TRANSMUTAÇÃO DOS ELEMENTOS 
Isabel Serra


FÍSICA E ALQUIMIA 

Os físicos têm, em geral, poucos conhecimentos sobre Alquimia, mas sabem que ela está associada às palavras ouro e transmutação. Em especial esta última contém ressonâncias importantes para um físico do século XX. É durante os primeiros anos deste século que a transmutação passa a ser um fenómeno físico. Processo mediante o qual um elemento se transforma noutro, a transmutação contém algo de mágico, também para os físicos. Para o compreender é necessário conhecer um pouco da história da radioactividade, um ramo da física que nasceu no fim do século XIX e que viria a revolucionar a física no século XX. A descoberta da radioactividade deu origem a uma área completamente nova na física - a microfísica- e que, por diversas razões, ganhou uma enorme dimensão. Mas para além disso, a radioactividade veio finalmente permitir a realização de um dos sonhos alquímicos - a transmutação dos metais em ouro. 

Essa história do “encontro” entre a física e a Alquimia pode ser caracterizada por quatro momentos  principais:

 

1. DESCOBERTA DA RADIOACTIVIDADE (1896) 

2. INTERPRETAÇÃO DA RADIOACTIVIDADE COMO RESULTANTE DA TRANSMUTAÇÃO DE UM ELEMENTO NOUTRO (1902) 

3. TRANSMUTAÇÕES PROVOCADAS (1919) 

4. TRANSMUTAÇÃO E ACELERADORES DE PARTÍCULAS (1928-1932) 

Estas quatro fases correspondem a verdadeiros progressos da investigação em física e traduzem-se pela possibilidade de compreender, e depois  realizar, as transmutações que se queiram, inclusive as de um metal em ouro.

A história da radioactividade não pode ser reduzida, é claro, ao problema das transmutações, mas se estivermos interessados unicamente nesse aspecto, são aqueles quatro os passos fundamentais que conduzem a uma verdadeira “apoteose” com a invenção dos aceleradores de partículas. Os aceleradores permitem, em princípio, transformar um dado elemento noutro qualquer, ou seja, realizar qualquer transmutação.  

Depois da invenção do acelerador não foram realizados progressos decisivos para a realização de transmutações provocadas, mas apenas melhoradas as condições e os rendimentos de tais reacções.

 

A DESCOBERTA DA RADIOACTIVIDADE 

Há quem ponha em causa a utilização da palavra descoberta em muitas situações da ciência, mas creio que a radioactividade é um daqueles fenómenos sobre o qual todos estarão de acordo em usar tal palavra. Impossível de detectar por simples observação visual, táctil ou sonora, a radioactividade é a capacidade de certos elementos emitirem radiação espontaneamente. Presentes na natureza desde a formação da terra, embora com fraca intensidade, só no limiar do século XX os fenómenos radioactivos são descobertos e estudados. 

Foi Becquerel, em 1896, quem descobriu que o Urânio emite espontaneamente uma radiação de natureza desconhecida. Essa radiação, as suas propriedades, as propriedades dos elementos que a emitem é estudada, nos anos seguintes, por um grande número de físicos, e entre os mais conhecidos estão Pierre e Marie Curie. Eles conseguem, em particular, obter, por purificação, amostras de várias substâncias radioactivas, algumas delas inteiramente desconhecidas até então. 

É indispensável dizer que, mesmo depois de bem estudado o fenómeno da radioactividade e as suas propriedades e efeitos, a origem da emissão de radiação permaneceu um mistério, durante muitos anos. Foi necessária uma teoria física sobre a constituição microscópica da matéria, para compreender as razões pelas quais certos elementos emitem espontaneamente radiação. 

A primeira explicação sobre a origem do fenómeno resulta da colaboração entre  um  físico neo-zelandês, Ernest Rutherford (1871-1937) e de um químico inglês, Frédérick Soddy (1877-1956), trabalhando em conjunto na universidade de MacGill, em Montréal.

