O discurso alquímico:
um  imanentismo  transcendente?
José Augusto Mourão


As civilizações não nasceram racionalistas nem de ciência pura.

Não há civilização que não tenha visto o florescimento de ciências “intermediárias”: a astrologia, a alquimia, a medicina das virtudes das pedras e dos talismãs. Um fosso imenso separa os espíritos entregues à magia e às práticas teúrgicas e o espírito actual, positivo  da ciência que fala do real sem sombras e da verdade sem véus. Substituamos a verdade - que não tem existência nua - e o real - que não tem realidade objectiva pelo método, como fez C.S. Peirce, que inventou a pragmática e que é também o primeiro filósofo experimentador. Admitamos que a verdade é tudo o que adquire uma comunidade de investigadores, prosseguindo de um determinado modo um determinado objectivo. Admitamos a dissidência. A dissidência faz também parte da natureza humana (e não a verdade pré-humana). Peirce analisa a relação entre pragmática e realidade num dos seus ensaios mais vezes impressos, Some consequences of four incapacities (1868). Que entender então por “real”? Esta questão deve ter surgido quando descobrimos que o não-real, a ilusão habita a nossa experiência do mundo. O real, então, é aquilo a que, cedo ou tarde, vão dar a informação e o raciocínio, independente portanto das nossas fantasias. O que desde logo mostra que a nossa concepção da realidade envolve a noção de uma comunidade sem limite definido e capaz de fazer crescer o seu conhecimento de maneira significativa. O conhecimento (real ou não real) forma-se a partir daquilo que uma comunidade continuará a reafirmar ou a rejeitar. Nada nos impede de conhecer as coisas exteriores como elas realmente são. Para a ciência, o real são configurações abstractas, incompletas relativamente às nossas experiências. São estas abstracções que formam o real da ciência, a partir do qual são elaborados os mais eficazes e poderosos procedimentos técnicos. O provável, o possível e o virtual, modos do não-actual, são os momentos essenciais de qualquer conhecimento do mundo empírico. A ciência estabelece uma barreira entre o mundo dos objectos a investigar – através da instituição de um ponto de vista, um método – separadamente da experiência. Um corte institui o  momento da ciência e desde logo a distinção entre factos e valores. A separação entre alquimia e ciência ocorre paralelamente à mudança de paradigma nas ciências em geral, paradigma que introduz uma divisão na unidade da natureza, e do divórcio entre a ciência matemático-física e a experiência vivida, divórcio que Husserl interpretará como uma crise das ciências europeias e da própria razão.  

A verdade dos mitos 

As Musas ensinaram a Hesíodo as “verdades” dos mitos (Théogonie, v. 28). O mundo moderno tornou-se inteiramente ruído. A ”catharsis do silêncio” (Kierkegaard) tornou-se simplesmente impossível. A ciência representa, no processo de desencantamento progressivo (Entzauberung) que Max Weber previu, uma função charneira. A ciência rompeu, por razões que não apenas metodológicas, na construção do objecto científico, com a relação  do não-actual com a experiência. Alan Prochiantz, ao explicar os progressos e os pontos nucleares da embriologia e da neurobiologia, mostra como o desenvolvimento do cérebro, sob o governo rígido de alguns genes, conduz paradoxalmente à afirmação de uma liberdade abissal que abole a própria noção de Natureza. Aí está um problema grave e um fantasma que persegue a ciência desde a sua constituição no século XVII: a abolição da natureza. Para I. Prigogine nós estamos a assistir à emergência de uma ciência que já não se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos coloca diante da complexidade do mundo real, uma ciência que permite à criatividade humana viver como a expressão singular de um traço fundamental de todos os níveis da natureza. Diante desta operação de limpeza do “charme”, ao mana, às correspondências secretas entre todas as coisas, só os poetas, aparentemente protestavam. Mallarmé, por exemplo: “Rien autrefois sorti de l’artifice humain...aujourd’hui ne veut disparâitre, du tout”. Ou Pessoa. É sobejamente conhecida a ligação que sempre se reconheceu entre a poesia e a magia. Freud ocupa-se em Totem e Tabou da importância psíquica e cultural da magia, escrevendo a determinada altura:

É com razão que se fala da magia da arte e que se compara o artista a um mágico.. A arte, que não começou certamente como art pour l’art (em francês no texto), encontrava-se na origem ao serviço de tendências a maioria hoje extintas. Podemos conjecturar que havia entre estas tendências um determinado número de intenções mágicas6 . 

