Egipto + logia:
entre tradição esotérica e inovação científica
(texto resultante da comunicação homónima apresentada no I Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas, em Julho de 1999)
Paulo Mendes Pinto


............Ao apresentar esta investigação pode parecer que se trata de uma temática relativamente exterior e periférica à proposta por este Colóquio. Na realidade, trazemos uma abordagem no campo da Teoria da História e das visões historiográficas de que determinado objecto de estudo foi alvo ao longo dos tempos.

Numa primeira caracterização da investigação, procurámos analisar o que sobre o Egipto se conhecia e se veiculava no corpus de “saber corrente” do século XIX.

Aprofundando o sentido da análise, chegando ao fulcro da tese que apresentamos, pretende-se mostrar que a visão (ou as visões) que do Egipto Antigo se foram criando modificaram a postura da sociedade, do “senso comum”, face ao que genericamente podemos designar por alquimia.

Isto é, ao longo do século XIX alteram-se radicalmente a natureza e os conteúdos do que se sabia sobre o Egipto, condicionando o olhar e o espaço mental que a sociedade prestava ao discurso alquímico.

À medida que o saber científico relativo ao Egipto se cimenta no quadro de saberes válidos para a sociedade, o espaço discursivo do esoterismo fica minguado  e debilitado; ora, esse espaço discursivo é directo indicador de uma das práticas que as visões tradicionais sobre o Egipto Antigo validavam: a alquimia.

Assim, analisar o desaparecimento de uma ideia de Egipto esotérico e misterioso, e o nascimento e crescimento de uma imagem científica desse mesmo objecto historiográfico, é como que rastrear o fim de um campo de utensilagem mental essencial para o discurso alquímico, desta forma cada vez mais votado para fora do campo das práticas correntes e oficiais, cada vez mais fechado e inacessível.

Objectivando, nesta análise pretendemos encontrar elementos de caracterização do Egipto Antigo que nos facultem as formas de afirmação da moderna egiptologia no campo dos saberes oficiais no século XIX, em deterimento das visões tradicionais, herdadas da própria antiguidade e da medievalidade.

Assim, e tendo como base o título que apresentamos (Egipto + Logia), mostraremos que num mesmo período de tempo, e num mesmo espaço cultural, coexistiram elementos de racionalidades diferentes, várias Logias, que nos discursos do saber oficial encontramos par a par.

O nosso objecto é, assim, o conjunto da duplicidade antagónica de visões sobre uma mesma realidade  - por um lado os dados vindos da “Tradição”, por outro as constantes afirmações do mundo científico, que designamos por “Inovação” – e o saber oficial, quase aglutinador e tendencialmente neutro que sobre esse mesmo objecto se criou e se foi alterando com base na ascensão dos conhecimentos inovadores.

Neste sentido, o estrito enfoque da nossa análise é a busca de elementos e conteúdos discursivos em que se encontre o confronto ou a coexistência, a permanência ou a implantação de conteúdos discursivos. Isto é, procurámos os conteúdos e as formas discursivas do que nos parece ser uma grande ruptura de paradigma numa área do conhecimento fortemente simbólica nas ciências sociais e humanas.

Sendo o nosso propósito a identificação deste fenómeno no dito discurso do saber oficial, naturalmente que não tratámos textos que fossem directa ou indirectamente  fruto dos campos mais representativos quer da visão tradicional, quer da visão inovadora.

O campo mais representativo dos conteúdos vindos da tradição seriam os textos produzidos no âmbito de sociedades e grupos esotéricos ou secretos e fechados, e o campo mais representativo do discurso inovador será, naturalmente, o científico. Assim, o que nos interessou não foi a análise dos discursos esotéricos ou científicos, mas sim a verificação da permeabilidade do saber oficial a esses dois campos.

As fontes que para este efeito decidimos tratar são os manuais escolares de História Antiga. Os manuais escolares, pela sua natureza, não apresentam nenhuma das matrizes tratadas. Mas é exactamente devido a esta característica que são as fontes preferenciais para aceder ao referido saber oficial na medida em que, por um lado, são assumidos pelo sistema educativo e autorizados e sancionados enquanto manuais “oficialmente aprovados”, e por outro lado a sua eficácia comercial dependia inevitavelmente do poder consensual dos seus conteúdos.

