ANDROGINIA, HERMAFRODITISMO
E A HIBRIDAÇÃO SOCIAL DOS SEXOS
Carlos Dugos


O modo andrógino corresponde à expressão original do ser.  

 Embora a composição da palavra refira a junção numa única entidade dos aspectos masculinos – andro e dos femininos –gino, a verdade é que, em rigor, a noção de androginia não pressupõe nada de masculino ou feminino, antes pelo contrário, ela deverá estabelecer a ideia de uma outra - ou terceira - natureza.[1] 

No andrógino não se encontram somados os aspectos masculino e feminino; nele reside apenas a unidade absoluta do ser integral.  Só pela polarização dessa unidade  e com a passagem à esfera da dualidade, se podem definir masculino e feminino. 

A definição das duas naturezas sexuais – macho e fêmea – corresponde ao fim do estado andrógino do ser. Esta fractura, por assim dizer, não se processou pela separação de dois princípios preexistentes e fundidos. Havia um princípio indefinível que se cindiu em natureza masculina e natureza feminina. 

Em termos cronológicos poderemos considerar esse estado do ser como protohumano. Estamos evidentemente a falar de uma entidade que não tem forma física e, como tal não se reproduz plasticamente. De resto, essa reprodução seria impossível uma vez que, não podendo ser estabelecida a diferenciação de naturezas sexuais, estas não poderiam unir-se em função reprodutora. 

A constatação desta origem sexualmente neutra é indispensável para a compreensão de todo o processo humano, quando observado pela perspectiva da relação entre os sexos. Na verdade, o andrógino continha potencialmente  dois princípios universais, um reportando-se ao espírito fecundante e outro à fecundidade plasmante e tais princípios podem ser assimilados às naturezas   sexuais humanas. No entanto, há que ter em conta que, embora as naturezas  representem os princípios em que radicam, essa representação aplica-se ao mundo da manifestação e da temporalidade, ao passo que os princípios se reportam ao mundo imanifestado e intemporal. 

Alquimicamente, o Enxofre e o Mercúrio referem respectivamente os princípios fecundante e plasmante e, ao mesmo tempo, as naturezas masculina e feminina; no entanto, esta coincidência de aplicações não significa identidade de grau num e noutro caso, já que o mundo dos princípios é determinante e o mundo das naturezas determinado.  




HERMAFRODITO  






Hermafrodito era filho de Hermes e Afrodite. Estranha filiação, já que correspondendo Afrodite a uma das modalidades femininas por excelência – o amor e particularmente o seu aspecto erótico – Hermes não é, de modo algum, o complementar viril dessa tendência. Eros, outro filho de Afrodite, esse sim seria o correspondente másculo de sua mãe. 

Hermes é o deus astuto e industrioso, o perscrutador dos segredos da natureza, agente de ligação entre o mundo divino e o mundo humano. Por isso, ele se estabelece como entidade tutelar de toda a Iniciação ocidental aos Pequenos Mistérios, genericamente conhecidos por Arte Real, donde a  designação de hermetismo adoptada por algumas vias de conhecimento, particularmente a Alquimia.[2] 

Hermafrodito é pois, o produto da união da deusa do amor com o deus mediador. Assim, este filho tem, por acumulo das partes que o suscitam, o amor e a comunicabilidade entre espírito e substância, como constituintes da sua expressão. 

Deste modo, o Hermafrodito afigura-se como  a representação de dois aspectos complementares da natureza, especialmente aplicáveis à gesta humana. Por um lado, o acto viril da busca do conhecimento  divino, acto marcial, dir-se-ía de violador da natureza e, por outro, a contemplação feminil ligada ao amor intenso pela realidade a todos os seus níveis. Esta complementaridade torna a violação do segredo apaixonada e afectuosa e dirige a paixão aos mistérios supremos da vida e do ser. O desejo de perscrutar o insondável sublima-se em acto de amor e o amor sublima-se em contemplação do mais alto.

Esta complementaridade, no entanto chegou aos nossos dias nos seus aspectos mais vulgares, dela se retirando apenas a dualidade dos dois sexos numa só entidade, sob a designação de hermafrodita, tornado sinónimo de híbrido e bissexual.[3]

HIBRIDAÇÃO SOCIAL DOS SEXOS 

Actualmente verifica-se uma tendência sistemática para submeter os conteúdos particulares a regras generalizantes. Esta tendência, que visa tornar as matérias mais acessíveis e dóceis a um maior número de manipuladores, tem como resultado uma série de efeitos colaterais, todos eles concorrendo para colocar utopias no lugar que cabe à realidade e conceitos no lugar que cabe à natureza intrínseca das coisas. 

Neste sentido, a sociedade moderna tem-se esforçado por assemelhar o feminino e o masculino, numa operação que visa tornar indistintas as duas naturezas, por razões que têm essencialmente a ver com padrões sociais – o padrão igualitário - e padrões económicos – a mais valia feminina no mundo do trabalho. 

