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:::::::::::::::::::::::::::::::::Ana Luísa Janeira

 NOTAS DE VIAGEM*
SOBRE FORMAS DE GLOBALIZAÇÃO HISTÓRICA
EM MISIONES

O POVOADO NOS 30 POVOS (1)  
Não tem sido suficientemente estudado, e muito menos avaliado, em que medida a realidade missioneira terá correspondido a um desígnio intencional visando articular o real e o simbólico. A exigência epistemológica interveio no início, ao tomar consciência que precisava da colaboração de outras disciplinas; contudo o método geral do trabalho dependerá das hipóteses teóricas e das descrições práticas, trocadas à medida que cada um elabora a sua participação e deseja ser contaminado pelas outras participações.

Apostado em contribuir para reduzir um vazio interpretativo, o resultado final deriva do entrelaçamento entre as descrições sobre a Terra, a Paisagem, as Gentes e o Povoado. Hermenêutica que permitirá insistir em elementos fundamentais para pensar como esta configuração se constituiu, a jusante de uma associação específica entre Cultura e Natura.

Em termos epistemológicos – entendendo-se por epistemológico o horizonte teórico que focaliza e constrói um objecto para criar uma inteligibilidade a partir da reflexão filosófica sobre o conhecimento científico num contexto de muitas outras disciplinas – não tem sido suficientemente estudado, e muito menos avaliado, em que medida o povoado missioneiro terá correspondido a um desígnio intencional visando articular o real e o simbólico.

Esta fragilidade decorre do facto de se estar ainda numa fase onde escasseiam estudos interdisciplinares.

E no entanto, este é um ponto que merece uma atenção interpretativa particular e de que poderão resultar, aliás, produtos servidos pela acção conjunta de vários quadrantes cognitivos.

Assim sendo, é importante acrescentar que a perspectiva epistemológica interveio no início, ao tomar consciência que precisava da colaboração dos demais, foi-se constituindo depois enquanto lançava hipóteses teóricas trocadas à medida que cada um elaborava a sua participação, e desejou sempre deixar-se contaminar por outras formas de interpretação.

Por isso, a escrita final irá resultar da conjugação entre artigos anteriores (JANEIRA, 1999a, 1999c, 2003a) e descrições sobre a Terra, a Paisagem e as Gentes, no sentido de reunir contributos para reduzir um vazio interpretativo. Hermenêutica que permitirá insistir em ângulos de visão para pensar uma configuração arquitectónica-urbanística, a juzante de uma associação particular – com as suas conquistas, as suas ambiguidades e as suas limitações – entre Cultura e Natura.

Na verdade, a missão foi seguindo princípios e determinações modeladas pela mundividência jesuítica, quando utilizava, aproveitava, respeitava e explorava as condições materiais da geografia envolvente, com capacidade para determinar, por meio de ambas, uma certa paisagem. Ou quando afrontava e complementava antropologias e psicologias distanciadas por estados de corpo e estados de alma diferentes.

Mas que isso não impeça de reconhecer como a presença guarani interveio igualmente no processo particular de cada missão.

Olhando o mapa morfológico é notório ser o território favorecido em planaltos entrecruzados por redes hidrográficas disseminadas (2), com linhas horizontais e verticais, propícias a uma comunicabilidade não precisando de subterfúgios, porque lhe bastava ser montada com base numa circunstância pré-existente.

Olhando melhor esta via facilitadora de intercâmbios, impõe-se a necessidade de levar mais longe a leitura e de avançar quanto é manifesto o propósito dos Trinta Povos conjugarem uma localização concreta que lhes permitisse estar relativamente juntos, poderem ser vistos pelo menos um a um e terem conjunturas gerais de proximidade, por via de rios, ribeiras e riachos (3).

Elemento sobremaneira importante quer no relacionamento interno, quer ainda nas ligações mais longínquas a Córdoba, sua capital administrativa, quer finalmente a Buenos Aires, escoamento privilegiado para a Europa e por ela ao restante mundo, através do caudaloso Rio Paraná e do fascinante Rio da Prata.

Como é sabido, a estrutura edificante foi-se multiplicando mais ou menos invariavelmente, ao longo de três séculos.

Este aspecto permite induzir quanto a reprodutividade acarreta consigo a força geradora do modelo. Além disso, comporta sempre uma essência arquetípica a possibilitar o encontro entre linhas inovadoras e linhas permanentes, talvez perenes.

No caso, é gizado à volta de um quadrilátero. Quadrado que tem uma história urbanística e uma história arquitectónica.