A literatura vive da primitiva aliança entre o verbum e a res. Esta ideia enraíza-se no Crátilo de Platão e na crença que os nomes próprios, e por extensão, todos os nomes comuns são naturais e não convencionais e que comportam uma verdade ou exactidão. “Aquele que conhece os nomes conhece igualmente as coisas que eles exprimem”, diz Crátilo, contra Hermógenes (Cratyle, 383a, 435d). Não faltou quem defendesse uma semiótica natural que englobaria todas as representações. O corpo desta teoria cratiliana passa por Filão o Judeu, passa pela escola neoplatónica alexandrina, pelo Corpus Hermeticum, pela Cabala hebraica e pela gramática filosófica dos modistas medievais. Durante a Renascença esta teoria é renovada por Marsilio Ficino e retomada por Pic de la Mirandole e depois, entre outros, por Paracelso no século XVII, por Bohme e Comenius e Charles de Brosses no século XVIII. O romantismo dar-lhe-á um grande lugar, em especial com Novalis e Coleridge, deixando marcas em numerosos outros poetas: Nerval, Baudelaire, Yeats, etc. Evidentemente, não se pode esquecer Goethe, simultaneamente poeta e cientista. Na contra-corrente da sua época, a uma ciência positiva, físico-matemática, mecanista, triunfante, Goethe tenta reunir num mesmo processo as três grandes dimensões da existência que são o conhecimento verdadeiro da natureza, a expressão autêntica da subjectividade vivida e a transfiguração estética de uma e de outra.  As suas noções de morfologia e de metamorfose releva, deste novo paradigma que vai muito além do tradicional par idealista da forma e da matéria: “A forma aqui é convocada pela matéria como um estádio superior; provém dela, emerge dela a partir de um processo de interacção, de oposição interna, de diferenciação, que escapa a qualquer finalidade externa ou predeterminação” (Ibidem: 62).  

A literatura hermética 

A literatura hermética comporta duas espécies de escritos muito diversos: uma série de escritos – alguns podem remontar ao século III antes da nossa era – que se ocupam da astrologia, da alquimia, da magia e geralmente das ciências ocultas. É aquilo  a que A. J. Festugière chama o hermetismo popular10 . Há depois uma outra série de escritos, dos séculos II e III da nossa era que pertencem à área da filosofia e da teologia, a que o mesmo autor chama hermetismo culto11 . Em tradução latina existe uma espécie de compêndio  de todas as partes da astrologia, o Liber Hermetis (editado por Gundel em 1936). O original grego pode remontar até ao começo da astrologia greco-egípcia, ie., ao século III a.c. A alquimia greco-egípcia parece ter sido organizada sobretudo por Bolos de Mendès (no Egipto), dito o Democriteano (por volta de 200 a.c). Há uns restos de uma obra alquímica intitulada Physika et Mystika. Entre Bolos e os escritos do alquimista Zozima, no século III da nossa era, restam da literatura alquímica alguns fragmentos sem grande interesse no seu conjunto. Os mais importantes devem-se a Zozima que sofreu a influência do hermetismo culto e que cita dois tratados deste hermetismo, o Proimandrès e o Cratère. O hermetismo popular separa-se radicalmente da noção de ciência aristotélica (contemplativa, universal, dedutiva, reducionista, formal) ou elaborada pelo racionalismo grego que se pode resumir nesta frase recolhida por Xenefontes nas suas Mémorables (I, 1, 9): “Quando é possível saber alguma coisa recorrendo ao número, à medida e ao peso, interrogar os deuses para a conhecer, é cometer a acção mais ímpia.” A nova concepção da ciência que se forma no Egipto a partir do século II ac. rompe de todo com o racionalismo grego. O sábio agora tornou-se interessado e pretende tirar proveito daquilo que sabe, seja para conhecer a sua sorte (astrologia) seja para produzir ouro (alquimia), seja para se tornar senhor da natureza a agir sobre o destino dos homens (ciências ocultas, magia). O que interessa agora é o particular, a propriedade maravilhosa, o mirabile, as leis de simpatia e de antipatia (Plínio). Observam-se as acções e reacções dos minerais entre si e nisso se fundava a alquimia, isto é, a origem, a arte de obter um metal semelhante ao ouro. Ou considerava-se a acção das plantas ou de certas substâncias animais (a matéria médica) sobre o homem e obtinha-se assim uma espécie de história natural que tendia para a farmacopeia. O último salto especulativo a dar era Imaginar cadeias ou “séries” verticais, suspendendo a um determinado astro toda uma hierarquia de seres, desde o anjo ao mineral. Aquele que conhecia estas “séries” era o senhor da natureza. O objecto da ciência agora é a virtude oculta, escondida à razão e em parte um objecto divino, revelado. A ciência moderna nova é agora a transmissão de um mistério. O hermetismo culto aproxima-se, em última análise, de uma certa noção da religião, ou do conhecimento de Deus, com eleitos, magos, sacerdotes.

