Alquimia e religião:
NO CRUZAMENTO DO VISÍVEL E DO INVISÍVEL 
José Augusto Mourão

1.    A cultura é uma invenção do homem para curar o medo diante do aspecto primário da vida, aquilo a que Ortega chama a selva em que reina Pan. O homem inventou os seus mitos, o seu mundo de formas para tentar preservar a unidade do que está em baixo e do que está em cima, aquilo a que Raimundo Lúlio chama o “omnia in unum”. Já os pré-socráticos  elaboram a primeira teologia racional, assimilando Deus com a Causa primeira, Causa entendida ainda como Causa material: a Água de Tales, o Fogo-Logos de Heraclito, o Ar de Anaximandro e de Diógenes de Apolónia (cf. As Nuves de Aristófanes). No século V a teologia é já uma ciência, como se pode ver em Platão e particularmente no Timeu ou nas Leis (1. X). Esta teologia vem ligada a um sistema astronómico e a uma doutrina do  movimento: a demonstração da existência de Deus é um exercício da razão pura que pode e deve transformar-se em piedade, mas que, em si mesma, é da ordem da ciência e não da religião.  

2.    Muito pouco se tem escrito sobre a alquimia em Portugal e muito pouco se sabe da história da alquimia entre nós, para além de rumores ou indícios, signos ligados, como se sabe, mais à indução e à abdução do que à dedução. A alquimia foi durante muito tempo a ciência dos opostos, como Amorim da Costa lhe chama no livro em muito boa hora aparecido para ilustração de um conflito nunca suficientemente explicitado. O ponto porventura mais luminoso deste livro é aquele onde se mostra com clareza a ruptura epistemológica intrínseca à passagem da visão holística para a visão mecanicista do universo. Leia-se este livro sobretudo como um convite a entrar no Mundo Subterrâneo do Enigma, da Pedra Filosofal, do abismo que nos separa do tempo e do espaço das correspondências e do Uno. O balanço de uma ciência que ligava tudo, como é mister da religião, está feito, em termos de crédito e de débito. O trabalho deve continuar. Manuel Gandra promete-nos um trabalho de fôlego neste domínio. Bem vindo será.  

3.    Os escritos alquímicos são, ao começo, apenas receitas técnicas que passavam de pais a filhos, no Egipto. Preciosas, as fórmulas alquímicas logo se tornaram apanágios divinos (Hermes, Thoth, Isis, Osiris)  ou reais (Cleópatra), só aos “filhos legítimos” e aos “dignos” divulgados. É assim que se constituem recolhas de “ditos” – de Hermes ou de Agathodemon –  receitas técnicas a que se juntavam aforismos sobre os princípios da transmutação e o dogma da matéria primeira que a fundava em razão: assim a palavra famosa, repetida pelos alquimistas e que simbolizava a imagem da serpente que se morde a cauda (ouroboros). Rapidamente surgem tratados e colecções sobre esta arte sagrada: fabricação do ouro, da prata, das pedras preciosas. Para Festugière, com Zozima (fim do século III) a alquimia torna-se um verdadeiro mysterion, uma ascensão  em que a alma sobe os degraus da escada mística, com baptismo na cratera, morte e regeneração, queda e ressurreição do Primeiro Homem, espelho celeste em que a alma se vê na sua verdadeira natureza. De simples receitas técnicas (Pap. X de Leyde), a alquimia, sob influência da gnose e do neoplatonismo, torna-se uma espécie de um género comum a toda a antiguidade decadente. Nietzsche di-lo melhor do eu ninguém: todo o “caos cosmopolita de afectos e de inteligências”de inspiração alexandrina prospera geralmente em terrenos “decadentes” incapazes de desempenhar este papel e provocando um fenómeno de auto-tortura, paródia vampiresca da circulação ourobórica constitutiva da Grande Obra.  