Pela genealogia encontrava os traçados do ágora grego e do fórum romano, muito remotamente, a praça medieval, de seguida, ou também a vetusta Grande Plaza colonial espanhola, mais próxima.

Paralelamente, tinha efeitos na arquitectónica do pátio, quando as casas e os colégios jesuíticos o acolhiam, qual núcleo de um panoptismo antes de Bentham, mas já com a ingerência disciplinadora a que Michel Foucault foi sensível e contra a qual foi sagaz e lucidamente crítico.

De facto, todas as instâncias enumeradas concorriam para o olhar vigilante que até poderia ver, sem ser visto, quando estava num segundo andar. Melhor ainda numa torre ou num campanário, condições ideais verificadas nas missões.

De acordo com igual princípio, a posição dianteira da hierarquia indígena comportava um significado específico.

Em primeiro lugar, os padres transferiam para a organização espacial cânones muito valorizados no interior da Sociedade de Jesus, mantida por uma dependência cerrada, à boa maneira da contra-reforma.

Em segundo lugar, o estratagema consignava a ideia de um intermediário habilidoso a contrariar, com eficácia, o desequilíbrio numérico entre dois ou três padres, por um lado, e muitas centenas de índios, por outro.

Da postura anterior resultava a prova indelével que a psicologia inaciana actuava no sentido de acolher as características nativas, sempre que delas se podia aproveitar, combatendo-as quando elas incomodavam, como acontecia no planeamento das habitações.

Ou ainda no cotiguazu, não por acaso afastado das demais casas indígenas, colocado no lado da igreja e da residência dos padres, e destinado a receber as viúvas. Passíveis de ameaças aos casais monogâmicos, elas eram encarregadas de funções ligadas à sobrevivência dos órfãos, mais uma astúcia, desta vez contra os maus pensamentos e as más obras.

Neste particular, o ponto de vista construtivo ajudava a contrariar formas de vida inerentes à estrutura e à cultura dos agrupamentos guarani originais, tendencialmente poligâmicos.

Mas podia também salvaguardar um compromisso entre os contextos onde viviam antes e depois da chegada dos jesuítas.

Na verdade, é assim que parece poder ser avaliado um povoado construído como um campo aberto, logo sem muralhas e com uma ligação muito directa ao pomar, à horta e aos jardins.

Paisagem onde o índio se sentiria melhor incorporado, por ser a mais próxima da sua sociabilidade e por ser a mais vizinha da floresta frondosa que o rodeava, tradicionalmente.

Erguidos como as demais construções a partir de técnicas ao serviço dos materiais locais – pedra arenite, tijolo e adobe – os espaços destinados às oficinas e à aprendizagem manual correspondiam a actividades associadas à manufactura de produtos naturais: da madeira para as esculturas e os instrumentos musicais ao barro para as peças de cerâmica.

As técnicas e as formas estéticas aplicadas revelavam harmonias memoriais de entrelaçamento entre os bens disponíveis no solo, a cultura indígena e a cultura europeia.

Tratando-se de tarefas que pressupunham a incorporação de saberes-fazeres oriundos de saberes distantes, pode imaginar-se quanto o aprendizado exigiria a aquisição de hábitos num tempo especial de memorização com gestos e com ritmos, a envolver sofrimento de ambos os lados.

Igualmente se pode vislumbrar em que medida a aculturação mútua, dominada sem dúvida pela batuta dos missionários, favorecia a descoberta efectiva de modos adequados para retirar o melhor sucesso das infra-estruturas ambientais.

As apostas primeiras indiciam metodologias de trabalho voltadas para extrair da terra tudo o que ela pode dar de mais útil, seja o abundante e lucrativo mate, seja o rendimento agro-pecuário, seja a feitura do tijolo, seja a exploração de ferro numa fundição.

Tratando-se de uma economia orquestrada de subsistência, é inegável o apelo a reservas cognitivas de cá e de lá, quando os saberes oriundos de ancestralidades encontram aqui uma expressão cultural nova, gerada pelo intercâmbio de ideias e de atitudes, porquanto, se havia aspectos onde a mestria recaía para o lado dos colonos, haveria certos outros onde a competência jogava em favor dos colonizados.

E terá sido através delas que terá ocorrido, igualmente por aqui, algum feliz momento na rota mundial das plantas e dos animais. Feliz momento, pois, aquando do encontro entre a adaptação de uma ou de outra espécie faunística e floral. Contudo, a continuidade no desenvolvimento ocorreu muito principalmente, a nível do bom aproveitamento das potencialidades endémicas.