A TRANSMUTAÇÃO RADIOACTIVA 

Rutherford desempenha um papel central no estudo da radioactividade, ao qual se dedica quase logo após a sua descoberta. Em 1902, trabalhando em conjunto com Soddy, Rutherford  interpreta a emissão de radioactividade usando a hipótese de que ela está associada à transmutação de um elemento químico noutro elemento. Quando dessa descoberta Rutherford hesita.... “se falamos de transmutação vão chamar-nos alquimistas”, enquanto que Soddy “exalta por ser, de entre os químicos de todos os tempos, aquele que torna realidade o velho sonho alquímico - o da transmutação” (1) 

Mas, embora identificado, durante muitos anos não se soube controlar, nem mesmo compreender esse processo de transmutação espontânea dos elementos. Durante os primeiros vinte anos do século XX, físicos de vários países dedicaram-se a estudar os processos de transmutação dos elementos radioactivos. Esse processo espontâneo é responsável pela transformação sucessiva de um elemento noutro, e ainda noutro e noutro, formando-se cadeias de elementos. A essas cadeias dá-se o nome de famílias radioactivas. 

No quadro seguinte podemos ver uma parte da família do Rádio,  começando no Urânio-238 e que se desintegra sucessivamente, por radioactividade a  ou b, para originar uma série de elementos até ao chumbo. Os dois tipos de radioactividade correspondem à emissão de dois tipos de partículas, respectivamente, núcleos de hélio e electrões. 

Para além desta família radioactiva existem ainda outras duas e também alguns elementos radioactivos naturais de períodos muito grandes e que não formam famílias, tal como o potássio-40, que existem na natureza desde a época da formação do sistema solar.

 

TRANSMUTAÇÕES PROVOCADAS 

É ainda Rutherford o autor de mais um episódio importante do ponto de vista da transmutação dos elementos. Em 1919, bombardeando certos elementos com partículas alfa, Rutherford descobre que eles se transformam noutros elementos, ou seja, que se podem provocar transmutações que de outra maneira não ocorreriam na natureza. São as chamadas transmutações artificiais.  Estava aberta a via para transformar, artificialmente, uns elementos noutros, em particular em ouro. Embora, no século XX, isso tenha deixado de ser importante, não deixa de ser curioso que se tenha cumprido o velho sonho alquímico, embora por transformação física, e não química, dos elementos.  

O primeiro exemplo de transmutação provocada artificialmente pode ser representado da seguinte maneira:

(IMAGEM)

 

Esta representação significa que o núcleo de um átomo de azoto (N), quando é bombardeado por uma partícula a, se transforma num núcleo de oxigénio (O) e num protão (p). Um protão é um constituinte dos núcleos atómicos de todos os elementos e, por exemplo, o hidrogénio tem no seu núcleo apenas um protão. O protão resultante desta reacção é pois, um núcleo de hidrogénio. 

As reacções nucleares, de que esta é um exemplo, traduzem a transformação de um elemento noutro, ou melhor, a transformação de núcleos. Para transformar um elemento noutro é preciso alterar a estrutura do núcleo atómico. A modificação do núcleo de um elemento não pode acontecer numa reacção química, onde é alterada apenas constituição superficial do átomo. Daí que os alquimistas nunca poderiam conseguir os seus intentos de transformar um elemento noutro durante uma reacção química. 

Para transformar um elemento noutro qualquer basta mudar o seu núcleo, tirando ou acrescentando protões, tirando ou acrescentando neutrões (o outro constituinte do núcleo). Embora, do ponto de vista teórico, estas transformações sejam sempre possíveis,  algumas delas são muito difíceis de fazer na prática, pois exigem gandes quantidades de energia.

Actualmente sabe-se transformar um núcleo de carbono em azoto, um de cobre em níquel, um de argon em potássio e mesmo UM  DE CHUMBO EM OURO. No entanto o ouro assim fabricado é muito mais caro que o ouro natural!  

 

ACELERADORES DE PARTÍCULAS 

Podemos designar por última fase da realização do sonho da transmutação dos elementos, aquela em que foram descobertas as técnicas e construídas as máquinas que permitem provocar qualquer transformação. A história da construção de tais máquinas, chamadas aceleradores de partículas, começa também com Rutherford, e com a sua equipa, no laboratório Cavendish da universidade de Cambridge, durante os anos 20.  