O conhecimento divulgado e consolidado através dos manuais escolares não podia ser excessivamente permeável, nem aos discursos mais extremos veiculados com conteúdos da “tradição”, nem à discursividade inovadora construída pela nascente classe de orientalistas, os egiptólogos.

Por um lado, os conteúdos relativos ao Egipto que se tinham no início do século XIX, e que eram especialmente vindos das fontes clássicas, sempre marcados por uma imagem de um Egipto fabuloso, por vezes esotérico, eram naturalmente depurados de extremismos mais característicos de grupos iniciáticos.  Por outro lado, o nascente discurso científico nunca é adoptado no momento da sua criação, demorando tempo a implantar-se e a ser aceite pelo discurso oficial – mais, no caso da Egiptologia, a morte de Champollion apenas dez anos após o decifrar da escrita hieroglífica acentuou a dificuldade de afirmação da área nascente pela impossibilidade de, em tão curto tempo, formar discípulos[1].

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Dentro deste campo, não podemos esquecer a génese e o percurso de algumas ideias esteriotipizadas que eram a base daquilo que se pensava ter sido o Egipto de antes de Cristo.

Nomeadamente, há que ter em conta as visões construídas e transportadas a partir da Bíblia, mais concretamente das suas leituras literais. Discurso marcante na criação destas ideias gerais é o relativo aos acontecimentos que antecedem a saída de Moisés e do povo hebreu do Egipto: Moisés afronta o Faraó - isto é, o Egipto - através de uma sucessão de hierofanias do campo da magia[2]. Este episódio desenvolve, afinal, um contraponto, em que Moisés é colocado a responder ao Egipto com aquilo que é considerada a sua característica fundamental: o universo da magia. 

Mais, ao longo de todo o Pentateuco é cimentada uma oscilação entre dois pólos completamente antagónicos, em que o Egipto ora é apresentado como a nação salvadora em tempos de fome (veja-se, entre outras, a história de José: Ex. 37–50[3]), ora é apontado como modelo de opressão e escravatura[4], imagem usada ao longo de toda a Bíblia para representar o mal. Assim, e para o mundo da Bíblia, o Egipto oscila drasticamente entre representações do bem e representações do mal.

Os autores clássicos, nomeadamente Heródoto, reforçaram bastante a imagem de um Egipto mágico, inacessível[5] – tão diferente este se apresentava, nos seus cânones estéticos, nas suas formas religiosas e na sua organização social, daquilo que a Grécia consolidou como modelo.

No século XIX, além destes filões provenientes da matriz cultural herdada, desenvolveu-se, também, um crescente espírito de curiosidade e uma envolvência de mistério em torno dos signos, quiçá mágicos, da escrita hieroglífica[6]. A admiração pelas grandes estruturas em pedra[7], recentemente (re)descobertas, culminaram a aura de mistério em que este século envolveu o Antigo Egipto.

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Ao analisar os ditos manuais escolares de História Antiga tomámos como expressivo o acervo que encontrámos na Biblioteca Nacional. Desta forma, a análise que fazemos pressupõe uma procura de manuais sobre a temática que, sendo claramente representativa, nada indica que tenha a totalidade dos manuais editados em Portugal nas décadas de trinta do século passado e seguintes.

Em 1838 encontramos o primeiro livro que nos merece menção. É uma tradução do francês, sem a indicação de autor ou tradutor[8]. É um manual que circula em Portugal, mas que é feito no país de Champollion, daí que veicule algumas claras incorporações vindas do campo científico, nomeadamente a necessidade de apontar a falta de dados para os tempos mais antigos da história do Egipto, e a impossibilidade de encontrara certezas documentais.

Neste ponto, é importante ter em conta a afirmação, quase extremada, do autor, que culmina uma clara postura de incerteza face a datações, e a falta de investigação[9]: A História do Egypto só começa a ser hum tanto positiva no anno de 670.

Além desta especificidade, podemos dizer que inovadora e indiciadora do campo da inovação científica, encontramos neste textos vários elementos que caracterizamos como claramente indicadores da visão tradicional: a principal fonte continua a ser grega, logo, indirecta: Heródoto[10]. Bibliografiacamente, arriscamos a apontar Bossuet como primeira leitura deste autor[11]. Estes dois autores, um antigo, o outro com apenas século e meio de leituras, serão dois dos principais indicadores da proximidade dos diversos manuais à recente egiptologia, ou às visões mais tradicionais.

