Contudo, Poe vai ainda mais longe e relata com palavras precisas a experiência em curso, dentro do laboratório, quando a polícia chegou para proceder a averiguações que explicassem os súbitos sinais exteriores de riqueza (para utilizar uma terminologia hodierna) de Von Kempelen. Este foi, pois, o quadro que se ofereceu aos olhos ignaros dos defensores da lei: sobre uma fornalha com lume bem forte encontravam-se duas retortas num sistema de vasos comunicantes. Uma delas continha chumbo que se derretia lentamente, na outra volatilizava-se célere um líquido desconhecido. Mas, se os polícias na sua ignorância rude nada perceberam, qualquer iniciado, ainda que menor, nos mistérios das ciências herméticas, deduziria de imediato que a «prima materia» estava a ser submetida ao processo alquímico purificatório habitual com o objectivo de isolar o «ovo ou germén áureo» que, para os alquimistas constituía a essência ou «anima», de todos os metais. Esta prática hermética básica exprime-se através da máxima alquímica que aqui se cita na íntegra «solve et coagula et habebis magisterium».

Porém, para que esta técnica resulte, é preciso que quem a utiliza saiba não só quais os ingredientes adequados que se devem adicionar ao chumbo, como também conheça as proporções correctas dos mesmos. Por isso, Poe refere que nos bolsos de Von Kempelen se encontrou um pequeno pacote que continha duas substâncias sendo uma delas o antimónio cuja presença é considerada por muitos estudiosos do saber alquímico, por exemplo, Basilius Valentinus como determinante para a criação da pedra filosofal. A obra de Valentinus, publicada em 1678 sob o título «The Triumphal Charriot of Antimony» fez, em toda a probabilidade, parte das leituras de Poe.

Mas, o conto «Von Kempelen and His Discovery» não é o primeiro dos textos de Poe em que se repercutem os ecos da arte alquímica. Já em «The Assignation» (1834), Ligeia(1838) e «The Fall of the House of Usher» (1839) se percepcionava a influência desse saber.

Em «The Assignation», Poe projecta os símbolos alquímicos tanto nas personagens, como nos ambientes em que elas se movem fundindo-os num tecido único. O retrato da Marquesa de Mentoni não podia ser mais elucidativo. Embora o seu nome próprio seja Afrodite e uma leitura menos cuidada pudesse correlacioná-la com o planeta Vénus e o cobre, a verdade é que o seu trajo de um branco imaculado conota-a com o «albedo». Por outro lado, há toda uma luz prateada que a envolve da cabeça aos pés e que a transforma numa criatura selénica, porventura, a própria Lua ou Luna.

Partilhando da mesma simbologia, o protagonista, mantido no anonimato, possui o fulgor da juventude e vive num palácio onde os seus aposentos se revestem da paleta completa das cores dos sete estádios do trabalho alquímico, a chamada «cauda pavonis», à medida que o dia (albedo) desponta e a noite (nigredo) se desvanece: reflexos esmeraldinos e violeta, vidros que se tingem de vermelho fogo, cortinados que se assemelham a prata derretida e a colgadura toda bordada a fio de ouro. O próprio jovem adquire no processo um tom rútilo numa alusão evidente ao Sol enquanto rei alquímico.

No contexto da intriga, o protagonista salva o filho da Marquesa e talvez seu, a dúvida sobre a paternidade da criança paira e persiste em todo o conto, das águas tenebrosas e escuras (nigredo) de um canal veneziano. Poe, ao descrever o facto refere-se ao menino como «o tesouro arrancado ao abismo aquático» o que confere ao filho da Marquesa o estatuto de infante, de Mercúrio alquímico que une pai e mãe. Esta interpretação que à primeira vista pode parecer um pouco rebuscada, encontrará o seu fundamento no duplo suicídio da Marquesa e do jovem, no final do conto, o que parece indiciá-los como par hermético. Com efeito, ambos morrem na primeira hora depois do sol nascer («aurora consurgens»), um momento propício ao «opus alchymicum», pois representa não só o dealbar do conhecimento como o «conjunctio», ou seja, o matrimónio alquímico do Sol e da Lua.

A abordagem deste texto ficaria incompleta, sem uma referência à figura perversa do Marquês de Mentoni a quem Poe talvez tenha atribuído o papel de alquimista. De facto, enquanto todos duvidam que o menino seja retirado com vida do abismo das águas, Mentoni entretém-se a dedilhar uma melodia. Nas circunstâncias, a atitude do Marquês parece aberrante. Porém, se Mentoni representa o agente do processo alquímico, a associação entre a música e o «opus alchymicum» não é tão estranha como se possa supor. Com efeito, Robert Fludd, um famoso alquimista inglês do século XVII, argumentava que os acordes musicais ajudavam a construir a harmonia entre o microcosmos e o macrocosmos, ou seja, entre a matéria e o espírito. Deste modo, Poe estava apenas a ser fiel aos conhecimentos adquiridos através das suas leituras.

À semelhança do que acontece em «The Assignation», também em «Ligeia» Poe introduz um subtexto alquímico. De facto, neste conto, o autor empresta a «Ligeia», a indiscutível protagonista, todas as características da figura feminina que personifica a sabedoria e a sageza esotéricas. Ao fazê-lo, estabelece um vínculo entre Ligeia e a pedra filosofal cujos reflexos auríferos se revelam por lampejos nos olhos da personagem. Porém, Ligeia adoece e sucumbe, ainda que temporariamente, ao «nigredo» da morte, deixando viúvo o suposto narrador da história que, em breve, se casa outra vez com uma senhora chamada Rowena.

 
 
IV Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2002)
APOIOS
DOMINICANOS DE LISBOA