As experiências de transmutação artificial dos elementos tinham posto em evidência que as reacções nucleares têm maior rendimento se se utilizarem, no bombardeamento, partículas com grandes velocidades. São vários os laboratórios que se empenham em construir experiências de aceleração de partículas e são variados os métodos usados. Na Alemanha A. Brasch e F. Lange tentam acelerar protões usando...a electricidade das nuvens e um físico morre em consequência disso. (3) 

As primeiras experiências de desintegração artificial obtidas com partículas aceleradas são realizadas por J. D. Cockcroft (1897-1967) e E. Walton do laboratório Cavendish. Em 1932 eles obtêm a desintegração do lítio em duas partículas a. 

O mais eficaz de todos os aceleradores de partículas - o ciclotrão - foi inventado e construído por Ernest Lawrence (1901-1958), um físico norte-americano de grande dinamismo. Essa característica foi-lhe indispensável para encontrar quem financiasse os vários ciclotrões que construíu durante os anos 30 e que serviram para importantes investigações em física e em química. A invenção do ciclotrão deu a Lawrence o prémio Nobel da física em 1939. 

Os aceleradores de partículas serviram, em particular, para fabricar elementos radioactivos artificiais, que não existiam na natureza. Foram Irène e Frédéric Joilot-Curie quem pela primeira vez identificou esses elementos e a descoberta da radioactividade artificial - uma das grandes descobertas dos anos 30 em radioactividade - valeu aos seus autores o prémio Nobel.

 

CONCLUSÃO: A ERA DA ALQUIMIA 

É possível produzir um grande número de elementos radioactivos artificiais nos aceleradores de partículas,  usando transmutações provocadas por partículas aceleradas. Muitos desses elementos têm aplicações em biologia, agricultura, medicina e história. Actualmente, a produção de elementos radioactivos faz parte da rotina de alguns laboratórios que se dedicam a fornecer a indústria e outros sectores da actividade.

Tendo em conta que a transmutação dos elementos é, nos nossos dias, um acto rotineiro, podemos dizer que vivemos na “era da Alquimia”. A transmutação, para além de rotineira, tem também inúmeras aplicações, por exemplo na produção de isótopos radioactivos. Isótopo de um elemento é o que tem o mesmo número de protões e  de electrões, mas diferente número de neutrões. Todos os elementos que existem na natureza têm isótopos radioactivos e uma das  características importantes dos isótopos é o possuírem as mesmas propriedades químicas. Numa reacção química, ou num organismo vivo, os isótopos radioactivos seguem os mesmos passos que o elemento principal e, por serem radioactivos,  podem ser  detectados e seguidos nos seus trajectos. 

Conta-se que Ernest Lawrence, para ilustrar as suas lições, bebia, no início da aula, um copo de água  com cloreto de sódio no qual havia dissolvido uma pequena percentagem do indicador radioactivo . Colocando a mão sobre um contador Geiger-Muller (que detecta a radioactividade), ele mostrava como o sal circulava no seu corpo. Para ilustrar outro aspecto da radioactividade, Lawrence fazia uma segunda medida no fim da aula, para mostrar o decrescimento do isótopo no tempo. Os isótopos radioactivos de período curto são inofensivos para o organismo quando usados em pequenas quantidades. 

O Iodo radioactivo foi utilizado desde 1937 para o estudo do metabolismo do iodo na glândula tiróide e para o tratamento das doenças deste órgão. Em biologia, a técnica de marcação de moléculas com isótopos radioactivos é frequentemente utilizada, no estudo dos enzimas e dos metabolismos e permitiram estudar o código genético, e a biosíntese das proteínas. 

É possível dar exemplos de inúmeras utilizações de marcadores radioactivos e pode mesmo dizer-se que na investigação em biologia, bioquímica ou medicina é actualmente impossível passar sem eles. A transmutação dos elementos, embora tenha subvertido o sonho alquimista inicial, pois não é de ouro que se trata mas sim de outros elementos, permitiu ultrapassar largamente as expectativas da alquimia. 

