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:::::::::::::::::::::::::::::::::Ana Luísa Janeira

 NOTAS DE VIAGEM*
SOBRE FORMAS DE GLOBALIZAÇÃO HISTÓRICA
EM MISIONES

apêndice 2 
POR UMA EPISTEMOLOGIA INTERDISCIPLINAR DAS FONTES
NA CONFIGURAÇÃO MISSIONEIRA (1)

A perspectiva interdisciplinar equivale a uma atitude teórica e a uma prática com incidências diferentes.

Na verdade, pressupõe o reconhecimento de que “não há disciplinas, mas problemas”, ou seja, que a realidade a conhecer comporta múltiplos níveis descritivos e implica enfoques complexos, impossíveis de serem captados por qualquer óptica limitada ao jogo formal e reduzidos à estreiteza de uma qualquer tendência especializante.

A chave para uma atitude diferente passa pela necessidade de evitar processos que segmentam, parcelam ou fragmentam a informação.

Neste sentido, a interdisciplinaridade põe em acção um dinamismo de encontro-confronto de matérias e de saberes, destinada a sustentar uma interactividade entre pessoas que assumem a humildade de compartilhar dúvidas e certezas à partida, propõem-se operar na intercepção de outras áreas durante o trabalho, e irão encontrar resultados conseguidos por adquiridos provenientes de contributos vários à chegada.

Trata-se, pois, de uma utopia, enquanto significa um conjunto de actividades metódicas a exigir uma postura descentralizada, quer relativamente ao saber, no que esta tem de demonstrar capacidade para atender à ciência do outro, quer relativamente ao poder, no que esta tem de manifestar cedência ao lugar creditado do outro.

Por isso mesmo, mobiliza exigências ao arrepio de qualquer estatuto hierárquico artificial, vocacionada que está para a sustentabilidade da intercepção gnosiológica, com fundamentos directos no foro ontológico, dado que a realidade não é esquizofrénica nem existe e persiste de um modo compartimentado.

É claro que estes pressupostos terão consequências num questionamento efectivo do que é uma fonte. Ou seja, conduzem à necessidade de reformular o seu horizonte semântico.

O que supõe, naturalmente, um redimensionamento do campo significante associado ao conceito, indo da natureza ao suporte.

O que provoca, consequentemente, a abertura teórica e metodológica para uma formulação mais pletórica, e por isso mais adequada, do que pode e deve ser tido como fonte, quando se quer situar melhor determinada existência histórica.

Acepção que implica o reconhecimento de uma relação directa entre a selecção teórica das hipóteses de trabalho e a escolha apropriada das fontes que as poderão servir. Por outras palavras, importa ter presente que os modelos teóricos correspondem a escolhas de formalismos e de princípios orientadores, sendo que estes últimos têm uma palavra a dizer na delimitação daquilo que será usado como intermediário na procura de uma reconstituição.

É por isso que a construção científica do passado requer actos intervenientes em favor de objectos capazes de configurarem uma inteligibilidade ao arrepio da leitura óbvia ou simplificadora. De facto, sendo esta inteligibilidade que move a pesquisa sobre o que queremos do pretérito, importa privilegiar a função primeira a ser outorgada na escolha de meios para chegar aos fins pretendidos, os quais serão tanto mais ajustados quanto se revelarem mais capazes de mostrar a complexidade interceptiva.

Assim sendo e como consequência, a interdisciplinaridade não pode deixar de acarretar um posicionamento preliminar, de tipo desmultiplicante, ou seja, a recusa de permanecer adstrita a um tipo único, seja qual ele for, de fonte.

Na sequência de ideias mestras propostas por Michel Foucault, a fonte não deve ser olhada como uma matriz submetida ao registo escrito, antes sim, alargar-se à natureza de um “monumento” (2), quer dizer, ser perspectivada por um viés não-gráfico, mas testemunhal, que abarcará um vasto horizonte – do texto ao seu “con-texto” –.

Deste modo, a descrição realizada pela arqueologia-genealogia encontrará, na multiplicidade de instrumentos, a certeza como a construção será enriquecida por requisitos exigentes, a cimentar um produto multifacetado, devido à emergência de diferentes ângulos interpretativos.

Situação que é por demais ajustada à realidade missioneira.

Na verdade, apesar de já contar com trabalhos e publicações meritórios, importa insistir que é determinante enriquecê-la com projectos de investigação que alarguem o horizonte da configuração, mediante o concurso e a intercepção de informações, a confluírem para a definição de uma resultante inovadora.

Diga-se que as fontes têm sido prioritariamente do foro escrito ou do foro construído. Noutros casos ainda, do foro iconográfico e antropológico. Porém, o problema mais agudo decorre de rarearem intercepções entre dados, porque faltam equipas organizadas de acordo com estas preocupações e porque os meios de comunicação existentes não as favorecem.