4.    No seu discurso e na sua prática, a ciência alquímica visava, pois, “uma operação filosófica em que ocorresse não apenas a união de duas formas de matéria, mas também, e sobretudo, a união da forma e da matéria”. Experimental, mística e sotereológica, a alquimia só se tornou uma “disciplina estranha” quando se deu o divórcio dos letrados e das religiões, quando já ninguém acreditava no real ou no mundo como em termos de aparição. Quando, no século XVII, mas com maior incidência a partir do século XVIII, findas as harmonias e as analogias para sempre perdidas, a Razão estabelece uma distância ambígua com a Natureza, e até com a humanidade. Tal acontece quando a visão holística, mágico-vitalista do universo é substituída por uma outra visão, mecanicista, quantificável, lógica e observável. A dissolução do laço entre o homem e o universo é efeito da ciência moderna, coperniciana, kepleriana, galileana, isto é, da descentragem do homem no meio do universo, da crítica da finalidade e de um conceito de lei que alinha os homens ao lado dos outros fenómenos. Isto perturbou a filosofia e mudou as crenças. Desde há quatro séculos que esta crise dura. O exemplo do darwinismo é eloquente. A visão científica do mundo tornou caduco o princípio de analogia que Paracelso levara ao extremo: as plantas medicinais levavam uma assinatura que identificava e autentificava as suas virtudes. Essa visão perdeu-se, em grande parte.  

5.    Todas as filosofias procuraram uma “Arcôntica” da referência (Deus, a Natureza, o proletariado, a vontade de poder). A referência é um conceito-signo que remete para linguagens diversas mas conhecidas e institui uma comunidade de comunicação na continuidade da tradição. Mas é a sedução – semeadora de heterogeneidades e cimento da intersubjectividade - que é  uma fractura que convida a estetizar o objecto pragmático. O próprio da alquimia é a utilização de símbolos por oposição à ciência que, enquanto sistema de troca, de informação, de armazenagem, pretende dar um sentido final e objectivo, ou por oposição à ascese cahn por exemplo, que se despoja de todo o suporte mesmo que seja simbólico. A originalidade fundamental do pensamento alquímico é a sua utilização da linguagem nos confins da indecibilidade do sujeito e do objecto. Esta linguagem é entendida como uma estrutura que ordena o mundo a partir de símbolos. A alquimia é um jogo de formas que se alimenta da cumplicidade e da hostilidade dos elementos, tais como a água e o fogo. Neste modo de circulação simbólico, de reversibilidade e de encadeamento, de constelações, os animais, os vegetais, os homens, os elementos “conversam” uns com os outros e ao mesmo tempo  contrariam-se. O seu elemento “religioso” advém-lhe da sua aptidão para manter a unidade, para ligar.  