Ainda no campo dos conteúdos nada marcados pela egiptologia nascente, é de focar a indicação de campanhas militares na Índia[12] … claramente míticas, e a inevitabilidade discursiva de tratar a questão da ciência egípcia, que passaremos, ao longo deste texto, a referir como “mito da ciência egípcia”. Ilustrando este último ponto, é importante a explicitação deste mito essencial para a caracterização da imagem do Egipto na sociedade e cultura de oitocentos:

Só elles cultivavão as sciencias, e porque tinhão presidido á construção do estado, conservavão sempre huma influencia mui grande sobre os negocios publicos[13].

Isto é, não só a sciencia fora inventada no Egipto, como ela participava na, também mítica, organização e justiças sociais.

                Em 1847, José da Motta Pessoa de Amorim publica o seu Compendio de História Universal[14]. São vários volumes, sendo que o primeiro trata, entre outras matérias, o Egipto.

                Nesse primeiro volume, além do tratamento dado ao Egipto Antigo, encontramos ainda dados que são claramente a expresão da necessidade de o autor definir a sua posição teórica face a algumas inovações que circulariam, e com as quais ele não concordaria. Assim, o autor define o seu trabalho como uma História Sagrada; afirma haver, também, uma História Profana, mas a que apresenta tem grandes vantagens face à outra: é inspirada[15].

                Desta forma, a organização do livro é por temas/cronologia bíblica, apesar de ser grande a preocupação que apresenta pela cronologia[16], cada vez mais, um dado de desconforto na escrita sobre as civilizações antigas[17].

                Da junção da inevitabilidade da organização da obra, baseada na História Sagrada, com a necessidade de integrar, porque não rejeita, a História Profana, surge um manual bastante interessante em que, para cada episódio de História Sagrada, o autor tenta conciliar alguns dados dispersos de História Profana. Naturalmente, na organização capitulada, quem rege é a história bíblica, seguida, em capítulos separados, pela profana[18].

                Passando aos conteúdos tratados, e não esquecendo que este manual, ao contrário do anterior, é redigido em Portugal, longe da França de Champollion, podemos afirmar que eles são bastante ricos para a nossa análise.

                Assim, os elementos tradicionais da visão sobre o Egipto polulam ao longo do texto. Menes, primeiro monarca, fundara Tebas, então a única região fora das  águas do Nilo[19]; Mênfis fora criada por Vulcano, que aí estabeleceu as divinas artes dos metais[20]; bibliotecas fantásticas existiam pelas cidades[21]. Aqui, é o mito da ciência egípcia a tomar forma com alguns dos seus principais componentes.

                Também nomes míticos de monarcas[22] e datações totalmente erradas existem nesta obra. É de reter a datação das pirâmides de Guiza para o reinado de Amenófis, no "Século de José e de Prometeu"[23]. Aqui, o autor dá pleno campo discursivo à mítica proximidade entre o faraó herético, as pirâmides, e a sua influência no monoteísmo hebraico.

                Em 1850, apenas três anos depois, temos a obra de J. Roquette[24]. Trata-se de mais uma obra em que o autor a apresenta como uma História Sagrada - o autor é eclesiástico, indicando claramente o sentido da sua História Sagrada:

[...] História Sagrada, isto é, a narração fiel dos maiores successos que virão os seculos, o thesouro das mais relevantes e sublimes verdades, a fonte puríssima das mais santas inspirações, e o penhor infallivel da eterna recompensa.[25].

                Bibliograficamente é a Bossuet que o autor vais buscar os dados com que constrói o seu texto, buscando mesmo nesse autor a justificação para a veracidade histórica dos livros bíblicos[26] - o que, pela negativa, nos mostra que o autor sentia a necessidade de buscar numa autoridade bibliográfica o apoio para a sua posição: importante reflexo dos tempos.

                Seis anos depois, em 1856, temos a obra de Joaquim Lopes Carreira de Melo: Resumo de História Universal Profana.[27] É exactamente aqui, no título, que esta obra mostra um dos seus pontos de maior inovação: de manual de História Sagrada passamos a manual de História Profana[28].

                Este livro é realmente marcante; Como veremos, nesta obra encontramos o maior do desconforto na junção dos dois paradigmas relativos à visão do Egipto Antigo.