A primeira razão – o postulado igualitário – procura criar, a partir da abstracção designada por cidadania, uma uniformização dos indivíduos, independentemente dos seus sexos, estabelecendo um código de direitos e deveres que a todos abrange e que, sob pretexto de uma dignificação colectiva, escamoteia a dignidade intrínseca de cada sexo. 

A segunda razão - político-laboral - tem em vista  uma gestão mais eficaz do homo mercator, pelo binómio produção-consumo e uma standartização da sua participação na estrutura do poder e no pagamento de impostos. A criação de riqueza-consumo, o voto e os impostos, correspondem à tríade em que se esgota a capacidade  de realização das sociedades actuais. 

Por outro lado, a substituição das responsabilidades familiares pelas responsabilidades individuais colectiviza, segundo uma matriz jurídica única, as mais variadas tendências e as diferentes naturezas, transferindo-se a gestão familiar sobre cada um dos membros que a compõem, para a gestão exercida directamente pelo estado sobre cada um dos cidadãos, criando nestes uma ilusão de maior liberdade, estabelecida à custa de um anonimato feito de solidão. 

Neste sentido é a fêmea particularmente vitimada pelas circunstâncias, já que o programa da sua “emancipação”-  termo pelo qual é designada a militância feminista – se baseia na imitação sistemática das características masculinas com a consequente perda da verdadeira natureza e da autêntica personalidade feminina. 

 Tal mimetismo insere-se numa patologia sociológica muito comum no Ocidente moderno e que se sintetiza na tendência que apresentam os grupos, que se consideram  a si próprios como submetidos, para imitarem aqueles que os submetem. Os autóctones das colónias imitam os seus colonizadores, pelas mesmas razões que as mulheres imitam os homens. 

Naturalmente, não colocamos em causa os direitos da pessoa humana e a igualdade que, a esse nível, sobrepuja a diferenciação sexual. Pelo contrário, o pleno direito à igualdade tem de passar pelo direito à diferença, sem o qual ninguém terá a oportunidade de levar às últimas consequências as capacidades contidas na sua natureza.

No entanto, a dialéctica estabelecida entre as naturezas masculina e feminina constitui o mecanismo de tecitura de toda a realidade social. Quanto mais radical a diferenciação destas naturezas, reflectindo-se nos indivíduos que as representam, mais se enriquece e fortalece a comunidade humana. À masculinidade integral deve corresponder a feminilidade integral. A utopia do uni-sex conduz à castração e à esterilidade, não tanto do ponto de vista biológico, mas sobretudo no que se refere à estrutura psicológica própria de cada uma das naturezas sexuais. 

A hibridação corresponde invariavelmente a uma violentação da natureza. É assim com a manipulação no mundo vegetal e animal, operada com o objectivo único de produzir efeitos que melhor sirvam o interesse do manipulador, independentemente do grau de aberração que daí resultar. 

A manipulação social, estribada em alguns conceitos ideológicos que têm como modus operandi a substituição da realidade natural e objectiva por “valores” emocionais e pouco esclarecidos, vai processando paulatinamente a destruição das duas naturezas que compõem o conjunto da humanidade para que, em seu lugar, se instale um híbrido, uniformizado na superstição igualitária, restringido  a uma caricatura unidimensional daquilo que foi a riqueza e variedade do ser, expressando-se segundo duas naturezas complementares e dois vectores convergentes. 

A anulação sistemática das diferenças em nome de uma igualdade uniformizante, cuja veracidade e oportunidade carecem ser provadas pela própria natureza das coisas, conduz, a médio ou longo prazo, à morte do fascínio pela diferença, impulso ancestral do amor e do conhecimento.[4] A manipulação genética, que prescinde do amor, mesmo que meramente erótico, para a formação do novo ser, prepara o momento em que o mais respeitado e cantado dos sentimentos humanos será entendido como uma abstracção mitológica, absolutamente inútil para a conservação da espécie. 

Carcavelos, Maio de 2001      


[1] A diferenciação dos sexos é radical, dando lugar ao radical masculino e ao radical feminino. A consubstanciação de ambos, anula a diferenciação radical a tal ponto que já não é possível falar de uma dualidade ou ambiguidade sexual, mas pura e simplesmente da anulação de ambos, em favor de uma outra natureza, carecendo de designação e de conteúdo conceptual.

[2] É preciso não esquecer que, enquanto representante do engenho, Hermes é, nos aspectos mais obscuros e degradados, deus dos ladrões e dos embusteiros.

[3] Na botânica ou na zoologia, os casos naturais de hermafroditismo incidem sobre espécies biologicamente muito primitivas. Os casos de espécies superiores – incluindo o homem - apresentando sinais  dos dois sexos no mesmo indivíduo constituem aberrações, sem outro significado além do desvio ou da monstruosidade, relativamente à ordem natural.

[4] A perda do amor acarreta a perda do conhecimento já que ambos são complementares, de acordo com a unicidade deste princípios, conforme  a representação do Hermafrodito.