ELEMENTOS ALQUÍMICOS (2)
Raquel Gonçalves

Departamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências,

Universidade de Lisboa, 1749-016 Lisboa


3. O «Imaginário» e o «Imaginal»

  A Água é o princípio de todas as coisas, disse Tales de Mileto, corria o século VI antes de Cristo. Anaxímenes aceitou como elemento básico o Ar (também com o significado de Céu) e Heraclito escolheu o Fogo. Empédocles, um século mais tarde, disse: A matéria é formada por quatro elementos. E à triade Água, Ar e Fogo juntou a Terra. E mais disse: Os elementos unem-se pelo Amor e dissociam-se pelo Ódio.

Foi neste universo que nasceu Aristóteles (século IV a.C.). Aristóteles acreditou nos quatro elementos e com eles tudo compôs: mais Fogo mais leve, mais Terra mais pesado…  

A linguagem e a lógica da Alquimia não têm, como vimos, natureza química - nem, porventura, filosófica - mas sim simbólica e iniciática. No entanto, o ajuste entre filosofias tradicionais gregas e a via alquímica, evidenciado pela absorção feita pela Alquimia dos elementos aristotélicos e suas qualidades permitiu ao multifacetado Gaston Bachelard, o homem sobre quem François Dagognet afirmou que o pensamento dinamizava a vida e não o inverso, dizer que os Elementos são as «hormonas da imaginação».

Gaston Bachelard foi um homem de dois séculos e de duas vidas. Nasceu em 1884, na província francesa, e morreu em 1962, na cosmopolita Paris. Licenciou-se em Matemática e estudou Química o que lhe permitiu ser professor do ensino secundário num colégio em Bar-sur-Aube, sua terra natal; por outro lado, por leitura espontânea, infatigável e reflexiva, compôs a sua própria Filosofia - o Materialismo Racional -, o que lhe angariou o convite para leccionar na Sorbonne. Deixou uma obra notável, não só no domínio da Epistemologia, mas também da Psicanálise. E, para mais, tinha alma de poeta.

[Levantava-se muito cedo e sentava-se nos degraus da Universidade à espera que a porta abrisse. Com um aspecto misto entre o de Pai Natal e o de pedinte, muitas vezes ouviu tinir junto de si moedas que os transeuntes lhe ofertavam…]

Bachelard viveu intensamente, e da forma mais independente e objectiva que conseguiu imprimir, com uma qualidade indiscutível, as suas duas vertentes: a razão científica do Materialismo Racional como os cientistas, de valores intelectuais, o «homem diurno», e os devaneios poéticos do mundo onírico como os artistas, de valores espirituais, o «homem nocturno».

É o empenhamento de Bachelard no mundo nocturno, o mundo dos sonhos e, principalmente, dos devaneios, que mais nos interessa no contexto deste trabalho.

O brilho do Fogo na lareira e o saltitar da Água nos ribeiros e riachos são imagens que nunca o abandonaram, mesmo quando o reconhecimento o levou a leccionar na universidade parisiense.

Os quatro elementos de Aristóteles, os quatro Elementos da Alquimia, são também os quatro elementos poéticos de Bachelard. A Alquimia das metamorfoses não originou, segundo o filósofo, antes impediu, a origem da ciência. Mas inaugurou e assegurou o reino do onírismo.

A dimensão que Bachelard confere aos Elementos não parece limitar a sua interpretação, antes prolongá-la; no entanto, não é esta, como veremos adiante, a opinião partilhada pelos alquimistas do «Imaginal», onde os Elementos são verdades transcendentais e não categorias psicológicas no mundo da imaginação fantasiosa, do «Imaginário».

Escreveu vários livros sobre este tema, cada um dos quais dedicado a um Elemento em particular. Começou pelo Fogo, em 1938. Chamou-lhe A Psicanálise do Fogo. Depois, em 1942, publicou A Água e os Sonhos, em 1943, O Ar e os Sonhos e, em 1948, surgem dois livros: A Terra e os Devaneios da Vontade e A Terra e os Devaneios do Repouso. 