                Da tradição, este livro transporta a grande divisão cronológica. São quinze épocas, em que as primeiras três se nomeam por: Tempos obscuros; Tempos fabulosos; Tempos históricos. Ao primeiro tempo faz corresponder a Assiria, o Egipto e a China, ao segundo o dilúvio de Ogiges, os Argonautas, Tróia, entre outros, e ao terceiro os Persas de Ciro. Como vimos, o Egipto está, significativamente, nos tempos obscuros, antes dos tempos históricos.

                Naturalmente, esta obra tem toda a sua cronologia assente no Dilúvio e nos descendentes de Noé[29]. Também encontramos, como natural e inevitável, o indicar do mito da ciência egípcia – é um dos últimos pontos da caracterização tradicional a desaparecer do discurso oficial. Mas o mais interessante do desconforto que ao autor esta temática transmite é o facto de ele só escrever nove linhas sobre o Egipto !

                Vejamos essas nove linhas, nada comprometedoras, escritas com todos os cuidados possiveis:

O Egypto é um dos mais antigos paizes conhecidos, mui memorável na história sagrada e profana. Crê-se que foi o berço das artes e das sciencias do antigo mundo civilizado. Dá-se ao antigo reino do Egypto uma antiguidade fabulosa, e até ridícula. Eusébio, e Usserio, tratando da série dos reis d’aquelle paiz, dizem que, antes dos Pharaós, houveram reis incognitos, e reis pastores.[30]

                Nestas pequenas nove linhas fazemos duas leituras, de natureza diversa, que confluem para a mesma conclusão: o autor como que não sabe o que escrever sobre o Egipto, tal é o desconforto da matéria: por um lado o texto está cheio de cuidados, desde os relativos à cronologia, até à necessidade de recorrer, num texto pequeníssimo, a autoridades clássicas; por outro, a própria forma do texto, além de pequeno, cheio de vocábulos prenhes de desresponsabilização perante os conteúdos apontados como crê-se, dá-se, dizem, mostra exactamente esse mesmo sentido de, em nada, arriscar uma só linha ou expressão sobre esta matéria.

É o ponto exponencial na ruptura de paradigma, se bem que se mantenham no texto alguns dados vindos da tradição, nomeadamente o mito da ciência e o enquadramento cronológico.

                Em 1861, cinco anos após a marcante obra de Carreira de Melo, surge o texto de Luiz Francisco Midosi, Resumo da História Antiga[31].

                Esta obra é como que a consolidação do desconforto dos dados vindos da tradição, e o cimentar dos dados e posturas encontradas no campo do novo discurso científico, nomeadamente, na nascente egiptologia.

                Em primeiro lugar, o próprio título, tal como na obra de 1856, está cheio de significado. Nesta obra, como que já não é necessário indicar, em título, se o livro é de História Sagrada ou História Profana – ele é de História Antiga, simplesmente - tal como é realmente simples tudo em ciência.[32]

                Mas, a postura científica deste autor vai mais longe. Mais que sentir-se na redacção do texto a adopção dos novos dados, o autor especifica, de forma consciente, clara e propositada, a problematização que os conteúdos estão a gerar. Assim, é fundamental o parágrafo que transcrevemos:

A historia antiga sobe até á origem do mundo; porém, qual fosse esse periodo, é parte em que discordam as noticias dos differentes povos, e as opiniões dos filosofos[33].

                Esta postura metodológica, este cuidado em indicar a incerteza dos dados que se manuseiam, indiciava já para o texto que viria a ser produzido cinco anos depois, como tese apresentada à Universidade de Coimbra por Julio Augusto Henriques, Antiguidade do Homem[34].

                Nesta tese encontramos como que a fase seguinte da afirmação das ideias e conteúdos científicos: mais do que apontar as dificuldades, incertezas e indefenições, é indicado o campo fundamental de críticas às novas, e inovadoras, ideias científicas: as interpretações religiosas. Vejamos melhor:

Bem sabemos que ha contra estas ideias inimigos fortes: uns que, levados pelo sentimento religioso, as regeitam porque lhes parece que vão de encontro á Biblia […][35].

                Voltando ao manual de 1861, verificamos que a genealogia dos monarcas continua a ter a sua base nos filhos de Noé[36], e mantém, apesar de todo o campo de inovação que nesta obra encontramos, o mito da ciência egípcia.

