Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore -
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping , rapping at my chamber door.
«'Tis some visitor,», I muttered, «tapping at my chamber door -
Only this and nothing more.»
(Edgar Allen Poe - The Raven)

Parece constituir, hoje em dia, matéria incontroversa que os saberes hermético e alquímico faziam parte integrante do património cultural da segunda vaga de colonos que, seguindo o exemplo dos «Pilgrim Fathers», emigraram para solo americano na esperança de dar forma e corpo a um projecto utópico de uma vivência em comum austera, sóbria, impoluta e incorruptível em consonância com aquilo que eles interpretavam como os ditâmes da lei divina. Surgiu, assim, a Nova Inglaterra cuja estrutura social e política se configuraria como paradigma antinómico em relação ao da velha ilha europeia de costumes dissolutos.

Porém, o repúdio a que estes cristãos dissidentes, vulgo puritanos, votavam os vícios, os erros e as iniquidades do país de origem, jamais lhes obliterou a argúcia e o discernimento necessários para compreender que não deviam rejeitar a maior riqueza que a mãe pátria (porventura para muitos mais madrasta que mãe) lhes legara: todo um conjunto de saberes diversos com origem nos pressupostos medievo-renascentistas que lhes permitira desenvolver não só as faculdades da mente como os valores espirituais.

Deste modo, os puritanos, enquanto herdeiros de uma Inglaterra em plena pujança cultural onde, aliás, ainda coexistiram, antes da partida, com estudiosos de renome como Francis Bacon, Simon Forman e John Dee, para citar apenas alguns, veicularam na zona do território do Novo Mundo onde se impuseram, pelos menos três aspectos diferenciados, ainda que concomitantes, da obra alquímica. O primeiro prendia-se com o sonho utópico de uma sociedade sem mácula, na medida em que para estes cristãos de raíz calvinista a América se perfilava, de acordo com as palavras do Antigo Testamento, como uma terra de leite e mel, ou seja, um espaço propício à recriação de uma nova idade de ouro. O segundo estava directamente relacionado com a demanda mística do aperfeiçoamento espritual dos seres humanos, um conceito que parece remeter para os presupostos doutrinários do gnosticismo. Com efeito, de acordo com os cânones do pensamento gnóstico, a alma perdera o elo com a essência divina do universo (a Sofia) ficando prisioneira da matéria, a carne, que constitui o seu invólucro visível. Contudo, a centelha espiritual aspira a regressar ao estado primevo de aliança com a divindade, objectivo que pode atingir por meio da gnose ou sapiência, num percurso que se assemelha ao «solve et coagula», isto é, o divórcio entre a substância pura e impura. O terceiro correspondia ao trabalho alquímico por excelência e projectava-se na procura da mítica pedra filosofal a que os inciados atribuíam o poder de curar os males do corpo e da alma e a faculdade de conferir a eterna juventude. A busca do «ouro dos alquimistas», designação que conduziu a uma série de equívocos e a um sem número de logros e ganâncias, pressupunha uma sequência de operações ultra secretas realizadas em «antros» sinistros e sombrios onde sobre fogos vários repousavam utensílios estranhos cheios de substâncias desconhecidas. Este cenário representava para o homem comum, a prova inequívoca da ingererência das forças diabólicas no processo.

Durante todo o século XVII, a arte alquímica foi cultivada em solo americano, segundo estes três parâmetros. Esta actividade centrava-se sobretudo num círculo de estudiosos que se formou à volta da figura tutelar de John Winthrop Jr. (1606- 1676), governador do Connecticut a quem conferiram o título de «Hermes Christianus». Winthrop, um devoto convicto das teses de Paracelsus, possuía uma biblioteca vasta onde se incluíam mais de 250 obras redigidas por autores medievais e renascentistas conotados com a alquimia. A título de exemplo, citam-se alguns nomes desses adeptos do saber alquímico cujos textos serviram de lenitivo à curiosidade intelectual de Winthrop: Elias Ashmole, Gerhard Dorn, Nicholas Flamel, Robert Fludd, Raymond Lull, Michael Maier, George Ripley, Martin Ruland, George Starkey, Basilius Valentinus.