[¼] mais do que a vontade, mais do que o impulso vital, a Imaginação é a própria mola real da produção psíquica. Psiquicamente, nós somos criados pelos nossos sonhos. Somos criados e limitados pelos nossos sonhos pois são eles quem desenha os últimos confins do nosso espírito. A Imaginação funciona na cúpula, como uma chama, e é na realidade da metáfora de metáfora, na região dadaísta, onde o sonho é o ensaio de uma experiência, quando o sonho transforma as formas já previamente transformadas, que se deve buscar o segredo das energias mutantes. É preciso pois cada um de nós encontrar maneira de se instalar no ponto de onde se divisa o impulso original, tentados sem dúvida por uma anarquia pessoal, mas apesar disso dependente da sedução alheia. Para se ser feliz é preciso pensar-se na felicidade de um outro. Existe também uma reciprocidade nos prazeres mais egoístas. O diagrama poético deve pois suscitar uma decomposição das forças, derrubando o ideal ingénuo, o ideal egoísta da unidade da composição. É este mesmo o problema da vida criadora: como é possível ter-se um futuro não esquecendo o passado?, como conseguir que a paixão se ilumine sem arrefecer?

Ora, se a imagem não se torna psiquicamente activa senão através das metáforas que a decompõem, se ela não cria psiquismo realmente novo senão nas transformações mais ousadas, na região da metáfora de metáfora, compreender-se-á a enorme produção poética das imagens do fogo. Tentei demonstrar que o fogo é, entre os factores de imagens, o mais dialectizado. Só ele é sujeito e objecto. Quando se vai até ao fundo de um animismo encontramos sempre um calorismo. Aquilo que eu reconheço como vivo, como imediatamente vivo, é aquilo que reconheço como quente. O calor é a prova por excelência da riqueza e da permanência substanciais; só ele confere um sentido imediato à intensidade de ser. A par da intensidade do fogo íntimo, como são frouxas as outras intensidades inertes, estáticas, sem destino! Não são crescimentos reais. Não cumprem a sua promessa. Não se activam numa chama e numa luz que simbolizem a transcendência. G. Bachelard, A Psicanálise do Fogo  

A alusão, implícita, à Grande Obra é, todavia, evidente. É no athanor que o alquimista realiza a sua obra de transmutação, purifica os metais e liberta o “ouro alquímico” do seu próprio espírito. Mas o athanor é um forno: fogo, fogo íntimo, quente, calor, calorismo…; é, pois, o Fogo, exterior e interior, constantemente activado pelo alquimista, que decompõe e despoja a “matéria” das suas imperfeições - a matéria e o espírito do adepto.           

O hermetismo contido no processo alquímico tem aqui o seu paralelo na realidade da metáfora de metáfora, a transmutação nas transformações mais ousadas, a decomposição da matéria-prima (a obra ao negro) na decomposição da unidade da composição, seguida da purificação (a “espiritualização do corpo” ou obra ao branco) e da realização espiritual (a “corporização do espírito” ou obra ao rubro) nos crescimentos reais, numa chama e numa luz que simbolizam a transcendência; as alterações materiais em reunião com as modificações espirituais correspondem-se com o fogo dialectizado, objecto e também sujeito, os antagonismos iniciais no passado e futuro, iluminado e arrefecido.

Fig. 5. O Amante de Fogo, por Lima de Freitas

A conjunção da realidade e do símbolo, sonho de totalidade que une os destinos do homem e da natureza, revela-se exemplarmente na lindíssima tela de Lima de Freitas, que tem por título O Amante de Fogo. Através do corpo vermelho e translúcido do homem desenha-se já o corpo luminoso da mulher loira, bela e, necessariamente, de olhos azuis. 

O azul é a mais pura, profunda e imaterial de todas as cores. É o azul sonhado, fresco, puro, unitário ao ponto de poder “dissolver” todas as cores - mesmo o vermelho; é o indicador do caminho para o infinito.