6.    A ciência aparece-nos hoje como a antítese da magia. Mas não foi assim na história da ciência. O combate contra a magia ou o pensamento mágico durou séculos, atravessando campos tão diversos como a teologia, a filosofia,  a medicina, a ciência. Em 1267, Boaventura toma a palavra na igreja franciscana de Paris, misturando o aristotelismo e um conjunto de doutrinas, de superstições ou de práticas mágicas. R. Grosseteste, que escreve as suas obras na primeira metade do século XIII, coloca a astrologia na primeira fila das ciências e acredita na transmutação dos metais. Dante junta no mesmo ‘céu’ do  Paraíso Tomás de Aquino, Siger de Brabant e Alberto Magno (cf. Par. X, 1-148). Não há, então, incompatibilidade entre a Grécia e a Revelação, o averroísmo latino, e o intelectualismo integral entram no mesmo convívio de transmutação das ideias. A ciência experimental, que teve em R. Bacon um dos seus maiores epígonos, tem uma dívida para com as ciências  a que chama ocultas. O Doutor Fausto, de Marlow, no final do século XVI, esperava da magia um total poder sobre a natureza. Para Newton, que praticou a alquimia muito tempo,  a gravitação era um fenómeno oculto (inexplicado). Teofrasto Paracelso (1493-1541), o “médico errante” da filosofia química, é uma das figuras mais interessantes deste combate e Amorim da Costa dedica-lhe um dos mais interessantes capítulos do seu livro. O seu tempo abre duas grandes vias para pensar o projecto de uma união secreta do homem com a natureza, uma que passando pelo filtro de forças misteriosas, divinas ou demoníacas e de procedimentos técnicos de tipo iniciático,  abarca a alquimia, a necromancia e a magia; outra que passa pela descrição rigorosa dos fenómenos, tendo em conta os progressos da técnica e que combate o recurso ao esoterismo. De um lado, Leonardo  e depois Galileu, do outro, Paracelso, o bispo alquimista Erhart Baumgartuer ou o erudito da alquimia, da kabala e da astrologia Johan Tritemius. O corpo humano é um sistema químico – ideia revolucionária – em que têm papel fundamental os dois princípios tradicionais dos alquimistas, o enxofre e o mercúrio, a que Paracelso acrescenta o sal. O mercúrio é volátil, o sal dá solidez, o enxofre é princípio de combustibilidade. As doenças resultam das múltiplas modalidades do seu desiquilíbrio. Não são uma desarmonia dos “humores”, mas dos “poderes” exteriores que agem sobre o homem: o ens astrale, o ens veneni, o ens naturale, o ens spirituale e o ens Dei. Parecelso estuda o ácido nítrico, os sais e outros sulfatos, produtos narcóticos, éters, etc. Dá aos alquimistas, ocupados na procura da pedra filosofal que devia transmudar os outros elementos em ouro, a tarefa nova de transformar minerais e metais em medicamentos. A medicina de Paracelso é uma filosofia da natureza, arte de ver em toda a realidade animada o invisível princípio espiritual (astrum, ou virtus ou scientia) em que se articulam mil forças ou arcanes, disseminados na natureza. Na sua visão, o homem é corpo mas também, enquanto microcosmo, imagem do universo, havendo entre o microcosmo e o macrocosmo uma secreta correspondência. Ele inventa um novo olhar sobre as complexidades visíveis e invisíveis da natureza. O caminho estará aberto para que o olhar se mude em “mão” – uma mão que a Razão dirige e que, via ciência e técnica, “manipula”, utiliza, domina a natureza.  

7.    A recusa da constatação de divórcio entre a alquimia e a filosofia está na origem da Naturphilosophie que apareceu no século XIX. O estudo da física sagrada e da teosofia revela uma face da modernidade marginalizada por filósofos como Kant e Hegel10 . O princípio moderno da autonomização das ciências relativamente a uma qualquer tutela ideológica vai de encontro à exigência de libertar as ciências humanas de qualquer juízo normativo, mas acaba por desembocar numa concepção cientista das ciências, afinal, uma nova figura de submissão à ideologia. A ciência tornou-se moralismo dogmático. Lamentavelmente, o sucesso da ciência suscitou mais a idolatria  do que o seu reconhecimento como um conjunto de métodos específicos. De facto, o que faz o seu sucesso é menos o método que o tipo de objecto a que se aplica uma reflexão liberta dos antigos constrangimentos do sagrado. A ciência mais fundamental, a física, em vez de se unir sob a égide da electrodinâmica, ou da mecânica, como se esperava no fim do século XIX, dividiu-se em numerosos ramos; entre estes, dois essenciais, a relatividade e a física quântica, andam ainda à procura da sua síntese. Hoje, fiel à sua reputação feita de rigor e de exigência, a razão afirma sem complexos o seu dever de duvidar, impor limites: depois da arrogância, a humildade. O método racional ensina-nos que é doravante irrisório procurar através dele - e só por ele- atingir uma verdade absoluta e definitiva. A Verdade, se existe, não é entidade sobre que o método racional pode desembocar. O método racional permite demonstrar a coerência (a não-contradição) duma verdade cujos fundamentos ontológicos (os pressupostos de existência) são colocados a priori, de uma maneira indemonstrável, i.e., axiomática.  