Como é óbvio, o governador do Connecticut só conseguiu reunir este acervo bibliográfico graças a uma permuta constante de saberes entre os homens cultos da Velha Inglaterra e os do Novo Mundo. Deste modo, nunca se perdeu a simbiose entre aquilo que já fora descoberto e o muito que se estava a desvendar dos dois lados do Atlântico.

Para além dos elementos que fomentavam o interesse pelo trabalho alquímico, a América ainda recebeu da mãe pátria uma outra herança suplementar: os resultados frutuosos da interpenetração benéfica das linguagens alquímica e literária. Com efeito, a arte alquímica ao apossar-se do património alegórico específico do texto literário, adquiriu um código secreto por meio do qual subtraía, aos olhares ávidos do leigo, os mistérios do seu trabalho, aliás à semelhança do que aconteceu com as gravuras emblemáticas. Por seu lado e em contrapartida, a literatura recebeu os tropos, as metáforas e, até, os temas alquímicos que enriqueceram ainda mais o material de que dispunha.

Embora o culto pela arte alquímica pareça ter-se desvanecido durante os séculos XVIII e XIX devido ao progresso sistemático das chamadas ciências exactas, o discurso literário manteve-se sempre fiel, umas vezes de forma subtil, outras mais abertamente, às benesses com que a alquimia o tinha agraciado. De facto, a globalidade do espólio de produção literária que se convencionou classificar como gótica está imbuída do espírito e da letra do legado alquímico.

De entre os escritores americanos do século XIX que se dedicaram a este modelo literário, destaca-se Edgar Allen Poe (1809-1849), um homem que, não obstante um percurso de vida conturbado desde a sua mais tenra infância, se impôs como artífice versátil e multifacetado: foi editor de vários jornais e revistas importantes, redigiu extensos textos de teoria crítica e empenhou-se na escrita de contos e poemas.

O seu primeiro grande êxito que, aliás, lhe granjeia a fama que ainda hoje acompanha ocorre em 1844 na área da poesia com a publicação de «The Raven»,ou «O Corvo». Este poema cujo título se refere a uma ave que, desde logo, evoca a simbologia alquímica, tem por cenário a noite e está imbuído de tonalidades sombrias de fino recorte cripto hermético. Nos dois versos iniciais da primeira estrofe, refere-se com toda a clareza que os fenómenos singulares narrados no texto decorrem enquanto o sujeito poético se entrega à leitura de estranhos e raros livros antigos que tratam de saberes ancestrais há muito esquecidos. Presume-se que a alquimia se encontrava entre eles.

Mas, se em «The Raven», a ambiguidade ínvia de Poe permite que o leitor especule quanto à hipotética referência ao «opus alchymicum», o mesmo não acontece em «Von Kempelen and His Discovery», um conto irónico-satírico escrito em 1849 cuja intriga se centra na figura de um alquimista que consegue finalmente resolver o enigma da transmutação do chumbo em ouro. Para conferir veracidade ao texto, Poe recorre ao rico património da tradição alquímica, esse saber ancestral que parece ter constituído nas suas várias vertentes um dos polos de interesse do escritor. Assim, descreve em pormenor e com óbvio conhecimento de causa o laboratório onde o protagonista supostamente realizou a sua proeza — um aposento recôndito situado nas águas furtadas de uma casa antiga de sete andares, um número que corresponde aos diversos estádios por que passava a «prima materia» quando submetida ao processo de purificação. Refira-se ainda, neste contexto, que cada uma das fases do trabalho alquímico se correlacionava com um planeta. Assim, o chumbo tinha afinidade com Saturno,o estanho com Júpiter, o mercúrio com o astro do mesmo nome, o ferro com Marte, o cobre com Vénus, a prata com a Lua e o ouro com o Sol.

 
 
IV Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2002)
APOIOS
DOMINICANOS DE LISBOA