O Ar é azul, no céu liso e desperto. E também a Água é azul, como espelho do céu, correndo nos rios e nos riachos.

Em A Água e os Sonhos, na conclusão, Gaston Bachelard dá a palavra à água:

Gostaríamos de reunir  - diz ele - todas as lições de lirismo que o rio nos dá. Essas lições, no fundo, têm uma grande unidade. São realmente as lições de um elemento fundamental.

Para mostrar bem a unidade vocal da poesia da água, vamos desenvolver imediatamente um paradoxo extremo: a água é a senhora da linguagem fluida, da linguagem sem brusquidão, da linguagem contínua, continuada, da linguagem que abranda o ritmo, que proporciona uma matéria uniforme a ritmos diferentes. Portanto, não hesitaremos em dar sentido pleno à expressão que fala da qualidade de uma poesia fluida e animada, de uma poesia que se escoa da fonte. G. Bachelard, A Água e os Sonhos  

A Água é um símbolo universal de Vida, de fecundidade e de fertilidade, a senhora, como lhe chamou Bachelard. Esta é a Água entendida no plano corporal. A Água, todavia, inclui também a simbologia no plano espiritual.

Quem beber da água que eu lhe der, jamais sentirá sede - disse Jesus no seu diálogo com a Samaritana.

A Água, nesta vertente espiritual, representa uma matéria perfeita, simples, totalmente transparente; é, pois, sagrada, com virtudes purificadoras. Um exemplo é a água do baptismo, conferida uma só vez na vida, o que é suficiente para lavar o pecado original. Transforma o homem num homem novo, pelo seu poder de regenerescência.

Quem “mergulha” na Água ressuscita. Este “banho” é um banho iniciático, na Fonte da Imortalidade (da alma).

Em contrapartida ao símbolo da Água pura e criadora, Fonte de Vida, encontra-se com frequência uma Água amarga, devastadora, produtora de maldições, as águas tenebrosas dos mares profundos e das vagas gigantescas de A Odisseia de Homero e de Os Lusíadas de Camões.

Bachelard, porém, foi muito mais longe e dedicou-se ao estudo psicológico de subtis variações das águas: as águas claras, primaveris, correntes, amorosas, profundas, dormentes, mortas, compostas, suaves, violentas; a água como mestre da linguagem… Múltiplas são as facetas desta palavra tão rica de significações, deste símbolo cintilante.

Fig. 6. A Água, por Lima de Freitas


Uma representação, magnífica, do Elemento Água deve-se ao pincel de Lima de Freitas.

Destaca-se na gravura um ovo, princípio feminino, rodeado de pequenas labaredas, o Fogo masculino. A Árvore da Vida, com os seus pomos e aves esvoaçando entre os seus ramos plenos de folhas, ocupa o centro da esfera. A sua ligação à Terra é feita pela raízes que a penetram. Um poeta e a sua lira, símbolo e instrumento do equilíbrio cósmico, senta-se num barco ou numa meia-lua. São os acordes extraídos da lira do poeta que fazem dançar os pássaros e os peixes, que fazem vibrar o cosmos de forma organizada e harmónica.     

O peixe é, por si próprio, símbolo do Elemento Água e, como tal, todos os atributos simbólicos da Água são-no também atributos do peixe. Para os cristãos, Cristo é pescador (de almas) e os seus seguidores peixes.

O apogeu espiritual, porém, só é atingido após luta árdua. O inimigo a combater foi aqui representado por medusas (ou górgonas). Estas representam deformações da psique, cuja sublimação para que se atinja a perfeição, o ideal, é absolutamente necessária. Basta recordar Narciso que, ao mirar-se nas águas, não pôde esconder a sua vaidade: Amo-me tal como sou - disse ele.

Fig. 7. O Istmo, por Lima de Freitas

O Ar é movimento e libertação. A imagem do Ar está na base de toda uma psicologia ascensional, cuja dualidade se prefigura no voo e na queda. Como tal, o Ar (o Céu) está sempre associado ao elemento Terra.