8.    A ruptura da alquimia com a química prende-se não com a sua componente químico-tecnológica, mas com a sua reivindicação de ser uma experiência mágico-religiosa nas suas relações com a substância. A Matéria que se esforçava por transformar e transmutar era uma matéria sagrada. Entende-se geralmente a magia como uma acção à distância, como tecnologia não controlada geometricamente. “A Física é uma magia controlada pela geometria”, escreve R. Thom, ao tratar da relação entre magia e ciência. A relação entre magia e ciência é uma relação entre dois modos de controlo do imaginário; no caso da magia, o imaginário das pregnâncias é controlado pela vontade dos homens (ou de alguns, os mágicos, peritos em práticas eficazes); no caso da ciência, o controlo é definido pela generatividade interna à linguagem formal que descreve as situações exteriores e sobre que o homem não tem domínio11 . A magia é fundamentalmente uma procura de eficácia e de poder. É pervivaz ainda hoje (E. Garin) a ideia de uma ordem universal e de uma ligação necessária dos fenómenos: “o laço reside na ideia dum universo vivo, feito de correspondências secretas, de simpatias ocultas, em que por todo o lado sopra o espírito, em que se entrecruzam por todas as partes signos que têm uma significação escondida”. A distinção entre magia e ciência tem de procurar-se no carácter muito mais constringente da nossa representação do espaço, como não o era entre os primitivos. 

9.    Não há dúvida que o nascimento da ciência moderna desestabilizou o equilíbrio multi-secular do pensamento ocidental. A aliança entre a reflexão grega e a tradição cristã rompeu-se. Ao mesmo tempo, as instituições que transportavam o religioso – Igrejas cristãs – entraram em crise de credibilidade e de substância social. O interesse, o fascínio por aquilo a que os sociólogos chamam a “nebulosa místico-esotérica” (F. Champion) alimenta nostalgias, encena exotismos, manifesta o desejo de uma transcendência ameaçada pelo imanentismo do pensamento que saíu das Luzes. Contudo, o mundo moderno alimenta-se das correntes heterodoxas – místicas – do cristianismo. Troeltsch tinha essa consciência, ao falar de “religiosidade vagabundeante”, de cariz “naturalizante”, ou mesmo “panteísta”, ou daquilo que está por trás do pensamento moderno, em especial do idealismo alemão de Hegel ou de Shelling, em matéria de pensamento místico ou esotérico. O momento místico ocupa um lugar de destaque na questão da religião na modernidade. O momento epifânico, presente na fenomenologia de M. Eliade (1949) como uma espécie de presentificação velada do Sagrado, emergindo através dos signos, imanentizou-se sob formas diversas que os estudos culturais analisam como “major upheavel”, “cumulative”, “illuminative”, “relieved”. A epifania ocorre nessas situações interaccionais problemáticas em que a pessoa se confronta com uma crise12 . A situação em que vivemos caracteriza-se: pela iminência do desencantamento do mundo, o cinismo, uma religiosidade reaccional que se difunde. Três rupturas marcam o niilismo moderno: entre a natureza e o homem; entre o homem e Deus; entre o ser humano e ele próprio. No começo do sec. XVII produziu-se uma reviravolta do conhecimento, quando Galileu contestou a realidade das qualidades sensíveis do universo opondo-lhe objectos materiais extensos dotados de figuras. Com Descartes e a formulação matemática deste conhecimento geométrico funda-se a ciência moderna, a abordagem físico-matemática do universo material. O homem é um composto de partículas materiais e a sua realidade depende de determinadas estruturas de organização destas partículas, estruturas químicas e biológicas. Parte do universo material, o homem explica-se a partir desse universo, como peça de uma imensa máquina de funcionamento cego da qual depende. Não há outro tipo de conhecimento que o da ciência galilaica, i.e. da física moderna? Há as qualidades sensíveis das coisas de que Galileu abstrai. O campo da ciência constitui-se a partir delas.  