                Assim, encontramos, no último parágrafo do texto relativo ao Egipto, como que remetido para fora do corpo principal do texto, mas ainda não possivel de rejeitar, a seguinte afirmação:

Os antigos egipcios devem a sua celebridade ás artes e sciencias, vindo delles a invenção do arado, que é attribuida a Osiris[37].

                Este trecho mostra como, mesmo nesta obra, o mito da ciência egípcia é, nos seus dados mais simples, mantido. Como já afirmámos, é dos últimos elementos da visão tradicional a ser posto em causa[38].

                Alguns anos volvidos, em 1878, encontramos a obra de Manuel Francisco de Medeiros Botelho, Curso de História Universal[39].

                Este autor corresponde a uma outra postura científica. Bastará relembrar a frase com que abre o seu livro para o verificar:

A historia muda de aspecto segundo o ponto de vista que preocupa o historiador e a idéa predominante da épocha de que elle é muitas vezes o interprete[40].

Nos conteúdos, o mais interessante de verificar é o longo discurso introdutório onde dá especial realce ao decifrar das línguas e escritas antigas, nomeadamente o egípcio[41].

                Por último, em 1883 é dado à estampa As Grandes épocas da História Universal de Zófimo Consiglieri Pedroso[42]. Esta obra e este autor marcam duas rupturas fundamentais na matéria tratada.

                Por um lado, e ao contrário dos primeiros autores tratados, este é um lente de História Universal do Curso Superior de Letras, e já não um lente de Teologia da Universidade de Coimbra - a História Antiga, num longo processo que se iniciara no assumir da História Profana face à História Sagrada, acabara de sair do campo da teologia e do discurso catequético -; por outro, encontramos aqui a afirmação da ruptura do campo da autoridade bibliográfica: é citado Bossuet para dele se discordar ![43]

                Recusando as autoridades bibliográficas tradicionais, Consiglieri Pedroso usa abundantemente os dados vindos da linguística[44], e chega mesmo a falar de Champollion[45].

                No que diz respeito à cronologia, assume, explicitamente, datações anteriores a 4004 a. C., o que nenhum dos anteriores autores fizera. Para ele, o Egipto Antigo tem os seus tempos mais recuados no VI milénio a. C.[46] - o que é manifestamente exagerado.

                Por fim, e rematando a análise com uma indicação que mostra como os dados da tradição são impossíveis de alterar, encontramos nesta inovadora obra, devedora de outras inovadoras obras que a antecederam, a continuação discursiva sobre o mito da ciência egípcia. Foi aí que se inventou o arado, que se iniciou a fundição dos metais ... enfim tantos dados a que a alquimia foi beber fundamentação.

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Concluindo, procurámos identificar indicadores que nos mostrassem relevantes alterações a nível da concepção histórica e historiográfica relativa ao Egipto Antigo. Tomámos esses indicadores como reveladores da atitude mística e esotérica que o universo de saberes vigentes teria face ao Egipto Antigo. Assim, esses elementos são também indicadores do lugar de saber reconhecido a todas as práticas que que neles encontram conteúdo: deixa de haver lugar para o corrente discurso alquímico quando os seus conteúdos deixam de fazer parte dos saberes oficiais.

Neste sentido, as visões que do Egipto Antigo se tinham, em pleno século XIX, sofreram grandes alterações, visíveis na imagem transmitida pelos manuais escolares.

Muito de postura científica encontramos nos manuais analisados. Alguns conteúdos também sofrem grandes alterações; estamos a falar, nomeadamente, da cronologia, da relação com a esfera do sagrado bíblico, da crescente incerteza perante todos os dados vindos das fontes clássicas.

Mas, e como sabemos, as alterações científicas não se efectuam rapidamente e em todo o bloco de saberes antes consignados. Se, por um lado, encontramos manuais que nos mostram profundas roturas paradigmáticas, por outro, esses mesmos manuais continuam a manter um discurso, totalmente vindo da tradição, sobre a ciência egípcia, a sua origem, a sua transmissão.