Os estudos realizados tendo em vista este prisma epistemológico (3) anunciam que as reduções necessitam de ser abordadas por elementos descritivos e interpretativos que ultrapassem o arquivo de palavra, ou melhor que lhe associem outros arquivos que, em última análise, correspondam a tudo aquilo considerado que possa ser assumido como como um arquivo de vida.

E não se diga que o verbo deve ser hierarquicamente valorizado como veículo de abordagem, no caso pretérito. Na verdade, cabe à reflexão crítica chamar a atenção para o facto das ideias mais inovadoras, ocorrendo em várias áreas e por várias vias, provarem quanto será também importante aplicar-lhes ideias provenientes do questionamento incidindo sobre o verbal, no presente. O que ocorrerá, com sucesso, por via da interferência de outro tipo de fontes: da cultura material sonora à cultura material paisagística.

Aspecto que evidencia a importância de um diálogo entre a actualidade e o passado, com incidência no preenchimento de lacunas, ou, pelo contrário, na defesa da permanência de vazios, como atitude mais rigorosa.

A superação de um conceito ultrapassado, como o é o conceito de corpus completo e fechado sobre si mesmo, em favor da conexão e da intercepção na diversidade, requer o alargamento da tipologia das fontes, a ponto de criar resultantes que correspondam a uma mistura estimulante do aparato testemunhal.

É assim que é evidenciada a riqueza heurística e hermenêutica inerente à metodologia integrando o “dispositivo” foucaultiano (4), horizonte largo e flexível que revela um encontro especial entre o espaço e o tempo através da memória. Horizonte a mover-se desde o documento regulamentar à ruína do edificado, da peça de cerâmica ao vestígio paisagístico, da pauta musical rasurada ao costume étnico, da língua à fauna e flora.

É aqui que importará reunir meios favoráveis para conseguir questionar o privilégio, ou até a posição monolítica, atribuída às fontes clericais.

Percebe-se que sejam quantitativamente superiores, mas não devem continuar a ser consideradas únicas, ou mantidas sem a mistura com as demais. Não podem também, e muito menos, ser consideradas as mais fiáveis. Logo, a necessidade de modelos teóricos que não estejam satisfeitos com a situação segmentada remanescente e se obriguem a colocar os índios no núcleo da configuração. Como para procurar requisitos metodológicos, orientados para a obrigatoriedade de fazer intervir as suas fontes e as suas mundividências, de molde a abrir espaço para a interferência explícita da outra parte, obviamente indispensável.

Concluindo, o conceito teórico de “dispositivo” propõe que a prática patrimonial defenda a paisagem missioneira como arquivo de uma configuração singular. Concluindo, ainda, será importante que estes territórios se organizem como centros interpretativos interdisciplinares de uma memória colectiva. Concluindo, por fim, é desejável que os trinta povos e demais vestígios de missões sejam descritos como situações específicas, com encontros-confrontos entre a natura-cultura, o velho-novo mundo, o local-global, sempre segundo modelos ligados a concepções avançadas da historiografia actual.

Concluindo ainda será desejável que se junte a esta primeira perspectiva, centrada sobre os jesuítas, uma abordagem que inclua o contributo dos franciscanos, porquanto importa que esta participação permita destrinçar semelhanças e diferenças, continuidades e descontinuidades na forma como as duas sensibilidades cristãs assumiram a sua presença missioneira neste território dos Novos Mundos.

 

(1) Transcrição da introdução à Conferência inaugural apresentada no III Simposio sobre Bibliotecas, Archivos y Museos del Área Franciscana en América. Un Aporte a la Historia de la Cultura de los siglos XVII-XX, Tarija, 29 al 31 de Agosto de 2006. Publicado num CD-ROM, reunindo as respectivas Actas.

(2) Michel Foucault, L’ Archéologie du Savoir, Paris, Gallimard, 1960, 7.

(3) Ver Apêndice 1. A sua inclusão no contexto deste Simpósio justifica-se tão-só pelo desejo-convite para que outros investigadores interessados, e dispostos a trabalhar neste sentido, se juntem a esta tentativa interdisciplinar, com o fim de focar a peculiaridade da participação franciscana no interior deste dispositivo.

(4) Ver Apêndice 3.

 NOTAS DE VIAGEM-INDEX

ANA LUÍSA JANEIRA . Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa .

Rua Ernesto de Vasconcelos, 1700 Lisboa, tel. 351.217573141, fax 351.217500088 .

Co-fundadora, primeira coordenadora e actualmente investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL) .

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral .

Calçada Bento da Rocha Cabral, 14 - 1250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt . aljaneira@sapo.pt