De facto, a alquimia não consistia apenas num certo número de receitas para enriquecer os homens. Os sábios que, no tempo dos Alexandrinos a tinham cultivado, tinham tentado fazer dela uma ciência verdadeira, ligando-a ao sistema geral dos conhecimentos do seu tempo12 . M. Berthelot diz-nos que ao lado de descrições e de preceitos puramente empíricos que chegavam da prática das indústrias químicas da antiguidade, ao lado das imaginações místicas se encontra um corpo de doutrinas filosóficas que constituem propriamente a teoria da nova ciência. A alquimia era uma ciência positiva e uma filosofia, com os seus teólogos (os filósofos puros) e os seus físicos (os filósofos naturalistas). A química comportava então um aspecto simultaneamente positivo e místico. Berthelot cita em apoio desta ideia uma carta escrita no século XI por Michel Psellus ao patriarca Xiphilin: “Assim as mudanças de natureza podem fazer-se naturalmente, não em virtude de uma encantação ou de um milagre ou fórmula secreta. Há uma arte da transmutação. A condensação  e a rarefacção das matérias, a sua coloração e a sua alteração: aquilo que liquifica o vidro, como se fabrica o rubi, a esmeralda; que procedimento natural amolece todas as pedras: como se dissolve a pérola e se torna água; como coagula e se forma em esfera; qual o procedimento para a branquear; quis reduzir tudo isso aos preceitos da arte...Mas tu queres conhecer o seu segredo, não para ter grandes tesouros, mas para penetrar nos segredos da natureza; como os antigos filósofos, cujo príncipe é Platão.” (op. cit., p. 250).  

Eclipses 

Oficialmente desaparecida  da cena cultural ocidental desde a Idade das Luzes por “obscurantismo”, o Theatrum Chemicum, a alquimia, continuou a ser venerada pelos “homens de Obra” (poetas, músicos, pintores, pensadores...) em razão da estranheza poética do seu simbolismo e pelo papel que sempre se lhe reconheceu de ser um espaço mediador entre o Céu e a Terra, as formas recorrentes de dualismo e a nostalgia unitária. A obra monumental de Françoise Bonardel13  mostra bem as vicissitudes da arte de Hermes, a sua perda de credibilidade científica e a sua permente função de mediação entre saber positivo e “gnóstico”. Considerada como uma “Religião da Ciência e uma Ciência religiosa”, a alquimia intervém em período de crise como nostalgia unitária, misturada com o hermetismo, ocultismo, teosofismo em vista da “Grande Síntese” que reconciliará as ciências e a Tradição. Dela se pode dizer o que R. Amadou diz do ocultismo: “Sincretismo apressado e superficial” e ao mesmo tempo “generosa e santa reacção da livre investigação contra os excessos do dogmatismo do ensino positivista e do materialismo cientista”14 .