O resultado destes dois vectores traduziu-se num pomar, horto, jardim de flores e jardim de ervas, ou antes numa paisagem completa que ficou muito a dever ao modo como a sensibilidade ao terreno e às condições climáticas foi dando provas, não só em favor de uma sobrevivência adaptada ao ambiente, como aos procedimentos disponíveis para a agricultura e a pecuária

Evidentemente que todo este conjunto de realidades envolvia conhecimentos científicos que estariam dependentes da formação inicial recebida pelos padres e das suas tendências intelectuais.

Das humanidades ensinadas nas escolas europeias traziam perspectivas que nem sempre seriam as mais adaptadas a este tipo de quotidiano. Mesmo assim, é de convir que esta fragilidade era compensada por uma capacidade de adaptação manifesta e um espírito de aventura ímpar.

É de realçar ainda quanto as fontes revelam conhecimentos sobre alguns sectores da História Natural e a existência de sinais explícitos referentes a conhecimentos astronómicos – fala-se no uso das torres das igrejas para o efeito – farmacêuticos e medicinais.

Como ainda é localizável uma forma pré-científica e científica de lidar com informações várias, organizadas em prol de uma actividade de classificação: acrescente-se o raro pendor para o saber taxionómico, por parte do povo guarani, de que resultaram, aliás, bons sucessos na aplicação efectiva dos vegetais.

Esta reflexão filosófica terminaria de um modo inconclusivo se não tocasse ainda noutro tema, pois qualquer povoado pressupõe um povo: a necessidade de avaliar aquilo que caracterizou o comportamento jesuítico, natural e culturalmente falando, em conformidade com a natureza psicológica e a cultura socializada guarani, perspectivados, agora, em termos do futuro do povo guarani, depois da saída dos jesuítas.

Se bem que este aspecto ponha em jogo realidades históricas que não são compatíveis com retrospectivas, é indiscutível que o conjunto deste processo de aculturação gerou possibilidades indeléveis para uma definição demarcada de autonomia, que pré-anunciou desde há muito o Mercosul, mas ao mesmo tempo implicou consequências de inadaptação cultural com desajustes sociais, remanescentes até hoje, como as ruínas missioneiras.

 

(1) Foi apresentado como apêndice a Por uma epistemologia interdisciplinar das fontes na configuração missioneira, III Simposio sobre bibliotecas, archivos y museos del área franciscana en América, un aporte a la historia de la cultura de los siglos XVII-XX, Tarija, 29 a 31 de Agosto de 2006. A vers ão aqui apresentada c orresponde a um texto está a ser reelaborado, com base em sugestões e críticas apresentadas por investigadores, nomeadamente aguando da estada na Universidad Nacional de Misiones e na Misión de Santa Ana, na Argentina, Setembro de 2006, e durante a reunião que o projecto desenvolveu em São Paulo, Outubro de 2006, sob o título de I Encontro Internacional Natureza, Cultura e Missões: uma abordagem multidisciplinar. Considera-se importante publicá-lo no contexto deste Congresso Internacional, como exemplo de uma metodología tendendo para a vis ã o interdisciplinar do Projecto Globalizaç ã o das Ciências nos Trópicos.

(2) Situação que muito curiosamente se repete, como pudémos verificar aquando de uma visita às Missiones de Chiquitos, na Bolívia. Na verdade, é fácil de notar quando se anunciam as primeiras missões logo se nota uma mudança súbita na paisagem, no caminho de Santa Cruz de la Sierra para esta zona. O mesmo é dizer que também terá sido seguramente escolhida pela presença de um tipo de relevo baixo com rios e riachos frequentes, configuração facilitadora de sistemas comunicativos naturais.

(3) Aspecto que foi sabiamente exemplificado no filme A Missão, onde as Cataratas do Iguaçu assumem a função de metáfora adequada para simbolizar a energia maior –social porque telúrica –, desta realidade. Na verdade, a dinâmica inicial deste espectáculo, por demais maravilhoso, remete para imagens culturais que foram possibilitadas, e envolveram, o encontro jesuítico-guarani.

 NOTAS DE VIAGEM-INDEX

ANA LUÍSA JANEIRA . Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa .

Rua Ernesto de Vasconcelos, 1700 Lisboa, tel. 351.217573141, fax 351.217500088 .

Co-fundadora, primeira coordenadora e actualmente investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL) .

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral .

Calçada Bento da Rocha Cabral, 14 - 1250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt . aljaneira@sapo.pt