonito do que o da sua (dele) aldeia. Um habitante de uma aldeia, ou de uma cidade, um habitante de Coimbra, ou de uma terra qualquer, que todos os dias na sua infância conviveu com o rio da sua aldeia, bem pode, talvez, vir a Lisboa e aquele rio que ele leva na memória é o rio da sua aldeia. Qual é que é a possibilidade que nós temos de levar o rio Amazonas para a Internet? E por que razão é que não seria mais eficaz (se existe alguma intenção em criar em nós uma relação com a natureza) cada um de nós ir procurar aquilo que é o rio da sua aldeia em vez de ir para o rio Amazonas?

A.L.J.- A primeira vez que fui à Amazónia, lembro-me de que as pessoas falavam muito do encontro das águas, que é quando o rio Negro se encontra com o rio Solimões. Não sei se sabem, mas o rio Amazonas tem vários nomes desde que nasce até que desagua! E só depois do encontro – penso que estou a dizer correctamente – é que passa a chamar-se Amazonas. O rio Solimões é amarelado e tem cor de areia; o rio Negro é de cor preta, barrento. E eles não se juntam! Caminham lado a lado! De um lado segue um rio amarelado e de outro um rio preto. Confesso que não foi assim nada que me encantasse! Também não me encantou assim muito ver a preguiça (eles mostram uma preguiça mais ou menos anestesiada). Agora, uma coisa é entrar na selva (onde nunca entrei). Pessoalmente, tenho que confessar que só de cima, do avião, é que imaginei que aquilo deve ser uma coisa que nos escapa... Por isso é que digo que tem que se ver de avião! Enquanto não se vê, há coisas de que não nos podemos aperceber. As árvores são altas, como casas, e há muitas árvores parasitas umas das outras; por conseguinte, a gente nunca sabe onde começa e acaba uma árvore. Mas quando sobrevoamos, temos a noção de que aquilo é imenso. Mas claro que quem penetra na selva tem uma outra percepção. Não foi o meu caso, embora imagine que seja uma experiência muitíssimo forte.

- E o rio da minha aldeia?

A.L.J
.- Bem, nada impede que, a partir de agora, fiquem mais sensíveis aos vossos rios! Há uma coisa engraçada... O rio da minha aldeia.... Eu sou do Porto, o rio da minha aldeia é o rio Douro. Mas o Douro nunca me fascinou. Sempre que estou fora a minha lembrança de Portugal passa pelo Tejo. A imagem de Portugal que eu tenho é o Tejo, que não é o rio da minha aldeia! Mas eu não tenho nada contra que todos nós tenhamos uma visão simultaneamente local e global da realidade que nos rodeia. Mas eu acho que, depois do 11 de Setembro, e nomeadamente, desta guerra, temos de nos aperceber de que temos a obrigação de não ficarmos só pelos rios da nossa aldeia. Embora não devamos esquecer o rio da nossa aldeia! Só poderemos ser cidadãos conscientes da nossa aldeia se tivermos também a consciência do mundo e nomeadamente, da necessidade de respeito pelos outros. E se há realidade em crise, é a da Amazónia. E sabe-se tão pouco sobre a Amazónia! Não é por acaso que se chama Universidade à Universidade, tem a ver com universal, tem que facultar aos alunos uma abertura com os rios das outras aldeias. Essa função é muito importante.

- O que pensa acerca das restrições – necessárias, porquanto previnem a chamada «pirataria» – que o governo brasileiro impõe à entrada de cientistas na Amazónia?

A.L.J.- Sobre isso, costumo aconselhar as pessoas a consultarem – até acho que está bem feito, provavelmente terá as suas restrições é evidente – um site, do CNPq que tem a ver com as expedições científicas. Eu acho que é curiosa a evolução da legislação brasileira relativamente a como aquele espaço se deve manter fechado ou aberto às entradas de equipas de investigação, nacionais e estrangeiras. Presumo que isso tem que ser feito com bastante critério, não é? Porque, de facto, já perdeu muito. Como é que vamos controlar melhor aquele espaço? É complicado, mas, provavelmente não é mais complicado que outras situações do mundo da pesquisa científica.

- Há uma coisa que dá que pensar e que se relaciona com o mundo em que vivemos. Se nós vemos potências estrangeiras invadirem países do Médio Oriente em busca de recursos naturais, quem nos garante que, quando chegar a crise da água, essas mesmas potências não se vão voltar para o Brasil?

A.L.J.
- Exactamente! Não sei se sabem, mas o Brasil está a fazer correr um e-mail, muito curioso, sobre isso mesmo. Eu acho que tem todo o cabimento! Quando chegará o caso do Brasil, não é?