Vimos que, para um mesmo objecto de hsitoriografia, podem surgir vários ritmos ou velocidades de alteração dos seus conteúdos. O novo paradigma científico, a egiptologia, recentemente criado e em fase de implantação, não se adapta todo ele da mesma forma ao conjunto de saberes oficiais. Foi o que se passou com a ideia mítica da invenção da ciência no Egipto, ainda vigente nos manuais escolares do fim de século XIX, dezenas de anos após Champollion.

 

 

 

[1] Entre a publicação, em 1822, da Lettre à Monsieur Dacier, onde Champollion mostra que consegue ler um largo conjunto de nomes de monarcas egípcios, e a sua morte, apenas decorreram dez anos. Nesses dez anos Champollion afinou critérios, corrigiu traduções, e assentou as bases do conhecimento linguístico da escrita e da língua; mas não criou “escola”. É interessante atentar a uma carta do orientalista John Gardner Willkinson a Champollion-Figeac (irmão de Champollion), datada do ano da morte do egiptólogo: “La torche est tombée à terre et personne n´est capable de la ramasser”. Cf. Cahiers de Science et Vie, nº 40, Jean-François Champollion. Du secret des hiéroglyphes à la fondation de l’ égyptologie, 1998, p. 74.

[2] Estas pragas são: I – A água transformada em sangue; II – A praga das rãs; III – A praga dos mosquitos; IIII – A praga das moscas; V – A morte dos animais; VI – As úlceras pustulentas; VII – O granizo e o fogo; VIII – A praga dos gafanhotos; VIIII – As trevas; X – A morte dos primogénitos.

[3] Entre muitas outras, ver Ex. 41, 57: De todos os países vinham ao Egipto para comprar trigo a José, pois a fome era violenta em toda a terra.

Outro episódio bíblico fundamental é o de “Abrãao e Sarai no Egipto”, Gen. 12, 10: Houve fome naquela terra. Como a miséria era grande, Abraão desceu ao Egipto para aí viver algum tempo.

 Fundamental é, ainda, a argumentação usada pelo povo contra Moisés, nos momentos mais duros da travessia do deserto depois da libertação do Egipto, Ex. 16, 2 – 3:  Toda a comunidade dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e Araão no deserto. Os filhos de Israel disseram-lhe:«Quem dera que tivéssemos morrido pela mão do Senhor na terra do Egipto, quando estávamos descançados junto da panela de carne, quando comíamos com fartura ! Mas vós fizeste-nos sair para este deserto para fazer morrer de foma toda esta assembleia!».

Para as traduções bíblicas usámos a Nova Bíblia dos Capuchinhos. Versão dos textos originais, Lisboa, Fátima, Difusora Bíblica, 1998.

[4] Ex. 1 – 15.

[5] Cf. T. J. Luce, The Greek Historians, London, New York, Routledge, 1997, p. 25.

[6] Sobre as tradições de interpretação da escrita hieroglífica desde a própria Antiguidade até ao Mundo Moderno ver, por exemplo, Erik Iversen, The Myth of Egypt and its Hieroglyphs in European Tradition, Princeton, Princeton University Press, 1993.

[7] Sobre este interessante tema ver, entre outras, a obra de John Michell, Megalithomania. Artists, antiquarians and archeologists at the old stone monuments, London, Thames and Hudson, [1982].

[8] Compendio da Historia Antiga, e particularmente da Historia Grega […] para uso dos alumnos das escolas de França. Tradução Portuguesa, Lisboa, Typ. Rollandiana, 1838.

[9] Ibidem, p. 5.

[10] Verifica-se plenamente no texto da página 4.

[11] Bossuet no seu Discurso sobre a História Universal faz uma plena síntese do que no século XVII se sabia do Egipto Antigo. São trinta páginas, na edição portuguesa de 1772 (Discurso sobre a História Universal […], Lisboa, 1772.), em que o autor cita constantemente autores clássicos, tomando-os, explicitamente, como fonte correcta. Assim, em Bossuet, surgem alguns mitos que iremos encontrar em obras claramente por si influenciadas, como os mitos da justiça exemplar, da hereditariedade das profissões e do nascimento da ciência no Egipto.

[12] Compendio da Historia […], Lisboa, Typ. Rollandiana, 1838, p. 5.

[13] Ibidem, p. 7.

[14] José da Motta Pessoa de Amorim, Compendio de História Universal[…], Lisboa, 1847.

[15] Cf. Idem, ibidem, p. 4.

[16] Op. cit., p. 8 e p. 12.