10.  Haverá alguma a pertinência em falar do regresso do religioso? Diga-se que o mundo não é uma cena de teatro em que a ordem religiosa desaparece e a seguir reaparece. O “regresso” não recupera um qualquer ponto de partida. O destino das representações culturais não é a replicação, mas a transformação. Melhor seria falar, então, de metamorfose. Ultrapassou-se a situação de irrisão em que estava a religião – a visão voltaireana (que fazer com essa velharia de Deus, “vieille bougie brûlant au noir des siècles”?) e polémica das Luzes contra a intolerância obscurantista,  bem como o drama ilustrado da morte de Deus. “Quando se atira o dogma para a incredulidade geral, é ao cúmulo da credulidade que se regressa”13 . Renan, Afonso Costa, o marxismo em geral, anunciavam a senescência da religião para meados do século XX. Hoje, o postulado sociológico do desaparecimento da religião é cada vez mais controverso. Mas o cinismo permanece aceso, substituindo o niilismo europeu igualitário, pondo em brecha qualquer ética de convicção: “libertando a ‘ sexualidade’ , o cinismo substitui-o progressivamente pela morte na função ‘de rito secreto e de interdito fundamental’”14 . Em linguagem moderna, o mundo da astrologia e da magia obedece ao determinismo.  

11. É verdade que a alquimia passava ao lado do conhecimento quantitativo e mecanicista do mundo. Amorim da Costa fornece um argumento de peso em favor da alquimia ao lembrar que este trabalho se corporizava numa visão mágico-holística. “De qualquer modo que a encaremos, essa solução de descontinuidade foi provocada, fundamentalmente, pela consagração de uma visão mecanicista em detrimento da visão holística, em cuja origem está, muito mais que a contraposição do irracional contra o racional, a contraposição do entendimento (episteme) contra o uso (techne)”15 . A visão cosmológica que cultivava era bem mais respeitadora da irredutibilidade do real a um modelo formal ou mecânico. Então, o alquimista era uma das figuras do co-criador e salvador fraterno da Natureza. Então tudo circulava: o alto e o baixo, a imanência e a transcendência. Hoje a situação corresponde a um outro estádio: “estádio viral, fractal, da insolidez de todas as coisas que se dispersam num espaço secretamente despolarizado. Já nada tem por função significar, mas encher o espaço vazio da linguagem que se tornou o lugar aleatório de todas as promiscuidades, o lugar da indistinção e da obscenidade da fórmula. Já nem sequer as ideias se confrontam. Tudo liberta a sua força repulsiva. Estádio da reacção em cadeia, cujo protótipo é o da energia atómica”16 . Estará para sempre perdido o charme da alquimia?  

12. Nós já não acreditamos numa arquitectónica da razão pura, na unificação da experiência possível com a ajuda apenas de um único sistema de categorias, e as teorias de grande unificação pertencem, em física, aos sonhos da razão. O homem de hoje vê-se como um herdeiro do antigo poder de Deus: para quem doravante, nada é impossível. Sem traços de Deus, pura imanência, ele é a melhor efígie dos niilistas russos. Um outro fenómeno, agora teológico que contribuíu para a constituição do niilismo moderno: o primado da liberdade sobre a razão em Deus, como o expõe Descartes; a inescrutabilidade dos desígnios de Deus (Malebranche). Se Deus é liberdade, o tempo não tem a continuidade de um encadeamento lógico e as acções de Deus não são a execução de um plano. A razão é o exercício por Deus do seu querer: acção e liberdade. Se Deus é inescrutável, a ideia de relação causal é uma miragem (Hume). Uma terceira dissolução: a do “eu”. E. Mach: “O ‘eu’ não é salvável”. Esta é a fonte mística do niilismo cristão. Há convergência entre o positivismo agnóstico e o “niilismo” cristão sobre o questionamento do ego que Kant qualificava de “transcendental”: para E. Mach, esse campeão do racionalismo, tal suposição é supérflua17 .