O ideal de inteligibilidade  tem no ocidente um nome: Razão. Imperfeitamente traduzido pela palavra latina ratio (cálculo, avaliação, raciocínio, o Logos grego torna-se a “medida” a que se referem as turbulências de qualquer “irracional”. Embora se possa falar de “coerência interna do imaginário” (R. Caillois) ou mesmo de “lógica mística ou mórbida” (S. Lupasco). As emoções, as paixões, as crenças são desde logo classificadas como manifestações heterogéneas da razão, se não mesmo irracionais: por falta de lógica ou pela sua inadequação ao “real”? À primeira vista, é o carácter heteróclito, a singularidade de um fenómeno que indica o lado mais forte do “irracional”, assimilado a um estado imaturo da racionalidade, “obscurantista”, de todos os pseudo-pensamentos: alquimia, astrologia, adivinhação. Paracelso atribui à alquimia uma virtude e um poder de separação salutares: “nós temos em nós um Alquimista, colocado no nosso corpo por Deus, o Criador, com o fim de separar o veneno do alimento salutar”15 . Cada criatura possui o seu Alquimista, assim chamado porque, para realizar a sua operação de separação, se serve da química. Habitando no ventrículo (estômago, ou a regiâo epigástrica), ele separa o mau do bom; transmuta o bom em tintura; tinge o corpo para nele manter a vida, ordena e dispôe aquilo que está submetido á natureza. Paracelso dá o exemplo do homem que come carne, que contém em si mesma uma parte venenosa e uma outra salutar. Antes que o alimento deslise no ventre, o Alquimista precipitando-se imediatamente, estabelece a separação (Ibidem: 64).

Acusou-se o discurso alquímico de irracionalismo, de retórica encantatória da diluição e do amálgama – solve et coagula – de panaceia analógica e unitária, de imanentismo transcendente, de confundir mutação e transmutação. G.G. Granger distingue três tipos de irracionalismo: o primeiro seria o irracional como obstáculo, ponto de partida duma reconquista da racionalidade, o segundo, o irracional como recurso, meio de renovar e de prolongar  o acto criador, o terceiro, o irracional por renúncia, ou por abandono, é pelo contrário uma verdadeira rejeição do racional16 . Não é clara a distinção do que é para alguns o racional e aquilo que é irracional17 . Contra o velho dualismo cartesiano que e contra aqueles que quereriam reduzir o funcionamento do espírito humano ao cálculo  frio do supercomputador, as aquisições recentes da neurologia dizem que a ausência de emoções e de sentimentos impede de ser verdadeiramente racional (Vd.  Damásio, O erro de Descartes). Em vez de irracionalismo é preferível falar, como I. Hacking, de incomensurabilidade ou, preferentemente, de dissociação18 . Paracelso (1541) é o paradigma mais vezes evocado para ilustrar o interesse dado a todas ciências herméticas: medicina, psicologia, alquimia, astrologia, adivinhação. Tudo isso fazia parte de uma única “arte”. “O historiador pode encontrar em Paracelso passagens que anunciam a química e a medicina a vir. O herborista pode também encontrar nele determinados segredos esquecidos. Mas ao tentar lê-lo descobre-se alguém muito diferente de nós”19 . Donde vem este estranhamento? O tom geral da sua obra passa por frases como esta: “O trabalho da natureza efectua-se por outras vias, as imagens, as pedras, as ervas, os halos e outros produtos dos céus que não naturais”. O que nos escapa é o modo de organização do pensamento, o sistema de categorias. Há na Renascença escritores, e dos mais inteligentes, que fazem as mais bizarras declarações quanto à origem dos patos e dos cisnes. As patas, por exemplo são geradas pelos troncos que fluctuam, apodrecidos, na baía de Nápoles. É o seu sistema de crenças que nos é incompreensível. O problema é que não podemos ligar nem a verdade nem o erro  a muitas das suas proposições. A sífilis deve ser tratada pela aplicação dum unguento de mercúrio e por administração interna do mesmo metal porque o metal “mercúrio” é o signo do planeta Mercúrio que, por seu turno, simboliza o lugar do mercado e a sífilis que se contrai no mercado. “Compreender esta proposição e compreender a teoria do calórico de Lapace são dois exercícios que diferem totalmente”20 . O discurso de Paracelso é incomensurável com o nosso porque é impossível encontrar um denominador comum entre o seu discurso e o nosso. Não podemos nem apropriar-nos nem recusar o que ele diz. “A diferença entre nós e Paracelso é da ordem da dissociação” (Ibidem). São dois mundos que não comunicam e não se trata apenas de uma questão de linguagem. Há uma razão de peso a isso: muitas das suas declarações não se prestam à prova do verdadeiro-e-do-falso. E uma outra: há no centro do seu pensamento estilos de raciocínio (esquemas conceptuais) esquecidos. Para Paracelso o mundo estava preso a uma rede de possibilidades, imbricado em modos de raciocínio que não são os nossos. É isso que nos dissocia dele.  