Quando, no processo alquímico, se transmutam os metais vis (os metais não suficientemente “amadurecidos” na Terra) até ao seu mais elevado grau de pureza e perfeição, o ouro, as substâncias são elevadas por um poder aéreo, um poder que as liberta das suas impurezas. Mas a esta subida tem de, inevitavelmente, corresponder uma descida, uma “descensão” alquímica, protagonizada por um poder terrestre, poder este que atrai as impurezas para a Terra.

Associado a este movimento, digamos, material, encontra-se um dinamismo transformador da mente, isto é, espiritual. A “ascensão” do homem ajudá-lo-á então a (re)criar a harmonia na Natureza, o que fará de forma mais sábia, mais prudente, mais avisada - transfigurada. Um novo Céu (um novo Ar) e uma nova Terra serão (re)criados:

-   no «Imaginário», no mundo das fantasias da imaginação, como categoria psicológica, segundo Bachelard;

-    no «Imaginal», no mundo da alma, como verdade transcendental, segundo Lima de Freitas.  

O Istmo - tela de Lima de Freitas -, assegura a máxima alquímica: o que está em baixo é como o que está em cima… Terra e Céu e Céu e Terra.

O istmo do mundo Imaginal faz a mediação entre o mundo material e o mundo espiritual, entre o inteligível e o sensível, entre o imaginário e o simbólico. Está de acordo com o objectivo da Obra alquímica: (re)ligar Céu e Terra, espírito e matéria, por outras palavras, “materializar o espírito” e “espiritualizar a matéria”.

A própria palavra Alquimia é, como salienta José Manuel Anes, em ajuste com a tradição islâmica, um barzak, um “entredois”, um istmo entre dois mares: numa leitura clássica, na horizontal, ou então numa leitura na vertical, entre o mar das águas inferiores, a Água propriamente dita e o “mar” das águas superiores, o Ar. 

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O Fogo destrói e solidifica. A Água e o Ar são, igualmente, destruidores e protectores. A Terra é vontade e repouso. Todos os Elementos exteriorizam contradições, antinomias, dualidades, quer materiais, quer espirituais; e, de modo semelhante aos Elementos, também as operações alquímicas o fazem: enquanto a destilação alquímica é uma seta de duplo sentido, a destilação química é um processo de um só sentido.  [Não deixa de ser curioso, porém, que a sublimação química tenha conservado os vestígios da dupla seta original: de sólido a vapor e de vapor a sólido.]

A nossa imaginação alimenta-se destas antíteses, E quem lê - e quem escuta - a poesia do poeta continua as imagens da imaginação, amplia o domínio do Imaginário. O “leite negro”, a “água seca”, o “fogo frio” ou o vinho que é “Água e Fogo” ao mesmo tempo, são contrários ou complementares -  imprevisíveis, sem dúvida -, fonte inesgotável do mundo do onírismo. 

Os alquimistas não deixam de encarar a versão bachelardiana sem algumas reservas. O Imaginal - o mundo real da alma - transcende, segundo estes, a simples imaginação psíquica.

Mas nada é virtualmente uma só coisa.

E a cada um sua verdade.


Bibliografia

 ANES, J. M., Re-Criações Herméticas, Hugin, Lisboa, 1996.

 Bachelard, G., A Psicanálise do Fogo, Litoral, Lisboa, 1994.

 Bachelard, G., A Água e os Sonhos, Martins Fontes, São Paulo, 1989.

Bachelard, G., O Ar e os Sonhos, Martins Fontes, São Paulo, 1990.

Bachelard, G., A Terra e os Devaneios da Vontade, Martins Fontes, São Paulo, 1991.

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CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., Dicionário dos Símbolos, Teorema, Lisboa, 1994.

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LASZLO, P., O que é a Alquimia?, Terramar, Lisboa, 1997.

Lima de Freitas - 50 Anos de Pintura, Hugin, Lisboa, 1998

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