- Gostaria de ouvir mais acerca do seu lema de fazer, a partir de um objecto comum, um objecto filsófico. Trata-se, de facto, de um problema epistemológico... que está na base deste projecto! É um outro olhar epistemológico, pouco habitual.

A.L.J.- Isso prende-se, primeiramente, com as opções de cada um. Eu sempre me deixei fascinar pela constituição de um objecto filosófico a partir de uma realidade que, à partida, não constitui, não foi trabalhada, do ponto de vista da Filosofia. E nessa perspectiva, acho muito interessante quando, aparentemente, não há uma problemática filosófica num determinado tema, ou determinado processo, ou determinada realidade, e tentar descobrir o que é que a tradição filosófica tem a ver com aquilo! Em que é que aquilo pode ficar mais enriquecido se fizermos incidir sobre a problemática, sobre o acontecimento, sobre a realidade, uma reflexão filosófica? Bem, a construção filosófica de uma realidade, à partida não filosófica, tem sido, do ponto de vista da Filosofia, aquilo que mais me tem fascinado. E, por conseguinte, neste caso concretamente, ao ler-se o site http://www.amazonas.no.sapo.pt perceber-se-á todo um conjunto de démarches, no meu trabalho e no trabalho dos alunos, que ajuda a perceber que o conceito de viagem científica, ou se quiserem, de expedição científica, ou se quiserem de programa científico, se alterou ao longo dos tempos. O conceito com que se vai hoje não era o mesmo conceito do século XVIII! O conceito foi, sob certos aspectos, enriquecendo-se e, sob outros (provavelmente) empobrecendo-se – mas houve uma alteração no conceito. Por conseguinte, temos de ter muito cuidado quando nos abeiramos de certas realidades que não são exactamente as nossas: nem devemos transpor para a realidade actual o conceito de ciência do século XVIII, nem olhar um texto do século XVIII na perspectiva do que é hoje viajar e fazer uma expedição científica. Neste caso, também há um aspecto aliciante que é o aspecto de inicialmente os próprios cientistas – no caso, Alexandre Rodrigues Ferreira – falarem de uma viagem filosófica. Por que é que aquela viagem não era simplesmente uma viagem? Por que é que não era uma viagem científica, mas uma viagem filosófica? É muito aliciante para um filósofo tentar perceber este aspecto. E, inicialmente, foi por aqui que comecei a pensar.

- Que ontologia é que – se é que este outro olhar pressupõe uma ontologia – pode sustentar a tradicional posição ambientalista de uma defesa da biodiversidade ou de um regresso à natureza? Ainda estamos a falar da natureza da física de Aristóteles... ou há aqui um dinamismo que tem a sua história e a Amazónia futura não é...





A.L.J.- Eu acho que hoje já se começa a reconhecer o seguinte: é que não há Natureza. O que há é uma natureza culturalizada. O Homem já andou quase por todo o lado! E, sendo assim, a Natureza já não é aquela entidade pura e sedutora para os olhares românticos. Na Amazónia há zonas que ainda não foram culturalizadas, mas quando nós falamos da Amazónia, já é uma realidade com uma percentagem de culturalização; mesmo que a culturalização não seja permanente, ela é esporádica. Daqui que os conceitos de Natureza e de defesa de Natureza já não sejam os mesmos que chegaram até nós!

- Mas quando afirma que já não existe Natureza, ou que não existe Natureza, quer com isso dizer que, por exemplo, a concepção para os índios da terra onde habitam (neste caso, os índios da Amazónia) é de tal maneira diferente da nossa concepção de Natureza que não se pode dizer, realmente, que há uma Natureza?

A.L.J.- Ah! Não vou por essas abstracções. Penso que a Natureza para o índio é a Natureza para o índio e a Natureza para nós é a Natureza para nós. Duvido que haja uma só Natureza. Não sei até que ponto, por exemplo, estou legitimada, quando falo da Natureza, para esperar que o índio tenha o mesmo conceito que eu tenho. Eu acho que não estou! E nem precisamos de ir para o caso dos índios!

- Esbate muito a distinção entre o artificial e o natural, ou não? Porque para eles, se calhar, uma incorporação necessária à sobrevivência é tão natural como uma árvore que lá está há 200, 300 anos.

A.L.J.- Neste momento já não tenho muito tempo para responder. Talvez fosse até interessante responder por escrito. A questão dos conceitos tem que se lhe diga. Pessoalmente, por exemplo, não digo «a ciência»; digo «as ciências». Mas também não digo «as filosofias». Não sei porquê! Digo: «a Filosofia» e «as Ciências». Eu acho muito difícil que haja um conceito de Filosofia para todo o mundo. Acho que também é interessante o facto de usarmos a mesma palavra, mas com uma carga diferente... e para isso não é preciso ir à Amazónia!