A semiose hermética 

A semiose hermética pode evocar a semiose limitada de Peirce. Eco define-a como um de “neoplasma conotativo”21 . À primeira vista, algumas citações de Peirce poderiam confirmar o princípio de uma deriva interpretativa infinita: 

The meaning of a representation can be nothing but a representation. In fact it is nothing but the representation itself conceived as stripped of irrelevant clothing. But this clothing never can be completely stripped off: it is only changed for something more diaphanous. So there is na infinite regression here (CP 1.339).

Como se sabe, a semiótica de Peirce baseia-se num princípio fundamental: “A sign is something by knowing which we know something more” (CP 8.332). Ora a norma da semiose hermética parece ser esta: “un segno è qualcosa conoscendo il quale conosciamo qualcos’altro” (Eco). Na semiose ilimitada a interpretação aproxima-se, mesmo se é de modo assintótico, do interpretante lógico final.  

A modalidade interpretativa do hermetismo Renascentista assenta nos princípios da analogia e da simpatia universal. Segundo estes princípios, cada elemento do mundo está ligado a um outro elemento do mundo sublunar e por sua vez a um outro do mundo celeste por via de similitude ou semelhança. A característica principal da deriva hermética parece ser a habilidade para passar de um significado a um outro significado, de uma conexão a outra, de acordo com a crença num “lugar” de transmutação pressentida entre alquimia prática e mística, história e Tradição, ciência e Gnose. O “demónio da analogia” é bem a característica maior do discurso alquímico. A analogia situa-se na fronteira do pensamento mágico e do pensamento lógico, na medida em que resulta dum empirismo de primeiro grau. A analogia é repetitiva e não criadora de sentido.  Ela alimenta um saber horizontal empírico, técnico, infratranscendental porque ela própria é infrassimbólica. Integrada num contexto cultural torna-se uma forma de retórica: a alegoria. A alegoria é a imagem poética mais espalhada na poesia clássica porque a mais consumível pelo leitor, não exigindo esforço nem amor, mas assentimento a uma indefectível banalidade da vida. Veja-se o Sonho Enigmático de Enodato onde, em termos alegóricos, volta a ser reafirmada a matéria da Lapis, o modo da sua preparação e as virtudes da almejada Pedra22 , não indemne de uma forte coloração moral. É a analogia que perpetua o sucesso de La Fontaine e da fotografia. Embora testemunhe de uma certa liberdade em relação ao pensamento discursivo, a analogia está ainda incluída no pensamento da logosfera babélica. Se pudéssemos explicar uma imagem por uma outra imagem - o que é uma redução do símbolo pela analogia - deveríamos recorrer à física da electricidade que nos mostra que a faísca se produz por ruptura. O “belo como” defende-nos de qualquer risco de transcendência, garantindo a rigorosa horizontalidade das relações poéticas em conformidade com o imperativo a que se dobra o pensamento mágico. A metafísica releva de uma camada metamórfica já morta, esquecida: uma escrita branca e invisível. O movimento de metaforização que origina a passagem do sentido próprio sensível ao sentido espiritual através do desvio das figuras não é senão um movimento de idealização (Derrida). Mas este modo de falar aponta apenas o valor negativo e desfigurativo da metáfora. A desconstrução da metáfora esquece aquilo que Ricoeur chama a metáfora viva. A metafórica pode operar-se como transfiguração viva, isto é, incarnação do sentido possível na carne sensível do mundo, transcendendo este mundo: incarnação-transcendência temporal. A figuração não é mentira, mas abertura para o além. Pode reconhecer-se à metáfora um duplo papel: desfiguração reificante do sentido (a metáfora morta) ou transfiguração dinâmica de sentido (metáfora viva). Só o reconhecimento de uma diferença escatológica impede a metáfora de cair na mentira. Para Derrida a metáfora é um círculo que recusa a saída, uma reductio ad absurdum. A metafísica da presença não escapa ao círculo vicioso da metaforicidade morta e mortificante. Mas há saída. Metafórica transfiguradora e iconoclasta - só essa liberta do fetichismo metafísico do próprio sem nos entregar ao não-sentido de uma desconstrução à deriva. Há, de facto um entrelaçamento quiasmático entre a figuração primária da nossa experiência e a figuração crítica e reflexiva. H. Parret propõe que se analisem os jogos infinitos, as experiências fusionais, a memória nostálgica – factores de heterogeneidade – “fímbrias estéticas” do objecto pragmático, a partir do modus aestheticus23 . É esse modus que, efectivamente, melhor convém ao discurso alquímico que anuncia, por exemplo, a escrita surrealista, a magia da linguagem, a estética da transfiguração, mais próxima das exigências da transmutação. Contra aqueles que denunciam a obscuridade do discurso alquímico, é preciso relembrar que a claridade não é um critério de verdade (E. Burke). A Ars Magna tem uma finalidade sotereológica, messiânica, notada nomeadamente por O. Wronsky24  e até a sua virtude operativa, o seu fazer releva mais da magia do que da técnica. 