  13. O cristianismo, ao dessacralizar o mundo, deu-nos o meio de transformar em técnica a imitação criadora que o rito só pode produzir uma vez. A técnica enraiza-se no rito. No universo aristocrático o experimental aparece sempre como impuro e populacho. A ciência impôs-se aos homens porque, por razões morais, religiosas, se deixou de perseguir as bruxas. Aquilo que a religião e a alquimia ligavam, a ciência, a tecnociência sobretudo, desligam. A alquimia, porque profundamente antropocêntrica, representou um esforço de imanentizar a transcendência, não de a reduzir a uma ficção pia. O livro de Amorim da Costa é um convite para revisitarmos  um modo de intervenção, colaboração, no processo natural que visava a sua perfectibilidade, não a sua exaustão ou aniquilamento. As transmutações, afinal, sempre foram possíveis: “Repete-se o sonho alquímico, durante séculos objectivado na tentativa de preparação do homunculus”. Somos hoje sensíveis aos efeitos de dessimbolização, desontologização, desfinalização, etc. da ciência moderna e contemporânea. Contra esta forma de niilismo é que se levantam o “princípio antrópico”, o “princípio teológico” e a ética18 . Há, entre a teologia e a ciência um diferendo antigo, uma divergência radical na apreciação do que é o ser verdadeiro do homem. Na ciência o homem está ligado ao conhecimento que dele podemos ter e depende deste e dos seus progressos. A ciência dirá o que seremos. A verdade do cristianismo é irredutível à da ciência, a qual participa da “sabedoria do mundo”. Crer não é o substituto ainda imperfeito de um ver ausente, mas a substituição de um modo de manifestação inadequado por uma revelação, que é de uma outra ordem. A vida é esse movimento caracterizado pelo Dom de si ou “doação” que fica de fora de qualquer objectivação  ou formulação onto-teológica. A ciência - e em particular a biologia - nada sabe desta doação porque os seus conceitos são puramente operatórios. Quer dizer que é estranha ao “mundo da vida” (o Lebenswelt de Husserl). “A vida não se interroga nos laboratórios. Na biologia não há vida, há apenas algoritmos. Os biologistas sabem o que é a vida, mas não o sabem enquanto biologistas - porque a biologia nada sabe disso. Sabem-no como qualquer um de nós porque também vivem, gostam da vida, do vinho, das mulheres, brigam por um lugar, fazem carreira, experimentam também a alegria das partidas, dos encontros, a chatice das tarefas administrativas, a angústia da morte” (F. Jacob). Não estamos perante um descrédito da razão, mas diante da recusa dos dogmatismos que pensa captar Deus através de formulações e o real através de formalismos matemáticos.

  14.  Se o conhecimento da ciência moderna reduz o homem a uma parte do universo material, que diz do ser verdadeiro do homem o cristianismo? Que ele é o Filho. Não o filho duma vida biológica que não existe, mas apenas o da vida que existe, a vida fenomenológica absoluta que é a essência de Deus. Esta vida não pode “considerar-se”, ver-se. A vida escapa ao pensamento, à intencionalidade e ao conhecimento físico-matemático do universo material. A vida que não se mostra no mundo revela-se a si própria na sua auto-revelação patémica, experimentando-se a si mesma como uma força invencível. É desta Vida invisível e invencível que o homem é o Filho. No mundo das partículas não há nenhum Eu, nenhum homem. O homem só é possível enquanto Filho de Deus - essa é a tese fundamental do cristianismo. As reacções religiosas e metafísicas recusam o conteúdo e denunciam a apresentação da tecnociência como “referido” último. Entende-se que preservem os “referidos” tradicionais que são Deus, espírito, natureza, etc. Também recusam subordinar o valor do discurso simbólico à eficiência da operatividade física e matemática: Deus (sive homo) ex verbo e não Deus (sive homo) ex machina. São reações de natureza onto-teológica em cuja sombra se aninham os ocultismos, a astrologia, o espiritismo,  expressões religiosas tradicionais, militantes ou integristas, o neo-tomismo, o neo-kantismo e finalmente uma afirmação renovada da metafísica, até dos limites da tecnociências. B. d´Espagnat, por exemplo, recusa pensar a ciência como puramente experimental e operatória (tecnociência), lançando pontes com a  linguagem da filosofia ou da religião (o espinozismo). A introdução de um “princípio antrópico” é uma outra maneira de conjurar o niilismo associado à tecnociência. Concluamos, pois. As relações entre a alquimia e a religião (melhor, a teologia) são de conivência - pelo seu lado antropológico e cosmológico - e de separação - pela revelação de filialidade que une os humanos uns aos outros. O “princípio teológico” contraria a ideia que o homem encontre uma finalidade absoluta em si próprio. Nós vimos da guerra dos paradigmas, da luta pela hegemonia nas ciências, do divórcio, primeiro, depois da coabitação, do concordismo entre as ciências da natureza e as ciências do espírito. Hoje, a intercrítica que  Atlan recomenda, o encontro entre continentes outrora intraductíveis,  tornou-se desejável e possível. Apesar da dúvida que paira sobre a distinção ciência vs magia (La Mélodie secréte, de Trinh Xuan Thuan). Apesar da distinção que permanece entre a ciência sobre Deus (a teologia) e a fé. Apesar daquilo que as divide, a alquimia e a religião em qualquer parte se tocam: como o visível e o invisível.