 

APÊNDICE 

ELEMENTOS, RADIOACTIVIDADE E TRANSMUTAÇÃO 

  Existem cerca de 100 elementos químicos, constituintes de todos os compostos presentes na natureza. Cada elemento é representado por uma ou duas letras.

Exemplos: 1) Oxigénio (O), Cloro (Cl), Azoto (N), Hidrogénio (H). Todos estes são bastante comuns na natureza, seja isoladamente, seja combinados de maneira a formar compostos.

2) Urânio (U), Rádio (Ra), Tório (Th), Polónio (Po), elementos naturalmente radioactivos, ou seja que emitem radiação. Essa emissão é acompanhada por uma perda de massa. Um elemento radioactivo é caracterizado pelo período, tempo que uma dada massa leva a reduzir-se a metade. O período é muito variável de elemento para elemento. O do U 238 é de  anos, o do Ra é de 1600 anos e o do Pb 214 é de 27 min.. 

 – Os elementos não radioactivos têm, no entanto,  isótopos radioactivos, ou seja elementos quimicamente idênticos, mas que contêm um número diferente de neutrões no seu núcleo. No seu estado natural cada elemento é uma mistura de um elemento principal, não radioactivo e de um ou mais isótopos radioactivos em pequeníssimas quantidades. No nosso próprio corpo, esses elementos estão presentes, o que significa que somos todos um pouco radioactivos.

Exemplos: Carbono -12 (não radioctivo) e Carbono-14 (radioactivo). Existe uma percentagem de C-14 em todos os seres vivos, que muda a partir do momento da morte. É nessa diferença que se baseia a datação radioactiva das espécies fósseis.

 – As reacções de transmutação naturais (radioactividade), que foram detectadas por Becquerel e outros, correspondem à transformação do núcleo de um elemento noutro, e traduzem-se por emissão de radiação.

 exemplo:  . Esta simbologia significa que um núcleo de Urânio se tranformou num de Tório com emissão de uma partícula a. Os números que aparecem por detrás das letras indicam a constituição do núcleo do elemento. O Urânio tem 92 protões no seu núcleo e 238 é a soma dos protões e dos neutrões. Claro que o número de neutrões obtém-se por diferença. O número de electrões de cada elemento é sempre igual ao de protões, sendo portanto de 92, para o Urânio.

 –As reacções de transmutação provocada (ou artificial) obtêm-se bombardeando um alvo de uma dada substância com uma partícula. Podem usar-se partículas a (as primeiras a serem usadas), electrões, protões ou neutrões.

exemplo:  Li+p®a+a  (um núcleo de lítio+ um protão dá duas partículasa) 

 – Os aceleradores de partículas são máquinas que permitem imprimir grandes velocidades às partículas electricamente carregadas. Essas partículas tornam-se assim mais capazes de provocar transmutações. As reacções de transmutação, por acção de neutrões, dão-se nos reactores nucleares ou durante as explosões das bombas nucleares. 

 –As reacções nucleares provocadas podem dar origem a substâncias radioactivas (radioactividade artificial). Esta descoberta veio permitir que se fabricasse um grande número de substâncias radioactivas com diversas utilidades, em bioquímica, biologia, medicina, agricultura e história. 

 –A existência de reactores e de aceleradores permitiu também que se fabricassem elementos que não existiam na natureza, os transuranianos. Essas máquinas possibilitaram ainda o conhecimento da natureza e da estrutura da matéria. Esse trabalho está ainda em curso nos potentes aceleradores de partículas que existem actualmente. 

 –Apesar de toda a radioactividade e física nuclear terem contribuído positivamente para a resolução de alguns problemas humanos, o desenvolvimento destas áreas de conhecimento tem tido também o seu lado “negro”. Basta pensar nas explosões das bombas nucleares no fim da II Guerra e também em todos os problemas de poluição e de contaminação radioactiva.    

Bibliografia  

- (1) Bernadette Bensaude Vincent e Isabelle Stengers, Histoire de la chimie, La Decouverte, Paris, 1993

- Pierre Radvnanyi, Monique Bordry, La radioactivité artificielle, Ed. du Seuil, Paris, 1984

- Emilio Segré, From X-Rays to Quarks, Ed. E.Segré, USA, 1980