O único modo de escapar a uma infinidade de arborescências é considerar o mundo de maneira holística. Se há apenas um mundo, aquele que descrevem as ciências, então há apenas uma natureza, um único sistema de leis, uma única coerência possível. Possivelmente esta unidade escapa-nos de todo. O constrangimento da clausura bem parece ser uma ficção metodológica, ou pelo menos relativa a uma maneira de escrever as equações.  Há um mundo único e múltiplas ciências, múltiplos sistemas abertos ou fechados. E cada um tem a sua linguagem de descrição, o seu modo de formular ou fugir à realidade. É essa a grande dificuldade lógica da pluridisciplinaridade. Os conceitos científicos são antes de mais respostas a questões ou interrogações formuladas num domínio, numa dada linguagem. Como fazer passar os conceitos de um domínio a outro?  Há um fosso entre a convicção profunda da unicidade da natureza que é o pano de fundo de todas as nossas concepções actuais e a realidade da dificuldade em fazer comunicar aquilo que é conceito para um e imagem prática para outro. Relativamente à alquimia, a dificuldade não está em coordenar dois tipos de discurso, marcando fronteiras, mas antes em ver como é que um e outro explicam o como e o porquê do real. O espírito visa o mesmo real em todas as disciplinas. A experiência humana não é apenas científica. A ciência e a teologia falam daquilo que lhes é dado a compreender, aquilo que lhes é dado como domínio de investigação à sua penetração; relevam de uma mesma exigência de racionalidade. Esta exigência não incide unicamente sobre a organização do pensamento e o seu encadeamento lógico, funda-se numa mesma confiança na racionalidade do real, fonte da sua inteligibilidade. Apesar da heterogeneidade irredutível dos discursos. A alquimia procura a quinta-essência das coisas, o que resta dos elementos quando separados dos seus arcana.  É essa procura que fará a harmonia entre o astro interior, o microscosmos-homem e o astro do macrocosmo-celeste. 

Para a ciência moderna o universo não é vazio, mas quase. É ao físico que cabe dar um sentido a este “vazio” e a este “quase”. Desde a Antiguidade que os físicos se esforçam por dar a explicação mais simples e coerente do funcionamento global da matéria. Quatro forças primordiais foram evidenciadas. Falta ligá-las. A física contemporânea anda ainda à procura de unificação para responder à questão: que se esconde por trás daquilo que vemos? Nós somos uma temível mistura de ácidos nucléicos e de lembranças, de desejos e de proteínas. O século que acaba ocupou-se muito de ácidos nucléicos e de proteínas. Ocupar-se-á o século que vem da memória, do global e do desejo? É a magia uma ficção inútil? Não denuncia Bentham em nome da utilidade um certo número de ficções, dizendo ao mesmo tempo que a utilidade é também uma ficção?25    

    Notas 

 1 Jean Baudrillard, Le Paroxyste Indifférent. Entretiens avec Ph. Petit, Paris, Grasset, 1997, p. 185.

 2 Vd Gilles-Gaston Granger, Le Probable, le possible et le virtuel, Paris, Odile Jacob, 1995.

 3 Alain Prochiantz, La Biologie dans le boudoir, Paris, Odile Jacob, 1995.

 4 Vd. Prigogine, La Fin des certitudes, Paris, Odile Jacob, 1996, que estuda as relações entre física e matemática.

 5 Stéphane Mallarmé: Oeuvres, ed. Y.-A. Favre, Garnier, 1985, p. 332.

 6 S. Freud, Totem und Tabu, Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1956, p. 96.

 7 Vd. Brian Vickers, “Analogy versus Identity: the Rejection of Occult Symbolism, 1580-1680”, Occult and Scientific Mentalities in the Renaissance, ed. B. Vickers, Cambridge UP, 1984. Cf. Thomas M. Green, Poésie et magie, Paris, Julliard, 1991.