  

Notas  

 1 José Ortega y Gasset: Misión del Bibliotecario, Revista de ocidente, Madrid, 1962, p 141.

 2 Vd W. Jaeger, The Theology of the Early Greek Philosophers, Oxford, 1947.

 3 A. J. Festugière, L´Hermétisme, Lund. CWK Gleerup, 1948.

 4 A .M.  Amorim da Costa, Alquimia, um discurso religioso, Lisboa, Vega, 1999.

 5 Vd. A. J. Festugière, Hermétisme et Mystique Paienne, Paris, Aubier-Montaigne, 1967, p. 206ss.

 6 M. Bertthelot, Collection des Anciens Alchimistes Grecs, The Holland Press, London, 1963. Cf. também de M. Bertholet, Les origines de l’ Alchimie, Paris, G. Steihneil, 1885. Vd. F. Bonardel, Philosophie de l’ Alchimie, Paris, PUF, 1993.

 7 F. Nietzsche, OC, t. XIII, Fragments posthumes, trad. Klossowski, Paris, Gallimard, 1976, p. 220.

 8 A da Costa, op. cit. , p. 18.

 9 Cf. Traité des trois essences premières, le Trésor des trésors des alchimistes. Discours de l´alchimie et autres écrits, Paris, Arché, 1981; Lucien Braun, Paracelse, Editions René Coeckelberghs, Lucerna/lausanne, 1989. Ver Ana Maria Alfonso-Goldfarb, O que é história da ciência, São Paulo, editora brasiliense, 1994.

 10 A. Faivre, Philosophie de la nature, Paris, Albin Michel, 1996.

 11 René Thom, Esquisse d´une Sémiophysique: 45.

 12 P. Gisel faz uma releitura da tradição mística no cristianismo que me parece suficiente para abordar esta questão: “Théologie de la création et mystique sont-elles compatibles?”, RSR 71, nº 4, 1997, pp. 403-441.

 13 Francis Jacques, “Expérience et Textualité en Philosophie de la Religion”, in Ver. Sc. Ph. Th. 1993, p. 350.

 14 Ibidem, p.  351.

 15 Amorim da Costa, op. cit., p. 22.

 16 J. Baudrillard, Le paroxyste indifférent, Entretiens avec Ph. Petit, Paris, Grasset, 1997, p. 183.

 17 John W. Dawson, “Godel and the Limits of Logic”, in Scientific American, June 1999, p. 68.

 18 G. Gale, The antropic Principle, in Sci. American, 245, 1981, pp. 114-122; P. Davies, The Antropic Principle in Other Worlds, Space, Superspace and the Quantum Universe, J. M. Dent et Sons, Londres, 1981.