[17] Esta preocupação, mesmo em obras de eclesiásticos, defensores de uma visão sagrada do devir histórico, surge plenamente expressa na obra de Francisco de Arantes (Compendio de Chronologia Mathematica e Historica, Coimbra, 1825.), Lente de Teologia na Universidade de Coimbra, que mais não é que um longo discurso teórico e metodológico sobre a necessidade de bem tratar as questões de cronologia, cada vez mais importantes na visão da História Sagrada.

[18] Por exemplo, o texto que trata a construção das pirâmides é colocado como um sub-capítulo no capítulo intitulado “Século de José e de Prometeu”; Cf. Op., cit., p. 85.

[19] Cf. Op. cit., p. 38.

[20] Cf. Op. cit., p. 38.

[21] Cf. Op. cit., p. 39.

[22] Cf. Op. cit., p. 39.

[23] Cf. Op. cit., p. 85.

[24] José Inácio Roquete, História Sagrada do Antigo e do Novo Testamento, Paris, J. P. Aillaud, 1850. [obra com quatro edições até 1863.]

[25] Cf. Op. cit., p. vij.

[26] Cf. Op. cit., p. xxx.

[27] Joaquim Lopes Carreira de Melo, Resumo de Historia Universal Profana, para uso das escholas de instrucção primaria [...], Lisboa, 1856.

[28] Naturalmente, e como não podia deixar de ser, continuam a surgir "Manuais de História Sagrada", não estando, em 1856, imposto o novo paradigma. Assim, em 1867 é impressa a obra do eclesiástico, conservador, José de Sousa Amado, Selecta Portugueza Para Uso dos Alumnos de Instrucção Primária e Secundaria [...], Lisboa, 1867, da qual consta o capítulo "História Sagrada do Velho Testamento".

[29] Cf. Op. cit., p. 5.

[30] Op. cit., p. 7.

[31] Luiz Francisco Midosi, Resumo da História Antiga, para uso das escolas […], Lisboa, 1861.

[32] No campo da definição do objecto e do motor do devir histórico em meados do século XIX, é fundamental articular as duas definições aqui articuladas com a de História Universal Filosófica, perfeitamente consignada na tese de Alberto Pimentel, História Universal Filosófica [...], Porto, Braga, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1878.

[33] Op. cit., p. 3.

[34] Julio Augusto Henriques, Antiguidade do Homem. Dissertação de concurso para a Faculdade de Philosophia da Universidade de Coimbra, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1866.

[35] Op. cit., p. 21.

[36] Luiz Francisco Midosi, Op. cit., p. 9.

[37] Idem, ibidem, p. 11.

[38] Sobre este assunto, é bastante interessante atentar à Revista Geral de História Antiga e Moderna, editada em 1875, que também dá forma a posturas quase antagónicas sobre a visão do Egipto Antigo:

Assim, dando corpo à visão vinda da tradição, diz claramente que a ciência egípcia fora passada para os hebreus em tempos imemoriais: É fora de dúvida que os Israelitas trouxeram comsigo do Egypto muitos conhecimentos das artes, sciencias e lettras;

Noutro passo, afirma, conhecendo a fluidez da cronologia destes tempos: A verdade é, que a historia de Sesóstris, como tão bem das demais Reis Egypcios é tão confusa, tão invertida e exagerada, que poucos são os factos authenticos […] na historia d’ aquelle paiz […]regulados por uma chronologia fictícia […] que nos foi transmitida pelos gregos.

Para a primeira citação Guilherme Read Cabral, Revista Geral de Historia Antiga e Moderna […]. Versão de […], Ponta Delgada, 1875, p. 40. Para a segunda Idem, ibidem, p. 42.

[39] Manuel Francisco de Medeiros Botelho, Curso de História Universal Para Uso dos Lyceus, tomo I, Historia Antiga, Coimbra, 1878.

[40] Idem, ibidem, p. VII.

[41] Ver, nomeadamente, Idem, ibidem, p. XIV.

[42] Zófimo Consiglieri Pedroso, As Grandes épocas da História Universal, Porto, 1883.

[43] Cf. Op. cit., p. 64.

[44] Ver, por exemplo, Cf. Op. cit., p.69.

[45] Cf. Op. cit., p.20.

[46] Cf. Op. cit., p.65.