 8 Jean Lacoste, “L’oeuvre scientifique”, magazine littéraire nº 375 – avril 1999, p. 61.

 9 O nome de Ciências ocultas remete para propriedades ocultas, virtudes escondidas, que estabelecem entre os seres dos três reinos no mundo (animais, vegetais e minerais) relações de simpatia e de antipatia. Estas relações são os “segredos da natureza”, como se dirá na idade Média. Só os conhece o mestre da natureza que pode produzir acções com um carácter maravilhoso, que opera milagres, taumaturgo e mágico. Esta representação do sábio (Dr. Faust) foi forjada, segundo Festugiére, no começo do século II antes da nossa era, sob a influência de Bolos. É ela que reina sobre a literatura helenística e greco-romana dos mirabilia. É também ela que inspira a Naturalis Historia de Plínio e um opúsculo célebre na Idade Média, o Physiologue. O hermetismo entra nesta literatura através de uma obra intitulada a Kyranide ou os Kyranides,, cujas partes mais antigas remontam ao século I da nossa era.

 10 A .J. Festugière, La Révélation d’Hermès Trimégiste: I, L’astrologie et les sciences occultes, 1944.

 11 A literatura deste tipo de hermetismo compreende o Corpus Hermeticum (em grego),  a tradução latina, denominada Asclepius, de um original grego perdido, o “Discurso Perfeito”, pouco menos de trinta extractos no Anthologium de Stobée (por volta de 500).

 12 M. Berthlt, Les Origines de l’Alchimie, Paris, G. Steinheil, 1885, p. 246.

 13 Françoise Bonardel, Philosophie de l’ Alchimie. Grand Oeuvre et Modernité, Paris, PUF, 1993.

 14 “Artigo “Occultisme”, Encyclopaedia Universalis.

 15 Philippe Aureolus Theophraste Bombast de Hohenheim dito Paracelso, Oeuvres Complètes, t. I, Paris, Bibliothèque Chacornac, 1923, p. 61.

 16 Vd Gilles-Gaston Granger, L’irrationnel, Paris, Odile Jacob, 1998.

 17 VD. Françoise Bonardel, L’ Irrationnel, Paris, PUF, 1996.

 18 Donald Davidson, por exemplo,  considera a ideia de incomensurabilidade incoerente por implicar a existência de esquemas conceptuais diferentes e incomparáveis. Ora, escreve ele, “a ideia de um esquema conceptual é incoerente” (Vd. “On the very idea of a conceptual scheme”, Proceedings and Adresses of the American Philosophical Association 57, 1974, pp. 5-20). Ninguém negará que astronomia e genética são incomensuráveis. Mas a doutrina da incomensurabilidade do sentido pretende que mesmo as teorias que se sucedem são incomensuráveis. Mas como falar de incomensurabilidade se não reconhecemos que elas tratam do mesmo assunto e que podemos fazer comparações entre elas?

 19 Ian Hacking, Concevoir et expérimenter, Paris, Christian Bourgois, 1989, p. 124.

 20 Ian Hacking, op. cit., p. 126.

 21 Umberto Eco, “Semiosi illimitata e deriva ermetica”, in Espaces du texte. Recueil d’hommages pour J. Geninasca (ed) P. Frohlicher, G. Guntert, F. Thulermann, Langages, A la Baconnière, Neuchâtel, 1990, p. 45.

 22 Anselmo Caetano, Ennoea ou Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, Lisboa Occidental, Off. Mauricio Vicente de Almeida, 1732 e 1733, p. 78.

 23 Cf. H. Parret: A estética da Comunicação, Unicamp, 1997. 

 24 O. Wronski, Prolégoménes au Messianisme, Paris, 1842.

 25 Christian Laval, J. Bentham. Le pouvoir des fictions, Paris, PUF, 1994.